1. Introdução; 2. Função social da propriedade; 3. Função sustentável da propriedade imóvel urbana: 3.1 A Propriedade urbana; 3.2 A Questão Terminológica; 3.3 Função Sustentável da Propriedade: Sentido e Alcance; 3.4 Função Sustentável da Propriedade Imóvel Urbana; 4 - Conclusão
Introdução
O presente trabalho tem como mote central a função sustentável da propriedade urbana sob a óptica da ciência do direito, sendo uma reflexão e mudança parcial daquilo que sustentamos em nosso “Direito Urbanístico e função socioambiental da propriedade imóvel urbana”.[1]
Desta forma, a análise do tema ora proposto se limitará às normas postas no ordenamento jurídico em vigor. Outro não é o objeto de estudo do cientista do direito, pena de incidir em um sincretismo metodológico a ponto de desqualificar e descaracterizar a ciência jurídica como uma das espécies das ciências sociais a qual, por serem caracteres peculiares, não se confunde com as demais, tais quais a sociologia, a filosofia, a política e outras.
Fixadas esta premissa, será tratada também e de forma crítica. Questão prejudicial ao tema central: a função social da propriedade, a qual já é matéria amplamente debatida, operada e pode ser considerada como o norma fundante do próprio Direito brasileiro.
Somente fincadas estas linhas mestras, é que, no quarto e último capítulo do trabalho, a pretensa função sustentável da propriedade urbana será explicitada, buscando-se aferir sua existência ou não no ordenamento jurídico pátrio, bem como qual sua natureza e conteúdo jurídico.
2. Função social da propriedade
Sabe-se que a propriedade sempre foi o núcleo central das relações de produção – mesmo nos estados socialistas e, indubitavelmente, nos capitalistas - que sempre imperaram em nossa sociedade. E esta importância ressaltou-se nas últimas décadas, mormente ante a prevalência do sistema de organização capitalista em detrimento do socialista.
Com efeito, aquele sistema funda-se na noção de propriedade privada e na liberdade de contrato, com mínima intervenção do estado, a justificar, ao longo da história, uma concepção jurídica da propriedade com caráter absoluto, consagrada com codificação do Direito Civil procedida por Napoleão, na França, no século XIX.
Ocorre que, diante das transformações sociais, com destaque para aquelas decorrentes dos pós-guerras, a concepção individualista de propriedade – incluindo sua conformação pelo direito – foi, gradativamente, relativizada. Este processo inicia-se com a teoria do abuso do direito, segundo a qual o direito de propriedade, mesmo sendo absoluto, não pode ser exercido com o ânimo de prejudicar outrem. [2].[3]
Entretanto não se pode excluir do direito de propriedade a natureza de direito subjetivo. Isto porque não há como se negar esta natureza ao direito de propriedade[4], conforme assegurado nas diversas constituições e legislações infraconstitucionais positivadas por inúmeros Estados.
No direito brasileiro, ou a propriedade é pública ou é privada. Jamais uma função. Isso é o que o ordenamento prescreve e deve ser respeitado, pena de violação a lei.
No contexto a inserção do conceito de função social da propriedade, o qual, notadamente, imprimiu uma nova significação à propriedade, trazendo “ao Direito Privado algo até então tido por exclusivo do Direito Público: o condicionamento do poder a uma finalidade” [5].
Assim, a nossa Constituição da República garante, em seu art. 5°, XXII, o direito de propriedade, para, logo em seguida, impor que a propriedade atenderá sua função social, consoante disposto no inciso XXIII do mesmo artigo.
Destes dispositivos, podemos extrair a seguinte conclusão: tanto o direito de propriedade, quanto a obrigação de atendimento da propriedade à sua função social são normas fundamentais: o primeiro, um direito, já o segundo uma garantia fundamental.[6][7][8]
Reconhecidos, o direito de propriedade e, consequentemente, a função social desta, como, respectivamente, direito e garantia fundamental, algumas implicações diretas e imediatas são, de logo, dedutíveis: (a) são cláusulas pétreas, portanto intangíveis às investidas reformadoras do poder constituinte derivado que tanto tem emendado a atual Constituição; (b) são normas de eficácia plena e aplicabilidade imediata[9], não só em razão do quanto disposto § 1° do art. 5° da C.F, mas também pelo fato de que toda norma é dotada de um mínimo de eficácia[10], da qual é possível extrair alguma aplicabilidade independentemente de qualquer regulamentação infraconstitucional.[11]
De outro lado, importante registrar que a função social da propriedade plasma, isto é, aparece, consta de outros dispositivos da Constituição.
No título dedicado à ordem econômica e financeira a função social da propriedade é apontada como princípio norteador (art. 170, III). Logo em seguida é referida como norma fundamental da política urbana (art. 182, § 2°) e da política agrícola e fundiária (art. 184 e 186).
Por isso, infere-se, prontamente, que a função social da propriedade é da espécie normativa princípio jurídico[12]: menos por força da própria expressão legal contida no art. 170, caput, parte final, que se refere explicitamente a princípios, porém mais pela sua nítida natureza de norma basilar, dotada de alto grau de generalidade e abstração que se irradia por todo o sistema.[13]
J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira ensinam-nos que os “princípios são núcleos de condensação nos quais confluem os bens e valores constitucionais, i.é, são expressões do ordenamento constitucional e não fórmulas apriorísticas contrapostas às normas.” [14] Gozando esta natureza, é ordem normativa hierarquicamente superior, a qual devem conformar-se as leis e demais atos jurídicos delimitadores da propriedade. Noutras palavras: é princípio que norteia, que deve ser observado pela legislação infraconstitucional, bem como pelo exercente de atividade pública. Ademais, como princípio jurídico, incide na aplicação e interpretação do direito[15] - especialmente no que se refere ao Direito Administrativo, Urbanístico, Ambiental e Agrário.
Como princípio jurídico, tem incidência destacada sobre as mais diversas relações jurídicas gerais e abstratas, individuais e concretas, incluindo e especialmente em matérias pertinentes à política urbana e agrícola, fundiária e de reforma agrária.
Neste sentido, funciona como verdadeiro vetor a influir e irradiar sobre todos os atos jurídicos desta natureza. Em outros termos: tanto o legislador, na elaboração da lei, o julgador, ao proferir decisões judiciais, quanto o administrador, ao expedir atos administrativos, devem observar, em última instância, o referido princípio, sob pena de violação direta à Constituição e consequente retirada do ato, na forma prevista pelo sistema - o controle judicial, difuso ou concentrado, de constitucionalidade dos atos legislativos ou administrativos[16].
Desta forma, o conteúdo jurídico da função social da propriedade, assume, pode-se assim dizer, duas facetas: a de garantia fundamental ao direito de propriedade e a de princípio jurídico vetor de todo o ordenamento jurídico brasileiro.
Nas duas hipóteses, diga-se, estar-se-á diante de norma jurídica, de caráter prescritivo, que consubstancia verdadeiro dever ser que comporta, afora imposição de regras proibitivas, a cominação de condutas ativas ao detentor do dominius.
Ora, pelo fato de ser norma jurídica, bem como do conjunto de disposições sobre a matéria extrai-se que a Constituição assegura o direito de propriedade, independentemente do atendimento da propriedade à sua função social.
Com efeito. O direito subjetivo de propriedade é intangível: usar, gozar, dispor, reivindicar. Trata-se, incondicionalmente, de proteção juridicamente conferida a um bem sujeito à apropriação pelo homem sem qualquer condicionamento. A propriedade não precisa atender a função social ou qualquer outra função para que ao proprietário seja assegurada a tutela que o direito confere. Caso contrário, não haveria que se falar em indenização prévia e justa nos casos de desapropriação por descumprimento da função social (arts. 182, § 4º, III e 184).
A função social não é elemento, não integra o direito de propriedade, mas o condiciona, estabelece uma obrigação ao exercente deste direito.
Registre-se, neste diapasão, a incontestável lição de Celso Antônio Bandeira de Mello:
“A propriedade ainda está claramente configurada como um direito que deve cumprir uma função social e não como sendo pura e simplesmente uma função social, isto é, bem protegido tão só na medida em que a realiza.” [17]
É dizer, conquanto não relativize ou modifique a essência do direito de propriedade e o seu regular exercício, a Constituição impõe um dever: o de que a propriedade, por intermédio de quem a detenha, atenda a função social.
Frise-se, o direito de propriedade não é uma função social. Esta, para nós, nem mesmo é seu elemento integrante.
Seja como for, quando a constituição prescreve que “a propriedade atenderá a sua função social” estamos diante de dever jurídico imposto ao titular do domínio – ou mesmo detentor da posse – de atender às prescrições legais (Constituição, plano diretor, lei de zoneamento) que delineiam qual a função social de determinada propriedade.
Há, portanto, sensível alteração, ainda que não substancial[18], da propriedade como instituto jurídico, em face mesmo do dever legal agora incidente por força do novo regime jurídico que o conforma.
Esta obrigação, este dever jurídico de cumprimento de uma função social, então inexistente na vigência dos ordenamentos individualistas, materializa-se a partir das constituições modernas[19] e ganha densidade nas legislações infraconstitucionais.
Hoje, nos parece indubitável, permanece a liberdade do titular do domínio de utilizar a propriedade. Entretanto o exercício deste direito constitucionalmente assegurado em sua plenitude sofre certo temperamento, pois que o antes absoluto interesse individual submete-se, em alguma medida, ao atendimento da função social especificada na lei, pena de aplicação da sanção cabível[20].
Na sua essência o direito de propriedade permanece incólume e inalterado, submetendo-se, entretanto, a um novel regime jurídico, com densa carga de Direito Público, diverso, saliente-se, daquele então vigente nas legislações liberais excessivamente individualistas, regime este parcialmente derrogado.
Este, a toda evidência, não é o posicionamento adotado pela esmagadora maioria da doutrina, para quem a função social da propriedade altera o conteúdo do direito de propriedade, não havendo proteção a este caso não atendida a função social.
Depois de afirmar ser a função social intrínseca à propriedade privada, Vladimir da Rocha França propugna que “sem o atendimento da função social que lhe foi imposta pela Constituição, a propriedade perde sua legitimidade jurídica e o seu titular, no nosso entender, não pode mais arguir em seu favor o direito individual de propriedade, devendo se submeter às sanções do ordenamento jurídico para ressocializar a propriedade.” [21]
Nesta toada, a Ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha entende que “somente a propriedade-função social é, pois, objeto do direito constitucionalmente garantido nos termos do disposto no capítulo dos direitos fundamentais. O bem apropriável, mas que desatenda a função social a que se destina, não é objeto de direito constitucionalmente protegido, por isto aquele instituto expropriatório, ao lado do confisco de bens que sirvam à prática de crime.” [22]
Não obstante, como registramos, a função social não significa a extinção do direito de propriedade, tão pouco pode autorizar a violação deste por terceiro, em detrimento da proteção conferida ao titular do domínio. Ademais, “não se trata de uma carta branca em favor do Estado, para que invista contra os particulares, em nome da realização de desenvolvimento com justiça. Antes, ao contrário, a finalidade mais profunda da alteração na concepção tradicional da propriedade é justamente preservá-la.” [23]
De qualquer forma, integrando ou não o conteúdo do direito de propriedade, havendo ou não que se falar em proteção jurídica à propriedade independentemente ou não do atendimento à função social, esta é princípio jurídico que impõe dever aos que detêm um bem.
Concluindo, em nosso entendimento, a função social da propriedade implica um ônus ao particular proprietário do bem, mas que não exclui, não altera o conteúdo mínimo do direito de propriedade, não talha a liberdade e a exclusividade no exercício deste direito, até porque estamos diante de uma ordem constitucional econômica capitalista, fundada na propriedade e que protege e incentiva a livre iniciativa (C.F. art. 170).
Assim, a função social da propriedade delimita, em parte, o direito de propriedade, sendo decorrência da equação entre o Estado Democrático de Direito constituído sob a égide da proteção a direitos individuais e pelos ditames de justiça social[24] e do asseguramento de uma existência digna para todos.
Isto significa que, tendo natureza de norma jurídica independente e posta no nosso ordenamento, a função social da propriedade tem conotação de dever jurídico que obriga a todos os detentores do domínio. Assim, o proprietário não deve apenas abster-se de praticar determinados atos contrários à lei ou ao interesse coletivo, como na hipótese de abuso de direito. Estará obrigado também a agir, a adotar condutas positivas no sentido de imprimir ao bem um uso em consonância não só aos seus interesses individuais, mas também aos de interesse da coletividade, vinculando a todos, inclusive ao poder público.
A propriedade é, nessa análise, pressuposto de existência da função social, e não o contrário. Decorrência da evolução histórica pela qual inevitavelmente passa a sociedade, a função social da propriedade surge, enfim, “representando um compromisso entre a ordem liberal e a ordem socializante, de maneira a incorporar a primeira certos ingredientes da segunda”.[25]
Diante destas observações, torna-se forçoso concluir que a função social da propriedade não é espécie do gênero limitação ao direito de propriedade, nem mesmo se confunde com o poder de polícia.
Assim, não é demasiado repetir que a função social não integra o conteúdo jurídico do direito de propriedade[26], mas o condiciona, o delimita. É dever jurídico imposto à propriedade que obriga ao detentor do domínio e, caso não cumprido, dará ensejo às sanções previstas no ordenamento, o que não interfere, não altera ou condiciona o direito de propriedade que, independentemente, é direito subjetivo constitucionalmente assegurado, cujo conteúdo essencial originário permanece inalterado.[27]
3. Função sustentável da propriedade imóvel urbana
3.1 A Propriedade urbana
A propriedade imóvel divide-se em urbana e rural. Tal distinção é relevante, especialmente porque definirá a qual regime jurídico[28] se submeterá determinada propriedade.
Em geral, o regime jurídico de toda e qualquer propriedade é constitucional, pois que na própria Constituição, ordem superior, já há delimitações acerca do direito de propriedade, conferindo-o um conteúdo fundamental. Entretanto, concomitantemente a este regime, podem incidir, a cada caso concreto, regimes específicos, como os previstos no Código Civil e no Estatuto da Terra.
A própria Constituição, diga-se, ao tratar do tema, desdobra a propriedade em seus diversos aspectos. É possível falar em propriedade pública e privada, as quais podem ser de natureza urbana ou rural, cada qual com suas peculiaridades, que ensejarão a aplicação de determinadas normas específicas, desde que em consonância com os preceitos constitucionais.[29]
Quanto a estas últimas, assinale-se, a doutrina aponta a existência de dois critérios classificatórios e/ou de distinção extraídos da Lei.
O primeiro é o da destinação, adotado pelo Estatuto da Terra - Lei 4.504/64, o qual define como imóvel rural todo “prédio rústico, de área contínua qualquer que seja a sua localização que se destina à exploração extrativa agrícola, pecuária ou agroindustrial, quer através de planos públicos de valorização, quer através de iniciativa privada.”
Diverso foi o critério utilizado pelo Código Tributário Nacional - Lei 5172/66, que adotou o critério da localização ou da situação do imóvel, e não o da destinação e vocação do solo. Esta opção do legislador serve, certamente, aos fins tributários por ela visados. Contudo, para o Direito Urbanístico, este método não é o adequado.
Porém, considerando-se o conceito, o já citado objeto do Direito Urbanístico, e a existência do princípio vetorial do planejamento urbano - insculpidos no art. 182 da Constituição da República e no art. 2º do Estatuto da Cidade -, não se pode olvidar que a definição das áreas municipais deve ser oriunda de estudos, levando-se em consideração a vocação atual e futura de determinada área.
Ademais, deve ser levada a efeito mediante edição de lei municipal específica (com destaque para o plano diretor e leis de parcelamento do solo e de zoneamento), considerando-se as peculiaridades de cada localidade e em face mesmo da eminente preponderância do interesse local nesta matéria, da própria competência constitucional que lhe é conferida pelo art. 30 da Constituição, e do quanto prescreve o art. 40, § 2° e 42, I do Estatuto da Cidade[30].
Em síntese, a qualificação jurídica pertinente à propriedade urbana e rural é de suma importância, pois estabelece o regime jurídico ao qual estará submetida determinada propriedade e qual a política – se urbana ou rural - deve ser implementada em determinada área do Município, pelo que deverá, sempre, levar em consideração a vocação da área, suas reais necessidades, enfim, os seus fins precípuos, sem olvidar a ordenação planejada, melhor instrumento para compatibilizar a evolução e transformações inerentes à própria natureza do homem e seus reflexos no usar, gozar e dispor das propriedades.
Note-se, ao final, que, a despeito dos diversos aspectos - sumariamente explorados supra -, interessa-nos, aqui, o estudo da propriedade imóvel urbana, pública e privada, e da função social da propriedade como prescrito no direito posto.
Diante deste corte metodológico necessário ao aprofundamento do tema central levantado, é que passamos a analisar, com desvelo, as questões ora eleitas como centrais.
José Afonso da Silva alerta:
“É em relação à propriedade urbana que a função social, como preceito jurídico-constitucional plenamente eficaz, tem seu alcance mais intenso de atingir o regime de atribuição do direito e o regime de seu exercício. Pelo primeiro cumpre um objetivo de legitimação, enquanto determina uma causa justificadora da qualidade de proprietário. Pelo segundo realiza um objetivo de harmonização dos interesses sociais e dos privativos de seu titular, através da ordenação do conteúdo do direito.”
Ainda nas palavras de José Afonso:
“Bem expressiva nesse sentido é a lição de Spantigatti, tendo em vista o art. 3º da Constituição Italiana, segundo o qual a função social da propriedade urbana ‘constitui um equilíbrio entre o interesse privado e o interesse público que orienta a utilização do bem e predetermina os seus usos, de sorte que se pode obter, nos modos de vida e nas condições de moradia dos indivíduos, um desenvolvimento pleno da personalidade. Nesta construção está claro que o interesse do indivíduo fica subordinado ao interesse coletivo por uma boa urbanização, e que a estrutura interna do direito de propriedade é um aspecto instrumental no que respeitante ao complexo sistema da disciplina urbanística’”
Ao fenecimento, esclarece o citado autor:
“Em outras palavras - concluímos com Pedro Escribano Collado - ‘o direito do proprietário está submetido a um pressuposto de fato, à qualificação urbanística dos terrenos, cuja fixação é da competência da Administração, de natureza variável, de acordo com as necessidades do desenvolvimento urbanístico das cidades, cuja apreciação corresponde também à Administração’” [31]
O art. 182 da Constituição da República, ao tratar da política urbana, preceitua a ordenação do pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da garantia do bem-estar de seus habitantes.
Não é mera recomendação. É dever do Poder Público, em todas as esferas, implantar a política urbana com vistas à consecução das funções sociais da cidade e do bem estar dos cidadãos.
Aqui, o plano diretor assume importante papel, vez que eleito instrumento básico da política urbana. Basta verificar que o parágrafo segundo do artigo em comento predispõe que a propriedade urbana cumpre a sua função social quando satisfaz as exigências, as diretrizes e disposições expressas no plano diretor, elevando-o ao status de instrumento básico de ordenação e gestão dos espaços urbanos.
Todavia, isto não significa limitar o conteúdo do princípio da função social da propriedade urbana ao quanto disposto no plano diretor. Mesmo porque, estamos diante de um direito fundamental, diretamente operativo, de aplicabilidade imediata.[32] (art. 5º da C.F)
Embora haja esta aparente vinculação constitucional entre o cumprimento da função social da propriedade urbana e o plano diretor, esta norma-princípio vai além: a propriedade urbana deve ser sempre considerada e utilizada quanto aos interesses do proprietário e da coletividade, balizados pela atuação da Administração Pública, ainda que não haja plano diretor, operado através das normas, procedimentos, instrumentos e planejamento urbanísticos, visando sempre o bem estar social e a qualidade de vida nas cidades, alcançada quando efetivado, em sua plenitude, o direito de todos o citadinos ao lazer, circulação, trabalho e moradia.
Impende enfatizar, outrossim, a relevância do plano diretor. Ainda que não seja o único instrumento de execução da política urbana e de concreção material da função social da propriedade, é, sem dúvidas, o mais abrangente e importante.
Aponta José dos Santos Carvalho Filho:
“O plano diretor, sendo caracterizado como o instrumento urbanístico fundamental, não pode guardar total identidade normativa no que concerne ao processo de política urbana de cada Município”.
“A razão é de extrema simplicidade: cada um dos Municípios apresenta peculiaridades próprias, relacionadas a aspectos de natureza social, cultural, territorial, ambiental, turístico etc.”
Contudo, alguns aspectos integram o conteúdo mínimo dos planos diretores, conforme art. 42 do Estatuto da Cidade.
Ganha relevo a imperiosa delimitação das áreas urbanas onde poderá ser aplicado o parcelamento, a utilização ou edificação compulsória, ou seja, das propriedades submetidas a uma pré-determinada função social que, caso não atendida, ensejará a aplicação da sanção prevista no art. 182, § 4° da C.F.
O plano diretor servirá, ao mesmo tempo, para que o poder público possa planejar e reservar espaços para as atividades econômicas ou não pertinentes ao desenvolvimento das cidades, “assim como prever a localização dos equipamentos públicos e comunitários que servirão de suporte para as políticas setoriais, como escolas, hospitais, praças, delegacias etc. Esta reserva de espaços deve decorrer de estudos que indiquem a demanda prevista para cada uso, assim como a disponibilidade de espaços para atendê-la. Desta forma, o plano diretor estará levando em consideração as dimensões econômicas e sociais da cidade, sem que com isto se transforme em um plano de desenvolvimento econômico.”[33]
Não resta dúvida de que a política urbana e seus instrumentos devem interferir na propriedade, conjugando planejamento adequado – mediante elaboração de plano diretor e compreendidas, obviamente, as normas que o complementam e minudenciam - e imposição de cumprimento da função social da propriedade, para assim atender os imperativos constitucionais de atendimento das funções sociais da cidade e do bem-estar do cidadão.
4.2 A Questão Terminológica: função social, função sustentável ou função sustentável?
Para Aristóteles, definir é determinar as características essenciais, vale dizer, o conteúdo de um conceito decompondo os seus elementos constitutivos. Nesta toada, o método de definição concebido por esta concepção filosófica é, por excelência, o de indicação do gênero próximo e da diferença específica.[34]
Não se desconhece a corriqueira lição que consagra não serem as definições ou classificações verdadeiras ou falsas, mas úteis ou inúteis na medida em que sirvam ou não à consecução do fim a que se propõe.
Independentemente, a questão terminológica não pode ser olvidada pelo cientista do Direito. Seu objeto de estudo - as normas jurídicas - é externado mediante linguagem.
Diversos estudiosos de nomeada se debruçam sobre este tormentoso tema.
Na sua obra magna, na qual discorre sobre as estruturas lógicas e o sistema de direito positivo, estabelece Lourival Vilanova:
“Para que exista lógica jurídica é indispensável que exista linguagem, pois com a linguagem são postas as significações.”[35]
Tércio Sampaio Ferraz leciona que “a primeira tarefa do intérprete, pois, é estabelecer uma definição.”[36]
Da relevância do aspecto linguístico, dos conceitos, enfim, da terminologia jurídica, ocupou-se, com acuidade e rigor peculiar, Márcio Cammarosano. Ao tratar da definição de cargo público em obra de fôlego, diz que formular definições jurídicas é tarefa difícil. Mas salienta que, sendo prolatada pelo cientista do Direito, é conceito jurídico-positivo, de sorte que deve ser extraído do ordenamento posto, com objetivo de se fixar seu sentido técnico, desvendando-se a sua significação normativa.[37]
Há mesmo quem sustente ser este um problema ideológico.
A despeito de ser verdadeira a influência ideológica e social no que tange ao significado das palavras, enfim, no uso da linguagem – incluindo-se aqui a do jurista -, esta não é, e nem pode ser, o objeto de estudo do cientista do direito, pena de incidir-se no sincretismo metodológico a que alude Kelsen[38], anulando-se esta ciência.
Retomando as lições de Lourival Vilanova, “… o ordenamento jurídico positivo, como linguagem, é um sistema de símbolos do discurso comum e técnico.”[39] Ou seja, “Como sistema de símbolos, o Direito positivo é conjunto, cujos elementos são do domínio da linguagem.” Este sistema é composto por normas de Direito Positivo, como proposições jurídicas inter-relacionadas e com um ponto final de referência, qual seja, o fundamento de validade. Donde se extraí que “o jurista dogmático, que trabalha no interior do sistema, que interpreta e o aplica, diante de uma lei, decreto ou sentença, regredirá ao modo de construção de normas para saber se pertencem ou não ao sistema.” [40]
Ao adotar a terminologia “função sustentável” da propriedade, buscamos extraí-la do ordenamento positivo, ínsita ao sistema jurídico, longe, destarte, de ser mera conjugação de palavras desprovidas de sentido jurídico.
Ora, ainda que não a encontremos expressamente referida na Constituição em vigor ou na legislação ordinária, justificamos o uso do termo “função sustentável” como verdadeiro conceito jurídico-positivo[41], extraído de uma análise e interpretação sistemática da ordem jurídica válida.
A função da propriedade é definida pelo direito. Encontra-se expressada, ainda que de forma implícita, no nosso ordenamento. Como conceito jurídico-positivo que é, resulta do “…delineamento legal de uma situação determinada, tendo em vista gizar o campo de aplicação de um sistema de normas.”[42]
Os termos “função” e “propriedade”, bem como “economia”, “livre iniciativa”, “justiça e direito social”, “meio ambiente”, “ecossistema” e “preservação” são, isoladamente, exaustivamente referidos nos nossos diplomas legais. Mas, ao contrário do que se refere à “função social da propriedade”, não encontramos, é verdade, menção explícita à função sustentável da propriedade no Direito Positivo brasileiro.
Isto não significa, por si só, que não se trate de norma jurídica, pois os conceitos jurídicos “existirão sempre que se possa localizar no sistema normativo um complexo de normas possíveis de constituir uma unidade, isto é, sempre que caracterize algo para efeitos de direito.”[43]
Contudo, a propriedade se sujeita a um regime jurídico que condiciona seu uso, gozo e fruição a delimitações e aproveitamentos da ordem econômica, social e de preservação ambiental.
Daí porque, consoante restará demonstrado nas próximas linhas, em rigor, há uma função social, mas também uma função econômica e outra função ambiental da propriedade, que formam um conjunto sinérgico de aderências de valores ao sistema jurídico pátrio que devem nortear os comportamentos inerentes àqueles que detêm direito e deveres de propriedade, bem como a toda a coletividade.
Por isso, a expressão, o termo que melhor reflete este conteúdo jurídico, a ser detidamente estudado nos tópicos seguintes é aquele que implica na referência aos três valores que disciplinam a propriedade numa síntese dos mesmos – o social, o econômico e o ambiental. E essa sinergia, essa equação é mais bem referida pela expressão função sustentável da propriedade, no caso específico trabalhado neste artigo, da propriedade imóvel urbana.
Numa sentença: a função sustentável da propriedade é, portanto, norma jurídica e não uma mera elucubração ou criação extrajurídica. Tal qual outros predispostos no sistema, função sustentável da propriedade “é conceito, vale dizer, representação intelectual de objeto, ou, mais precisamente, conceito jurídico, que, por definição, representa objeto jurídico, assim como os conceitos pessoa jurídica, credor, comerciante, domicílio etc.”[44] Ao menos é o que pretendemos demonstrar.
4.3 Função Sustentável da Propriedade: Sentido e Alcance
Superadas as questões e pressupostos de conhecimento do tema descritos supra, chega-se a um dos pontos nevrálgicos do presente trabalho: determinar o que se compreende por função sustentável da propriedade, qual o seu sentido e alcance.
Enfim, é o momento de se debruçar sobre o sentido e alcance do princípio jurídico em referência e apresentar – ou ao menos tentar fazê-lo – soluções para algumas indagações: a função sustentável da propriedade é ínsita ao nosso ordenamento jurídico? Qual sua natureza e conteúdo?
Com efeito, as respostas devem ser esquadrinhadas dentro do sistema de normas em vigor, partindo-se da Constituição, norma superior que fundamenta as demais, passando pelas normas infraconstitucionais e pelas normas infralegais destas decorrentes.
Da simples leitura da Constituição da República em vigor, constata-se que ela, ao contrário das anteriores,[45] é rica em referências diretas à questão social relacionada ao direito de propriedade. Já a parte econômica, além de também estar diretamente referida e expressada neste direito, é aquela consagrada e mesmo coincidente, originária, histórica e juridicamente com o direito de propriedade, sendo certo que, em larga medida, direito de propriedade e o seu caráter econômico acabam se confundido. Daí porque, neste momento, importante ressaltar a parte da função sustentável da propriedade inerente ao meio ambiente e às formas de tutela jurídica do mesmo.
Para José Afonso da Silva “a Constituição de 1988 foi, portanto, a primeira a tratar deliberadamente da questão ambiental. Pode-se dizer que ela é uma Constituição eminentemente ambientalista.”[46]
Inúmeras passagens[47] da nossa ordem suprema remontam ao meio ambiente, em seus diversos aspectos, e sua proteção. Estão aí contempladas normas de natureza penal, processual, econômica, repartição de competências e de outras naturezas.
De forma inovadora, corajosa, e elevando o meio ambiente ao status de interesse público indisponível, a Constituição confere a qualquer cidadão legitimidade para, diretamente, através de ação constitucional específica, anular ato lesivo ao meio ambiente.[48] Isto significa que a Constituição de 1988 “assumiu o tratamento da matéria em termos amplos e modernos. Traz um capítulo específico sobre o meio ambiente, inserido no título da Ordem Social. Mas a questão permeia todo o seu texto, correlacionada com os temas fundamentais da ordem constitucional”[49]
E não poderia ser diferente. Retomando o raciocínio externado no capítulo anterior - quando definimos a função social da propriedade como um direito fundamental, já que diretamente ligado à propriedade, que é base, é disposição primária, enfim, é fundante do Estado Democrático de Direito -, temos que a proteção ao meio ambiente, o direito à qualidade do meio ambiente é direito fundamental[50], pois que ligado à vida, que, ao lado da propriedade, liberdade, igualdade e segurança, constituem o núcleo essencial do ordenamento jurídico em alento.
Na acepção constitucional há o reconhecimento do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como essencial à sadia qualidade de vida, sendo, desta forma, verdadeira extensão do direito à vida. Consequentemente, este direito fundamental irradia-se sobre todo o sistema, consubstanciando, assim, verdadeiro princípio jurídico, vetor do direito posto.
Razão assiste a Ivette Senise Ferreira ao dizer que o referido princípio – da qualidade do meio ambiente ou ambiente ecologicamente equilibrado – passou “a nortear toda a legislação subjacente, e a dar uma nova conotação a todas as leis em vigor, no sentido de favorecer uma interpretação coerente com a orientação político-institucional então inaugurada”.[51]
De aplicabilidade imediata, como todo direito fundamental, ganha densidade e aplicabilidade especialmente através das disposições insertas no art. 225 da Constituição. Destarte, o conteúdo constitucional e infraconstitucional pertinente à consecução do equilíbrio e qualidade do meio ambiente repercute em todo o sistema jurídico em vigor, até mesmo no que concerne à propriedade.
Ora, já foi fixado que a propriedade e a vida são direitos individuais fundamentais, não só por integrarem o extenso rol do art. 5°, mas porque consubstanciam o que é primário, basilar, impostergável à comunidade estabelecida no Estado Democrático de Direito. De ambos decorrem garantias fundamentais e princípios que norteiam o sistema jurídico: o da qualidade do meio-ambiente ou da proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado que, alinhados ao caráter econômico e social da propriedade, conforma o que preferimos denominar de função sustentável da propriedade, que, neste sentido, é mais amplo, abrangente e correto do que se limitar a denominada função social, já que atrai para referida norma garantia e princípio a pauta, o conteúdo de se propagar e permear todo o direito posto a parte da propriedade que inclui a sua função de também servir ao ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações.
Ou seja, declinar uma função sustentável para a propriedade como dever jurídico é, em última análise, mais que uma questão terminológica: é revelar os três vetores que vão permitir a adequada tutela do próprio direito de propriedade[52].
Some-se a isso que a própria Constituição, de forma expressa, preceitua: a propriedade rural cumpre a sua função social quando o proprietário a aproveita de forma racional e adequada e promove a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente.[53]
Já o Código Civil em vigor, no seu art. 1.228, §1º, acabou por também expressar a sustentabilidade, não só a parte social, como elemento marcante do direito de propriedade, ao prescrever que tal direito deve ser exercitado em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
Extrai-se, assim, de uma interpretação teleológica, sistemática e conforme a Constituição em vigor, que há, em verdade, uma garantia fundamental e o princípio constitucional da sustentável da propriedade.
Não se aventa mera elucubração ou idealismo ambientalista transportado ao Direito. Estamos diante de um princípio jurídico, implícito, e que, por esta natureza, já repisada alhures, tem caráter prescritivo, é dever-ser do qual resultam direitos e obrigações (positivas e/ou negativas).
Seja como for, não há que se falar em função social da propriedade se não atendida a sua utilização racional e adequada, além da proteção ao meio ambiente. O proprietário que olvida as regras ambientais no exercício do direito de propriedade estará violando o princípio da função social da propriedade na sua acepção ambiental e, portanto, sujeitar-se-á às sanções constitucionalmente previstas nos art. 182 e 186 da Constituição da República e outras que sejam inseridas pela legislação ordinária com fundamento no princípio da função social da propriedade.
3.4. Função Sustentável da Propriedade Imóvel Urbana
No tópico anterior, constatou-se a existência do princípio jurídico da função sustentável da propriedade.
Conquanto o tenhamos vislumbrado como princípio constitucional e averiguado, de pronto, seu conteúdo constitucional mínimo no que se refere à propriedade rural, inserto no art. 186 da Norma Suprema, o mesmo não se pode, em primeira e superficial análise, inferir quanto à propriedade urbana.
Pois bem. De rigor, neste momento, averiguar a existência do pretenso princípio da função sustentável da propriedade urbana para em seguida, se for o caso, extrair-se o seu conteúdo jurídico, afinal, este é o mote central deste estudo.
A ocupação das normas de Direito Urbanístico com a proteção do meio ambiente urbano não é recente. Consoante lembra-nos José Roberto Salazar Júnior “essa característica transparece na legislação urbanística mais remota, como disposto no Decreto-lei n° 1,413/75, que tratava do combate à poluição atmosférica, e na Lei n° 6.766/79, que regula o parcelamento do solo urbano.”[54]
A nova ordem constitucional conferiu maior e especial atenção à tutela do meio ambiente, prescrevendo um sistema de princípios e regras que são capazes de efetivá-la de forma mais eficaz.
Neste diapasão, como direito fundamental e princípio vetor de toda ordem posta, o equilíbrio ecológico dirige a política urbana e as relações pertinentes às propriedades situadas nestas áreas.
Por outro lado, há de se considerar que em razão desta norma princípio e sua ligação direta com o direito fundamental à propriedade, bem como em face mesmo do quanto disposto pelo art. 182 da Constituição, a função social da propriedade urbana somente é cumprida quando há o seu aproveitamento racional e em consonância com o bem-estar da coletividade.
Com efeito, a ordem urbanística, já o dissemos, é regida por dois princípios jurídicos basilares: da função social da cidade e o da função social da propriedade.
Estas duas normas constitucionais fundamentam o regime jurídico que conforma a ordenação dos espaços urbanos. Consubstanciam, em última análise, deveres impostos a todos, especialmente para consecução das diretrizes gerais materializadas pelo Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01), notadamente a garantia do direito a cidades sustentáveis, saneamento ambiental, trabalho, lazer e planejamento do desenvolvimento das cidades, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente.
A ordem urbanística, lembre-se, diz respeito ao meio ambiente urbano, à tutela dos espaços habitáveis, consubstanciando limitações estabelecidas à propriedade e deveres ao proprietário, assinalando ou delineando o perfil mesmo do direito de propriedade, em favor dos interesses da coletividade. Mas não só. Impõem deveres aos detentores do título de domínio ou quem exerça todas as faculdades ou algumas a este inerente. Dentro destes deveres há de estar incluindo o de proteção à fauna, flora, ao ar, às águas etc.
Indubitável que a ordem urbanística regula interesses metaindividuais da coletividade, interesses verdadeiramente difusos como são os ambientais urbanos, objeto de tutela por parte da coletividade, apta a manejar a ação popular para proteção deste interesse, e do Ministério Público e associações como legitimados à propositura da ação civil pública para proteção do meio ambiente e da ordem urbanística.
Ora, não há que se falar em bem-estar da coletividade, sadia qualidade de vida, aproveitamento racional, sem se pensar no meio ambiente e na sua efetiva proteção.
Desta forma, inconteste que o art. 182 da C.F, ao externar que a política de desenvolvimento urbano tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem estar de seus habitantes e, no § 4º do mesmo diploma, impor ao Poder Público o dever de exigir do proprietário do solo urbano que promova seu adequado aproveitamento, incluiu a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente em dada propriedade.
Recorrendo mais uma vez ao direito comparado, com as anotações de Canotilho e Vital Moreira abordam esse aspecto e propugnam:
"A defesa do ambiente pode justificar restrições a outros direitos constitucionalmente protegidos. Assim, por exemplo, a liberdade de iniciativa econômica tem no direito ao ambiente um factor de numerosas restrições. O direito de propriedade está sujeito a medidas planeadores de proteção do ambiente."[55]
Saliente-se que não estamos diante de uma norma encontrada explicitamente na Constituição ou em outras ordens normativas. Nem mesmo é um princípio jurídico autônomo. Trata-se, em verdade, de um princípio implícito, verdadeira decorrência dos princípios do equilíbrio ecológico e do próprio princípio da função social da propriedade.
Sob este aspecto, o direito à propriedade deve ser exercitado em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais, e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei, a flora, fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e proteção ao patrimônio histórico e artístico, evitando-se, sempre, a poluição do ar e da água, o que se aplica plenamente às propriedades situadas nas zonas urbanas. É um dever jurídico imposto ao proprietário que, em linhas gerais, encontra fundamento no princípio da função sustentável da propriedade, sendo deste decorrente.
Diante deste quadro constitucional - que explicita a função sustentável como princípio da política agrária e, ainda que de forma implícita e disseminada por diversos preceitos, o insere como princípio jurídico da política urbana – justifica-se a numerosa frequência com que as questões ligadas ao meio ambiente são referidas nas normas de ordenação dos espaços habitáveis – estas objeto do Direito Urbanístico como esteamos.
Nem poderia ser diferente. As ordens infralegais encontram seu fundamento na Constituição. E a Carta Magna prescreve a obrigação do Poder Público e de toda sociedade de preservar o meio ambiente. Nada mais natural do que o detalhamento e materialização pelas legislações específicas que versem sobre a matéria.
O Estatuto da cidade, que regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, ou seja, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências, coloca normas de ordem pública que regulam o uso da propriedade urbana em prol do equilíbrio ambiental, de acordo com o art. 1°, parágrafo único.
Impõe como diretrizes gerais a garantia do direito a cidades sustentáveis[56], entendido como direito ao saneamento ambiental[57], o planejamento como forma de evitar as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente[58], a ordenação do solo para evitar a poluição e degradação ambiental[59], adoção de padrões de produção e consumo e de expansão urbana compatíveis com os limites da sustentabilidade ambiental[60], a proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico[61], a audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente[62], estabelecendo, finalmente, a regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas pela população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas as normas ambientais[63].
Destaca-se aqui a garantia a cidades sustentáveis. Segundo Odete Medauar, a expressão cidades sustentáveis inspira-se no Direito Ambiental, devendo-se entendê-la como “aquelas em que o desenvolvimento urbano ocorre com ordenação, sem caos e destruição, sem degradação, possibilitando uma vida urbana digna para todos.”[64]
Noutro plano, a citada lei elege como instrumentos da política urbana, no âmbito do planejamento municipal, o zoneamento ambiental, previsto no art. 4°, III, c) e, sobre a rubrica de instrumentos jurídicos e políticos, a instituição de unidades de conservação, posta no art. 4°, V, e).
De outra banda insere, juntamente com os citados instrumentos de política urbana, o estudo prévio de impacto ambiental e o estudo prévio de impacto de vizinhança[65], nos quais estão constituídas como conteúdo obrigatório as questões relativas à paisagem urbana e patrimônio natural e cultural, ante o disposto no art. 4°, VI, art. 37, VII do multimencionado Estatuto.
Podem, ainda, ser citadas como relevantes disposições voltadas à tutela do meio ambiente urbano o art. 26 do mesmo diploma, no qual se fixa que o direito de preempção[66] será exercido sempre que o poder público necessitar de áreas para criação de áreas verdes, unidades de conservação ou proteção, áreas de interesse ambiental e proteção de áreas de interesse histórico, cultural ou paisagístico, tudo na forma do art. 26, VI, VII, VIII.
Some-se a isto a prescrição segundo a qual as operações urbanas consorciadas[67] necessitam alcançar, por força de lei, o objetivo de valorização ambiental, sendo certo a previsão e necessidade de consideração expressa dos impactos ambientais decorrentes das operações, tudo consoante as imposições do art. 32, § 1°, § 2º, I.
Inolvidável a hipótese na qual a transferência do direito de construir[68] será exercitada para fins de preservação, quando o imóvel for considerado de interesse ambiental, histórico ou paisagístico.
Além disso, como forma de tutela ao meio ambiente, o Estatuto da Cidade inova, ao subsumir à obrigação de elaboração de plano diretor às cidades inseridas em área de influência de empreendimentos ou atividades de significativo impacto ambiental.[69] (art. 41, V).
Válido ressaltar, com Adilson de Abreu Dallari, que “os institutos jurídicos e políticos acima referidos visam não apenas vedar comportamentos dos proprietários deletérios aos interesses da coletividade, mas sim, mais que isso, visa obter comportamentos positivos, ações, atuações, necessárias à realização da função social da propriedade.”[70]
Enalteça-se, neste passo, o papel basilar e imprescindível da gestão democrática da cidade e da efetiva participação popular na atuação urbanística.
Resta claro que o Estatuto da Cidade cuidou bem da questão ligada ao meio ambiente urbano. Diversos instrumentos de proteção já estão colocados à disposição do Poder Público e do operador do Direito. Amplas são as alternativas, variadas são as vias que levam ao caminho da efetivação da função sustentável da propriedade.
Mas não é somente o Estatuto da Cidade, norma geral de Direito Urbanístico, que eleva e prescreve a proteção ao meio ambiente urbano. Outras diversas leis o fazem.
A propósito o já citado §1º do art. 1.228 do Código Civil:
“O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.”
Não se trata de mera recomendação. O novo Código Civil eleva a função social – incluindo sua faceta ambiental – como princípio basilar, como norma de ordem pública. E essa não é uma construção doutrinária. É o quanto prescreve o citado plexo normativo que, na letra do parágrafo único do art. 2.035, fixa que nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como a função social da propriedade e dos contratos.
Significa, com Nelson Nery Júnior, que mesmo a autonomia privada está limitada pela função social da propriedade.[71]
Quanto às normas específicas, cite-se o importante Código Florestal (Lei 4.771/65) editado sob a égide das Constituições anteriores, mas plenamente recepcionado pela atual.[72]
Ao analisar questões ligadas ao meio ambiente, urbanismo e a atual compreensão do Código Florestal, o Professor Emérito J.J. Calmon de Passos enaltece a sobrelevada importância dos aspectos regionais, locais e peculiares nessas matérias. Conquanto sua pesquisa não tenha sido levada à efeito mediante o método juspositivista,[73] reconhece o jurista baiano que, não só o direito posto, como também uma análise interdisciplinar o levam a esta conclusão. Nas trilhas do citado doutrinador:
"Se a análise estritamente jurídica nos conduziu ao entendimento de que, entre nós, se deu prevalência constitucional aos aspectos regionais em matéria de urbanismo e meio ambiente das cidades, veremos que ele não somente resiste, como é fortalecido pela análise interdisciplinar do problema."
Em seguida, arremata:
"Conclui-se, por conseguinte, que o problema do meio ambiente urbano é algo de extrema complexidade e diversidade, sendo mais correto falarmos em "meios ambientes" e não em um único e predominante meio ambiente. Os problemas envolvidos são os mais variados, desde habitação, trabalho, educação, saúde até locomoção, lazer e produção de cultura, tudo interligado e conectado, exigindo sempre uma compreensão integrativa, jamais 'esquartejadora' da realidade, o que somente pode gerar aleijões em termos de saber e de decisões jurídicas."
Já a respeito da aplicabilidade do Código Florestal, nos dias de hoje e em face da edição da Constituição de 1988, lembra-nos J.J. Calmon de Passos:
"Parece-me evidente a necessidade de ser compreendido o Código Florestal na moldura de quanto hoje traçado pela vigente Constituição Federal no particular da autonomia dos Estados e Municípios e da competência concorrente que lhes foi deferida, o que ainda mais se acentuou com a recente MP 2.166-67/01, alterando a redação do seu primitivo art. 4º." [74]
Sobre o mesmo tema, desta feita se concentrando na aplicabilidade do Código às áreas urbanas, pontua Fernando Reverendo Vidal Akaoui que “de uma análise conjunta dos artigos 24, inciso VI e seu § 2º; artigo 30, II e artigo 225, todos do Texto Maior, somente podemos chegar à conclusão de que, sendo dever do Poder Público defender e preservar o meio ambiente, nem a União e nem os Estados poderiam, dentro de sua competência concorrente, editar norma que viesse a prejudicar os ecossistemas essenciais, assim como não poderia fazê-lo o Município, dentro de sua competência suplementar.”[75]
No mesmo sentido, Daniel Roberto Fink e Márcio Silva Pereira:
“O Código Florestal de 1965 aplica-se ao meio rural e urbano por força de seu art. 1°, que não faz distinções, afirmando apenas que as florestas e demais formas de vegetação natural são bens de interesse comum a todos os habitantes do País. Em decorrência, o exercício do direito de propriedade, seja esta rural, urbana, pública ou particular, deve respeitar as limitações estabelecidas nesse estatuto, sobretudo aquelas elencadas no art. 2°”.[76]
Outrossim, não se pode olvidar a Lei 9.985/00, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza, e a recente Lei Federal 11.428/06, que dispõe sobre a utilização e proteção da vegetação nativa do Bioma Mata Atlântica e dá outras providências, que no artigo 35 prevê o seguinte:
“A conservação, em imóvel rural ou urbano, da vegetação primária ou da vegetação secundária em qualquer estágio de regeneração do Bioma Mata Atlântica cumpre função social e é de interesse público, podendo, a critério do proprietário, as áreas sujeitas à restrição de que trata esta Lei ser computadas para efeito da Reserva Legal e seu excedente utilizado para fins de compensação ambiental ou instituição de cota de que trata a Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965.”
Todas estas normas encontram fundamento na função social da propriedade e no equilíbrio ambiental, princípios jurídicos insertos na Constituição. Destes princípios abrangentes se extrai um outro princípio mais específico: a função sustentável da propriedade.
Em face de tudo quanto exposto e examinado neste tópico, ao longo deste trabalho, do quando prescrito na Constituição, na legislação ordinária, da inescusável interface entre o Direito Urbanístico e o Direito Ambiental, das incontáveis inter-relações entre o meio ambiente e a ordenação dos espaços habitáveis, é que se sustenta que o princípio da função sustentável da propriedade urbana integra o sistema positivo pátrio e serve de fundamento às normas que tenham por finalidade precípua a proteção do meio ambiente urbano.
A função sustentável da propriedade avulta-se como princípio jurídico que se irradia por todo o sistema, especialmente sobre o Direito Urbanístico. Seu conteúdo é extraível da própria Constituição – especialmente dos arts. 182; 186 e 225 da Constituição, além das demais disposições normativas destes decorrentes.
Por isto que acertou o legislador em, no próprio Estatuto da Cidade, norma geral de Direito Urbanístico, bem como em outras leis, referir-se expressa e tratar exaustivamente de aspectos ligados ao meio ambiente em suas diversas facetas, incluindo a preservação do meio ambiente como uma das hipóteses em que a propriedade cumpre sua função social.
Assiste razão a Guilherme José Purvim de Figueiredo ao destacar a inafastável interface entre o Direito Ambiental e o direito de propriedade: o princípio da função social da propriedade.[77]
A toda evidência, “o regime jurídico da propriedade não se restringe às normas de direito civil, compreendendo, sim, todo um complexo de normas administrativas, ambientais, urbanísticas, empresariais, e, evidentemente, civis, fundamentado nas normas constitucionais.”[78] Ainda mais quando sabemos, com Calmon de Passos, que Pois, consoante brilhantemente expõe J.J. Calmon de Passos, "precisamos aceitar o inelutável de que as cidades são construídas, necessariamente, sobre o aniquilamento da Natureza, nem sempre suscetível de ser recomposta em termos satisfatórios. O que se exige é a ponderação de valores, com vistas a harmonizar o meio ambiente natural com o meio ambiente construído..."[79]
Deste modo, em última análise, afirmamos com segurança e com base no ordenamento positivo que a função sustentável da propriedade urbana é norma garantia fundamental e princípio jurídico.