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A natureza jurídica da "desistência voluntária" e do "arrependimento eficaz".

Uma questão de interpretação

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Agenda 28/11/2003 às 00:00

6. Natureza jurídica da desistência voluntária (e do arrependimento eficaz)

6.1. Causa excludente de adequação típica

Parte da doutrina entende ser a desistência voluntária ou o arrependimento eficaz uma causa de exclusão de adequação típica, conforme os argumentos já mencionados.

Diz Rogério Greco:"(...) só nos é permitido punir a tentativa quando existe uma norma de extensão, como aquela prevista no inciso II do art. 14 do Código Penal. A lei penal, ao determinar que o agente responderá pelos atos já praticados, quis, nos casos de desistência voluntária e arrependimento eficaz, afastar a punição pelo conatus. Assim, devemos concluir que, devido à total impossibilidade de ampliarmos o tipo penal, para nele abranger fatos não previstos expressamente pelo legislador, tal situação nos conduzirá (...) a atipicidade da conduta inicial do agente. Como o art.15 do Código Penal visa, justamente, evitar (sic) a punição do agente pela tentativa, uma vez que a lei nos retira a possibilidade de aplicação da norma de extensão do inciso II do art. 14 (...), o caso é de atipicidade no que diz respeito à tentativa (...)".

Combate também a tese da desistência voluntária (ou do arrependimento eficaz) como causa excludente de punibilidade do agente, afirmando que a impunidade pelo fato consumado pressupõe a existência dos requisitos que viabilizam a punibilidade do agente por sua conduta, que são inexistentes por ser o fato atípico.

6.1.1. Críticas

O professor Luiz Regis Prado sintetiza bem a falha em se considerar a desistência voluntária como causa de atipicidade do fato. Segundo ele, "(...) a principal objeção que se pode formular contra o argumento daqueles que pretendem ver na desistência uma atipicidade, seja objetiva, seja subjetiva, encontra-se na impossibilidade de ter a desistência a virtualidade de tornar atípica uma conduta que antes era típica. Se o começo de execução é objetivo e subjetivamente típico, não se compreende como um ato posterior possa eliminar o que já se apresentou como proibido, situação que muito se assemelha à do consentimento subseqüente. Na relação direta com a natureza da desistência e do arrependimento, encontra-se o seu fundamento, vale dizer, a causa ou explicação do critério político-penal que explica a sua imunidade. Se assim não fosse, seria incompreensível e ilógico o fato de o desistente ou o arrependido responderem pelos atos já praticados no decorrer do iter criminis. O juízo de atipicidade excluiria toda tipicidade anterior".

Alberto Silva Franco observa que "Se fosse correta a tese da atipicidade da desistência voluntária e do arrependimento eficaz, porque não se acomodam ao modelo da tentativa, é evidente que a norma do art. 15 do CP seria prescindível. Bastaria, então, que fosse chamada à colação a norma do art. 14, II, do CP: ‘Se a consumação deixou de ocorrer por manifestação voluntária do agente, os atos realizados não poderiam ter enquadramento típico’. Mas a realidade é bem outra. Tanto a desistência quanto o arrependimento eficaz pressupõem que o agente tenha dado início, em obediência a um plano precedente estabelecido, à execução de um fato criminoso o qual, contudo, não alcançou a fase consumativa. Destarte, houve, sem dúvida, tal como sucede com a tentativa punível, um começo de execução que se revela, sob o enfoque objetivo, e sob o ângulo subjetivo, como típico. É evidente, nessa situação, que a sustação voluntária do processo de execução do delito ou a realização voluntária, depois do exaurimento desse processo, de uma ação em contrário, no sentido de impedir a consumação, não permitiriam tornar atípico o que, até então, tinha inequívoca conotação típica".

E conclui que "(...) existe um ponto comum entre a tentativa penalmente relevante, a desistência voluntária e o arrependimento eficaz: o da tipicidade dos atos realizados pelo agente antes da cessação, voluntária ou involuntária, do iter criminis. Desta forma, a diferença fundamental entre estes institutos penais não pode ser buscada na teoria do crime, mas apenas na de sanção punitiva. Se a interrupção do processo executivo do crime decorreu de circunstâncias alheias à vontade do agente, houve tentativa punível, mas se tal interrupção for voluntária ou se o agente, esgotado todo o processo de execução do crime, logrou obstar a consumação, houve desistência voluntária ou arrependimento eficaz, procedimentos impuníveis".

Acrescento, ainda, que não se deve ignorar o conteúdo axiológico das normas, no intuito de adotar-se uma conclusão satisfatória por intermédio de uma simples interpretação lógico-formal dedutiva que, na prática, atente contra os princípios básicos de hermenêutica, contra a unidade sistemática, contra a própria ordem dogmática-penal e, também, contraria a função primordial do tipo penal de garantir a liberdade individual.

Os fatores (naturais ou psicológicos) supervenientes ao início do procedimento de execução do crime proporcionaram a mudança de comportamento do agente responsável, levando-o a desistir voluntariamente de consumar a lesão antes intencionada. Tais fatores podem ser considerados como legítimas circunstâncias alheias à vontade inicial e lesiva do agente, ou seja, como os verdadeiros causadores da alteração da vontade criminosa do executor do crime, prescrita no tipo de tentativa, que o fazem impedir (ou evitar), pessoalmente, a concretização do resultado final planejado. Uma vez sendo a sistematicidade um dos propósitos a serem alcançados pela operação dos métodos hermenêuticos, somente uma interpretação puramente formal e inflexível inviabiliza esse entendimento. A unidade sistemática só será respeitada se o sentido dado à expressão circunstâncias alheias for construído, levando-se em conta o real conteúdo da vontade do agente, ao qual ela se refere na descrição do tipo de tentativa. Dessa forma, o próprio agente executor, motivado por tais circunstâncias que inexistiam e eram imprevisíveis no início da execução, está apto a interromper o procedimento delitivo, sem que se desconfigurem os atos materializados da tentativa.

O fato de o tipo de desistência voluntária tornar impune os atos de execução abrangidos pelo tipo de delito tentado, não significa que inexistiu a incidência da norma de extensão da tentativa, mas, sim, que o agente, apesar de inicialmente ter cometido uma conduta injusta e culpável, agiu posteriormente e com eficácia suficiente para neutralizar a causalidade em curso, sendo, por isso, merecedor da impunidade, por força de lei (tipo de desistência voluntária). A benesse legal não é causa excludente de adequação típica da tentativa. É, indubitavelmente, uma norma jurídica criada a servir de estímulo ao agente, para que redirecione a causalidade lesiva, por ele instaurada, à esfera da licitude. Por esse motivo e por respeito aos princípios da culpabilidade e da justiça penal, a impunidade não se estende aos co-autores e partícipes que também não tenham contribuído para a neutralização dos efeitos dos atos de execução já realizados. Ademais, considerar-se a desistência voluntária (ou o arrependimento eficaz) como causa excludente de adequação típica significa dar-se o mesmo valor e tratamento a condutas axiologicamente diversas, desconsiderando-se o conteúdo da formulação do tipo e sua função de garantia da liberdade individual.

Não procede, também, o argumento de que são inexistentes os pressupostos jurídicos que possibilitam a punibilidade do agente, tornando-se, dessa forma, inviável a defesa da desistência voluntária como causa excludente de punibilidade do agente. De fato, para que seja possível deixar o agente impune, é necessário que ele tenha cometido um delito. Entretanto, a defesa da causa excludente da tipicidade é baseada em falsa premissa: a atipicidade do fato. Considerando-se o fato atípico, obviamente, será impossível incidir qualquer causa excludente de punibilidade, por ter sido a conduta praticada dentro do âmbito da licitude.

Percebe-se, portanto, o equívoco de se considerar a natureza jurídica da desistência voluntária (ou do arrependimento eficaz) como sendo causas excludentes de atipicidade.

6.2. Causa de exclusão de punibilidade

A melhor solução, com base na crítica acima esposada, é compreender a desistência voluntária (e o arrependimento eficaz) como sendo causa pessoal de exclusão de punibilidade, motivada por razões de política criminal ou por motivos contrários à finalidade da pena.

Resume Alberto Silva Franco: "Se o próprio agente, por sua vontade, susta a execução do delito ou obsta, mesmo depois de terminado o processo de execução do crime, que advenha o resultado ilícito, interessa ao Estado que seja ele recompensado com a impunidade, respondendo apenas pelos atos já realizados, desde que constituam crimes ou contravenções, menos graves, já consumados. Destarte, se não existirem fatos residuais que devam ser punidos, só resta ao Estado-juiz, através de sentença dotada de carga exclusivamente declaratória, proclamar a extinção da punibilidade, em virtude da desistência voluntária ou do arrependimento eficaz, das infrações penais debitadas ao agente".

Ressalto que o único argumento que contesta esta tese é afirmação de que, para haver causa de extinção de punibilidade, é indispensável a existência dos pressupostos da punibilidade, consubstanciados em uma conduta típica ilícita e culpável. Como o fato, para eles, é atípico, não faz sentido falar-se em causa extintiva de punibilidade. Tal fundamento não tem suporte na dogmática jurídico-penal vigente e tampouco em uma correta interpretação sistemática das normas jurídicas que a compõe. Apóia-se somente e equivocadamente na falsa premissa, criada por eles próprios em defesa de sua opiniões, de que os atos executivos são atípicos, o que, como se viu, não passa de uma utopia jurídica, baseado em argumento ab absurdo.

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7. Um comentário de natureza processual

Muitos defensores da atipicidade, provocada pela desistência voluntária (ou pelo arrependimento eficaz), em especial, membros do Ministério Público e da Defensoria Pública dos Estados, agarram-se neste entendimento, tendo em vista a proteção da dignidade humana e a economia processual. Alegam que sujeitar o indiciado à situação jurídica de réu, durante o longo trâmite de um processo penal constrangedor, sabendo-se, de antemão, que houve, inequivocamente, a desistência voluntária, é uma afronta à presunção de inocência e à dignidade do ser humano, além de criar um custo processual desnecessário, em função de uma sentença penal sem a menor utilidade prática.

Porém, a fato de sustentar a tese excludente de punibilidade, não obriga à instauração do processo penal. Se foi verificado, por quem de direito, que o indiciado praticou uma conduta, inicialmente típica, ilícita e censurável (crime planejado e efetivamente tentado), mas que em razão de uma nova conduta posteriormente realizada (desistência ou arrependimento eficaz), aquela conduta inicial teve a correspondente pena legalmente isenta (art.15 do CP), não existe justificativa alguma à instauração de processo penal, para que, ao fim, seja o réu declarado impune por sentença. Eventual título executivo a favor da vítima, deverá ser conseguido diretamente em processo de conhecimento promovido na esfera cível.

A denúncia só será fundamentada, caso inexistam provas da ocorrência das citadas causas de exclusão de pena, que, todavia, poderão ser demonstradas pelas partes no decurso da instrução. Idêntico procedimento vale para os crimes de competência do Tribunal do Júri. Percebida pelo Juiz, durante o procedimento de admissibilidade, a existência de desistência voluntária (ou de arrependimento eficaz), deverá absolver sumariamente o réu, aplicando, por analogia, o art.411 do CPP, pois ratio ubi eadem, eadem iuris dispositio.

Conclui-se que, constatando o Parquet que houve, v.g., a desistência voluntária, ao invés de denunciar o indiciado, deverá pedir o arquivamento do inquérito, em razão de ausência de justa causa(art.43,III do CPP). Contudo, se verificada a consumação de crime subsidiário, far-se-á a denúncia, com base neste (art.41 do CPP c/c art.15,in fine do CP).


8. Conclusões extraídas do estudo apresentado

1) Os atos manifestados pelas pessoas têm o ordenamento jurídico como parâmetro (art.5.º,II da CRFB). Toda conduta não-proibida pelo sistema jurídico em vigor e praticada sem abuso de direito no desenrolar das relações que se formam é juridicamente válida e produz efeitos. Outras, em face da elevada potencialidade danosa e do conseqüente grau de insegurança e intranqüilidade que levariam ao sentimento dos que vivem em sociedade, são expressamente vedadas por lei e, dessa forma, erigidas à categoria de crime. Estas condutas proibidas, descritas de modo genérico e abstrato e que constituem o texto da lei, consubstanciam os tipos penais.

2) O tipo penal, por restringir o âmbito de liberdade dos indivíduos e cominar sanções àqueles que violarem a norma jurídica dele extraída, deve ser criado por lei formal e material, que observará, necessariamente, os princípios da intervenção mínima, da lesividade e da proporcionalidade, sob pena de ser inconstitucional ab initio. Legitimamente construído, torna-se exclusivo, imperativo, genérico, abstrato, impessoal e de natureza fragmentária, em razão de proibir, abstratamente, a qualquer pessoa, sob pena de submeter-se à prisão, de praticar a conduta expressa e selecionada que considerou delito, em momento histórico e contexto social determinados.

3) O tipo penal, legitimamente integrado ao sistema jurídico, exerce uma função sistemática, possibilitando a precisa identificação de condutas ilícitas praticadas, que tenham sido concretamente lesivas à coletividade, e a devida aplicação proporcional de medidas repressivas ou ressocializantes aos respectivos infratores, rechaçando, em contrapartida, qualquer arbitrariedade. Para tanto, é indispensável a compreensão de sua função político-criminal pelo legislador, devendo classificar como crime somente condutas lesivas e, em tese, consideradas idôneas à produção de dano à sociedade, a fim de que as pessoas entendam o porquê da vedação e se conduzam conforme a orientação legal. Desta feita, o tipo penal, com base em sua função dogmática, cumprirá sua finalidade essencial de esclarecer em que medida e em que forma uma conduta realizada adentra no âmbito da ilicitude, viabilizando a estabilidade das relações jurídicas e o respeito à dignidade da pessoa humana.

4) Consumado um fato social danoso cometido voluntariamente por alguém, primeiramente, deve o operador do direito verificar se existe algum tipo penal que, abstratamente, incrimine a conduta que o produziu. Em caso positivo, analisará, partindo do caso concreto, se a conduta do agente é antinormativa, se ajusta-se formal e materialmente aos elementos do tipo e se, ipso facto, foi a causa principal do resultado juridicamente inaceitável. Evidenciado o injusto penal e descoberto o responsável por ele, o intérprete ou o aplicador da norma avaliará as possibilidades da conduta reprovável ter sido evitada, com base nas condições pessoais do agente e nas circunstâncias em que se encontrava no momento em que agiu. Se reconhecidos o potencial conhecimento do ilícito pelo agente, a sua imputabilidade e a viabilidade concreta de ter agido conforme o direito, será considerado culpado pelo acontecimento anti-social e, em conseqüência, submetido à correspondente coerção penal, de acordo com a culpabilidade individual apurada e com os princípios que regem a punibilidade.

5) Em certas ocasiões, após o agente já ter iniciado a execução de um delito previamente planejado, impulsionado por vontade inicial livre e consciente, acontece de ele suspender, também voluntariamente, os atos de execução que se sucederiam até o alcance daquele objetivo inicial. Busca, com base nesta segunda conduta, a neutralização do risco de o resultado, antes visado e querido, vir a ser atingido. Obtendo sucesso nesta empreitada, terá desistido voluntariamente (ou se arrependido eficazmente), o que o deixa impune pela tentativa inicial do crime, respondendo apenas pelos atos de execução concretizados que, porventura, caracterizem algum delito autônomo subsidiário. Surge, daí, a controvérsia sobre qual seja a natureza da desistência voluntária (e do arrependimento eficaz), em face das interpretações diferenciadas que se fazem dos respectivos tipos penais da desistência e da tentativa, confrontando-se as teses de causa excludente de adequação típica e de causa excludente de punibilidade. Tal discussão é desnecessária, porque, por meio de interpretação sistemática correta, chega-se à conclusão de que tais institutos jurídicos são causas individuais e excludentes de punibilidade.

6) Por meio de uma interpretação sistemática precisa, retiram-se os seguintes argumentos:

a) a palavra vontade, expressa no tipo de tentativa, refere-se àquela vontade inicial do agente, criminosa, portadora do animus laedendi e propulsora dos atos de execução correspondentes ao seu conteúdo, identificado no querer, no desejar a consecução do plano delituoso elaborado. O conteúdo da vontade que fundamenta a voluntariedade da desistência (ou do arrependimento) é diferente do conteúdo da vontade prescrita no tipo tentado. Aquele é formado e externado a posteriori; este constituiu-se durante a elaboração do plano do agente, sendo exteriorizado com o início da execução.

b) não sendo iguais as vontades do agente que dão sentido ao tipo de tentativa e ao tipo de desistência voluntária (ou de arrependimento eficaz), não se pode entender o comportamento posterior da desistência voluntária como sendo um fato excludente da tipicidade da tentativa, pois, dessa forma, estar-se-ía fazendo uma interpretação puramente lógico-formal dedutiva e em dissonância com a unidade e coerência do sistema jurídico.

c) iniciados os atos de execução, concretiza-se a exteriorização de atos materialmente lesivos e causadores de perigo concreto progressivo (crescente), que preenchem o tipo de tentativa, conforme se extrai da correta operação do critério orientador objetivo-individual, com base nos princípios da reserva legal, da intervenção mínima, da lesividade, da proporcionalidade e na própria natureza do tipo de tentativa, considerado norma de extensão da adequação típica mediata, exatamente para não deixar impunes condutas que não adentrassem literalmente no verbo núcleo do tipo, não obstante o inequívoco propósito do agente em consumar o respectivo delito.

d) para se efetuar o juízo de tipicidade, deve-se considerar a conduta no momento em que foi iniciada a execução. Naquele átimo estará presente a verdadeira vontade criminosa do agente, o dolo com que agiu, a finalidade pretendida e a dimensão da lesão social provocada. É com base no sistema jurídico vigente à época que deverá estabelecer-se se houve ou não a compatibilidade dos atos realizados com a ordem jurídica. É naquele instante que a reprovabilidade da conduta deverá ou não estar configurada. Não se pode, portanto, levar em consideração uma vontade posterior do agente, inexistente na ocasião de início de execução, para, com suporte em um juízo ex post facto, criar-se uma proposição jurídica com apego exclusivo à lógica formal, ignorando-se todo o aspecto substancial dos fatos, em completa violação às normas de hermenêutica jurídica que proporcionam a unidade sistemática.

e) considerar-se a desistência voluntária (ou o arrependimento eficaz) como causa excludente de adequação típica significa valorar e tratar, igualmente, condutas materialmente diversas, ignorando-se o conteúdo do tipo e sua função de garantia da liberdade individual.

f) os fatores naturais (humanos ou fenomênicos) ou psicológicos que ensejam a vontade posterior de desistir (ou de se arrepender) do agente constituem propriamente as circunstâncias alheias à sua vontade inicial e criminosa, que, no instante da execução são imprevisíveis e, tempos depois, impedem a consumação do resultado típico antes programado. O fato de tais circunstâncias alheias serem colocadas em prática pelo próprio agente, em virtude de alteração provocada em seu ânimo inicial, em nada desconfigura o tipo tentado, que somente exige que tais circunstâncias sejam alheias à respectiva vontade inicial e criminosa do agente. Essa interpretação, além de propiciar a harmonia normativa do sistema, faz com que sejam respeitadas a dogmática penal vigente e as funções de garantia do tipo penal.

g) o fato de o tipo de desistência voluntária (ou de arrependimento ativo) prescrever que o agente só responde pelos atos executivos praticados até o momento da efetiva desistência (ou arrependimento), não significa que os atos tentados foram plenamente desconstituídos, conforme defende, equivocadamente, certa corrente doutrinária, por meio de utilização de uma interpretação puramente dedutiva lógico-formal. Com base em uma correta interpretação, extrai-se, sim, uma proposição jurídico-penal que autoriza a exclusão da punibilidade da conduta, inicialmente tentada, injusta e culpável e, posteriormente, neutralizada voluntariamente e com eficácia pelo próprio agente executor.

h) apesar de a desistência voluntária eficaz (ou o arrependimento ativo) tornar impune a tentativa efetivamente existente, faz com que os atos de execução, até então materializados, possam concretizar os elementos constitutivos de determinado tipo penal subsidiário (crime-meio), porventura existente, que seja absorvido pelo delito tentado com a pena excluída. Para tanto, fundamental se considerar a desistência voluntária (ou o arrependimento eficaz) como causa pessoal de exclusão de pena, visando à coerência sistemática, pois, a considerá-la causa da atipicidade do fato, estará inviabilizada a punição do agente pelos atos de execução tipificados como delito subsidiário (tentativa qualificada). Se o procedimento realizado é atípico, considerado como um todo (sucessão de atos de execução interligados entre si), não faz sentido que parcela dos atos que o compõem, isoladamente considerada, possa caracterizar determinado crime e sujeitar o agente à respectiva coerção penal. Se o conjunto é atípico, utilizando-se do próprio raciocínio lógico dedutivo-formal a que se chega a esta conclusão, suas partes também devem ser.

i) a impunidade pelo delito tentado será de natureza pessoal, alcançando apenas os respectivos autores, co-autores ou partícipes que, de fato, tenham contribuído eficazmente para que o evento lesivo fosse evitado ou impedido. Rechaça-se, por força da própria ratio (fundamento) do tipo de desistência e do princípio da culpabilidade, a extensão da impunidade aos co-autores ou partícipes que não desistiram (ou não se arrependeram) com eficácia, o que faz prevalecer uma decisão jurídica, para o caso concreto, de acordo com o princípio da justiça penal.

j) o único argumento utilizado para combater a tese que defende a natureza jurídica da desistência voluntária (ou do arrependimento eficaz) como sendo causa extintiva de punibilidade, não tem suporte na dogmática penal vigente e quiçá em uma correta interpretação sistemática das regras que a compõem e dos princípios que a norteiam. Tal argumento foi criado pela própria doutrina que afirma serem os referidos institutos causas excludentes de tipicidade do fato tentado. Partindo-se desta falsa premissa (e não da própria base dogmática), afirmam que a impunibilidade pressupõe a existência dos requisitos que habilitam a punibilidade (o que é correto), que inexistem em razão do fato ser atípico (premissa errada). Demonstrado o equívoco dessa sustentação jurídica, cai por terra a natureza jurídica dos institutos como sendo causas excludentes de atipicidade.

l) A entender haver exclusão da tipicidade da tentativa, por força dos atos de vontade posterior e independentes da vontade que impulsionou o processo de execução, estar-se-á subvertendo a ordem dogmática penal, pois, evidenciada a existência concreta de conduta inicialmente injusta e reprovável, tendente a um fim específico, a ocorrência de qualquer conduta posterior jamais poderá eliminar tal característica consumada. A prevalecer opinião contrária, estará prevalecendo a forma em face do fundo material, axiológico, valorativo, cujos reflexos já atingiram, a princípio, o sentimento jurídico da sociedade.

7) Por último, a constatação, pelo MP, durante as investigações preliminares, da ocorrência da desistência voluntária (ou do arrependimento eficaz), será motivo para arquivamento do inquérito, por ausência de justa causa (art43,III do CPP). Se houver crime subsidiário, a denúncia basear-se-á neste (art.41 do CPP c/c art.15, in fine do CP).

Sobre o autor
Renato Rodrigues Gomes

Procurador da Fazenda Nacional em Nova Friburgo-RJ e Mestre em Direito Público pela UERJ

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Renato Rodrigues. A natureza jurídica da "desistência voluntária" e do "arrependimento eficaz".: Uma questão de interpretação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 145, 28 nov. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4510. Acesso em: 5 nov. 2024.

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