“Em verdade, educação é o primeiro dos direitos sociais, não apenas na enunciação constitucional, como na ordem natural das coisas. Com efeito, onde há educação, existe saúde, saúde gera trabalho, trabalho pede lazer e assim por diante. Em recente pronunciamento, notável economista não vacilou em dizer: ‘houvesse apenas um real em caixa, eu não vacilaria em destiná-lo à educação’.” (STJ, 1ª T., Rec. Especial n.º 212.961/MG, julgado em 15.08.2000, DJ de 18.09.2000, voto do Min. Humberto Gomes de Barros)
INTRODUÇÃO
Eloquentemente a educação é trazida como o primeiro dentre os direitos sociais fundamentais arrolados no art. 6º da Constituição Federal, sendo pré-requisito para expansão de todo e qualquer outro direito.
Neste artigo, analisamos o direito à Educação, considerando sua pertinência com a democracia, com os demais direitos fundamentais e com o mínimo existencial, abordando a questão da denominada reserva do possível, se constitui ou não legítimo óbice à implementação do direito à educação.
EDUCAÇÃO E CIDADANIA: CAMINHO PARA A DEMOCRACIA
A Democracia é considerada o regime político mais justo, tendo em vista que nele o povo é, a um só tempo, autor e destinatário das normas. Segundo a clássica definição de Abraham Lincoln (1809-1865), “democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo”.
Caracterizada pelo autogoverno, na Democracia o governo é exercido pelo próprio povo, direta ou indiretamente. Seja qual for a forma de democracia, é necessário que os cidadãos saibam o que e o porquê querem alguma coisa; que entendam os problemas e avaliem as possíveis soluções; que compreendam a necessidade de cumprirem seus deveres; que saibam quem irá representá-los e o que os representantes farão; que atuem criticamente em relação aos atos dos representantes; que saibam se organizar para cobrar medidas a quem de direito, atuando no chamado controle social; enfim, que conheçam a realidade e saibam se organizar para lutar por melhores condições de vida. Para tudo isso, é necessário a educação básica da população.
José Murilo de Carvalho, inicia sua obra “Cidadania no Brasil: o longo caminho” fazendo uma exposição acerca da tese de T. A. Marshall, segundo a qual os direitos civis, políticos e sociais, nessa ordem, seguem uma sequência lógica. De acordo com a tese de Marshall, foi com base nos direitos cívicos que os ingleses reivindicaram o direito de votar e, assim, de participar do governo de seu país; essa participação proporcionou a eleição de operários e a criação do partido trabalhista, que se fizeram responsáveis pela introdução dos direitos sociais. O ponto a ser destacado dessa tese, relevante ao presente trabalho, é o fato da educação ter sido uma exceção a essa sequência de direitos.
“Há, no entanto, uma exceção à seqüência de direitos, anotada pelo próprio Marshall. Trata-se da educação popular. Ela é definida como direito social mas tem sido historicamente um pré-requisito para a expansão dos outros direitos. Nos países em que a cidadania se desenvolveu com mais rapidez, inclusive na Inglaterra, por uma razão ou outra a educação popular foi introduzida. Foi ela que permitiu às pessoas tomarem conhecimento de seus direitos e se organizarem para lutar por eles. A ausência de uma população educada tem sido sempre um dos principal obstáculos à construção da cidadania civil e política.” (CARVALHO, 2002, p. 10-11)
A educação, portanto, é condição de implementação da Democracia, dado que somente com uma eficaz educação básica se pode formar uma opinião pública esclarecida, livre de manipulações. Segundo Fernando Galvão de Andréa Ferreira (In: GARCIA, 2004, p. 137-138) a formação de uma opinião pública esclarecida é uma das principais “condições instrumentais da Democracia”: “Sem a formação da opinião pública esclarecida, a democracia não existiria, uma vez que ‘as eleições não seriam mais do que a escolha passional e aleatória dos governantes’”.
“Para que as sociedades modernas alcancem esse objetivo supremo da democracia, precisam educar os seus membros nas regras do jogo, valores e normas democráticos, a partir das bases e desde o início da vida o indivíduo em sociedade. A educação assume aqui claramente uma conotação política. A educação vem a ser o processo de socialização dos indivíduos para uma sociedade racional, harmoniosa, democrática, por sua vez controlada, planejada, mantida e reestruturada pelos próprios indivíduos que a compõem.” (FREITAG apud: FERREIRA, 2004., p. 127-128)
A educação básica se prostra como importante instrumento para o consciente exercício da cidadania (aptidão para o exercício dos direitos políticos, dentre os quais o de votar e ser votado), ou nas palavras de Emerson Garcia, “educação é o passaporte para a cidadania” (GARCIA, 2004, p. 149).
José Murilo de Carvalho (CARVALHO, 2002, p. 18-19) demonstra que a ausência de educação importa em ausência de Democracia e, ainda, na presença da exploração. Em três séculos de colonização (1500-1822) os portugueses construíram uma gigante unidade territorial, linguística, cultural e religiosa no Brasil, não obstante, deixaram também um país sem pátria, sem cidadãos. Isso se deve a uma população analfabeta, uma sociedade escravocrata, uma economia de monocultura e latifúndios e um Estado absolutista. Narra CARVALHO que a escravidão foi o fator mais negativo para a cidadania no Brasil. A ausência de educação impede a formação de consciência quanto à própria natureza de ser humano e da necessidade de lutar por dignidade, por melhores condições de vida, pela liberdade e pelo poder de participar dos negócios públicos.
“Outro aspecto da administração colonial portuguesa que dificultava o desenvolvimento de uma consciência de direitos era o descaso pela educação primária. De início, ela estava nas mãos dos jesuítas. Após a expulsão desses religiosos em 1759, o governo dela se encarregou, mas de maneira completamente inadequada. Não há dados sobre alfabetização ao final do período colonial. Mas se verificarmos que em 1872, meio século após a independência, apenas 16% da população era alfabetizada, poderemos ter uma idéia da situação àquela época. É claro que não se poderia esperar dos senhores qualquer iniciativa a favor da educação de seus escravos ou de seus dependentes. Não era interesse da administração colonial, ou dos senhores de escravos, difundir essa arma cívica.” (CARVALHO, 2002, p. 22-23)
Leonardo Greco, por sua vez, registra que para a população ter acesso ao Direito há necessidade de uma série de pressupostos, dentre os quais aparece como primeiro da lista a formação do cidadão através da educação básica, que infunde no cidadão a consciência dos seus direitos e também dos seus deveres sociais (GRECO, 2001, p. 11).
Aliás, a própria legislação (Lei 9.394/96) reconhece a estrita vinculação entre educação e cidadania:
Art. 2º A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Art. 22. A educação básica tem por finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores.
Art. 32. O ensino fundamental obrigatório, com duração de 9 (nove) anos, gratuito na escola pública, iniciando-se aos 6 (seis) anos de idade, terá por objetivo a formação básica do cidadão […]
Art. 35. O ensino médio, etapa final da educação básica, com duração mínima de três anos, terá como finalidades: II - a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores.
Enfim, os argumentos convencem, as evidências revelam, a história comprova e a legislação declara: a educação é requisito primeiro para cidadania e, consequentemente, para a democracia.
EDUCAÇÃO: NATUREZA DE DIREITO FUNDAMENTAL
Direitos fundamentais são aqueles direitos inerentes à pessoa humana, que decorrem da natureza humana, descobertos numa lenta evolução histórica e que passam a ser reconhecidos na ordem interna com vistas a efetividade. Os direitos fundamentais possuem atributos de universalidade (tendência), imprescritibilidade, irrenunciabilidade e inalienabilidade.
São identificados três principais grupos (ou gerações ou dimensões) de direitos fundamentais que, embora sucessivos entre si, não se excluem, mas coexistem harmoniosamente. São eles: De 1ª geração: os direitos individuais (liberdade, igualdade, etc.) e os políticos (participação nos negócios públicos); De 2ª geração: os direitos sociais (educação, saúde, trabalho etc.); De 3ª geração: os direitos de fraternidade, também chamados direitos difusos (paz, cultura, meio ambiente sadio etc.).
Os direitos de primeira geração, que podem ser enquadrados no ideário político da Revolução Francesa de “liberté”, são direitos que limitam a atuação estatal, conferindo liberdade e igualdade aos cidadãos e dando-lhes a prerrogativa de participar da vida pública. Os direitos de segunda geração, que podem ser enquadrados no ideário político da Revolução Francesa de “egalité”, são direitos que exigem uma prestação positiva do Estado, no sentido de propiciar melhores condições de vida aos menos favorecidos, diminuindo as desigualdades sociais. Essas duas primeiras gerações de direitos são, portanto, aludidos aos indivíduos. A terceira geração de direitos, que pode ser enquadrado no ideário político da Revolução Francesa de “fraternité”, são exigências da sociedade, aludem a um grupo social, atuando no sentido de propiciar a própria existência da sociedade, sendo, a um só tempo, pertencentes a todos e a ninguém em específico.
Embora inserido nos chamados direitos de segunda geração, que, de regra, surgiram após os direitos civis e políticos, a Educação, como já ressaltado em referência à tese de Marshall (descrita na obra de Carvalho, 2002, p. 11), constitui-se uma exceção à ordem de estabelecimento dos direitos, na medida em que figura como “pré-requisito para a expansão dos outros direitos”, sendo ela (a Educação) “que permitiu às pessoas tomarem conhecimento de seus direitos e se organizarem para lutar por eles”.
Essa natureza fundamental da Educação limita o poder constituinte reformador. “Especificamente em relação aos direitos sociais, dentre os quais está o direito à educação, é indiscutível a existência de limites ao poder reformador” (GARCIA, 2004, p. 155), apesar de não mencionado em sua literalidade pelo art. 60, §4º, da Constituição de 1988.
Contribui com essa posição a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, adotada pela Resolução 41/128, da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 4 de dezembro de 1986, em seu art. 6, 2, que assim dispõe: “todos los derechos humanos y las libertades fundamentales son indivisibles y interdependientes; debe darse igual atención y urgente consideración a la aplicación, promoción e protección de los derechos civiles, politicos, económicos, sociales y culturales”.
Os direitos sociais são sim um limite material ao poder constituinte derivado reformador, o que se depreende de uma interpretação teológico-sistemática do texto constitucional, além do que “não se nos afigura legítimo prestigiar o designativo de direitos formalmente fundamentais, o que, em um País de insignificante tradição democrática, abriria um perigoso espaço de valoração para aqueles que ainda não se desprenderam das amarras do passado” (GARCIA, 2004, p. 157).
EDUCAÇÃO COMO MÍNIMO EXISTENCIAL
A expressão mínimo existencial (também podendo ser chamado de núcleo duro ou núcleo comum dos direitos fundamentais) indica a parte dos direitos fundamentais insuscetível de derrogação, que se configura como um mínimo essencial à preservação da dignidade da pessoa humana.
Como sendo o núcleo inderrogável do conjunto dos Direitos Fundamentais (a essência desses direitos), a sua observância é compulsória, ou seja, independe de intervenção legislativa, derivando diretamente do texto constitucional.
“As normas constitucionais que dispõe sobre a educação fundamental, na medida em que asseguram a imediata fruição desse direito, já que, consoante o art. 208, §1º, foi ele tratado como direito subjetivo público, têm eficácia plena e aplicabilidade imediata, prescindindo de integração pela legislação infraconstitucional” (GARCIA, 2004, p. 157).
O mínimo existencial – conteúdo mínimo dos direitos fundamentais – resulta de um processo histórico em que, paulatinamente, vai sendo incorporado aos tratados internacionais, às mais diversas constituições e à ordenação positivada infraconstitucional, tendendo, portanto, à sua universalização.
O direito à educação, em especial a de nível fundamental, é parcela integrante do mínimo existencial. Como já argumentado e demonstrado nos tópicos anteriores, a educação é um pressuposto de concreção de todos os direitos.
O DIREITO A EDUCAÇÃO NA ESFERA INTERNACIONAL
A partir da Segunda Guerra Mundial, intensificou-se as iniciativas de reconhecimento dos direitos fundamentais, tendentes à universalização. Dentre os inúmeros tratados, convenções, pactos e acordos internacionais preocupados em estabelecer uma pauta vinculada à dignidade da pessoa humana, verifica-se uma presença constante do direito à educação. Dentre os documentos internacionais podemos citar:
– A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Resolução 217 (III), da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 10 de dezembro de 1948, em seu art. XXVI;
– A Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, adotada pela Resolução XXX, da IX Conferência Internacional Americana, de abril de 1948 (Bogotá), em seu art. XII;
– A Declaração dos Direitos da Criança, adotada pela Assembleia das Nações Unidas, de 20 de novembro de 1959, em seu 7º princípio;
– A Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para Educação que celebrou, em 14 de dezembro de 1960, a Convenção Relativa à Luta Contra a Discriminação no Campo do Ensino;
– O Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, adotado pela Resolução 2.200-A, da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 16 de dezembro de 1966, em seu art. 13;
– O Protocolo Adicional ao Pacto de São José de Costa Rica (Protocolo de São Salvador), adotado no XVIII Período Ordinário de Sessões de – Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), de 17 de novembro de 1988, em seu art. 13, 3;
– A Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Resolução XLIV, da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 20 de novembro de 1989, em seu art. 28;
– A Declaração Mundial de Educação para Todos, adotada pela Organização das Nações Unidas na Conferência de Jomtien (Tailândia); e, A Declaração de Salamanca, adotada em 1994 pela UNESCO.
São, ainda, exemplos de documentos que comprovam o caráter de mínimo existencial da Educação: a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia; a Constituição espanhola; a Constituição francesa; e, a Constituição portuguesa.
EDUCAÇÃO NA LEGISLAÇÃO NACIONAL
O direito à Educação é figura presente na tradição constitucional brasileira, de forma tímida no passado e com especial relevo na atual Constituição.
A Constituição Imperial, de 1824, de forma bem sucinta, no capítulo relativo às garantias dos direitos civis e políticos dos cidadãos fazia referência à instrução primária, declarando-a gratuita para todos os cidadãos. Assim estava redigido seu art. 179: “a inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte: (...) 32. A instrução primária é gratuita a todos os cidadãos”.
A primeira Constituição republicana, de 1891, em seus arts. 35 e 72, §6º dispôs sobre a obrigação do Congresso de “animar no país o desenvolvimento das letras, artes e ciências”, em “criar instituições de ensino superior e secundário nos Estado” e em “prover a instrução secundária no Distrito federal”; em sua Declaração de Direitos estabelecia que “será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos”.
Não obstante a previsão constitucional, a educação era precária, tendo o censo de 1920 indicado que 65% da população brasileira com mais de 15 anos de idade era analfabeta (FERREIRA, 2004, p. 142).
A Constituição de 1934, efêmera, se mostrou mais comprometida com a educação, proclamando a mesma como direitos de todos e dever do Estado, assegurando o “ensino primário integral, gratuito e de freqüência obrigatória, extensivo aos adultos”. Dedicou todo um capítulo para a educação e a cultura (arts. 148 usque 158), onde estabeleceu competências entre os entes federativos, previu diferenciação tributária para alguns estabelecimentos de ensino, dispôs sobre um mínimo de financiamento, garantiu a liberdade de cátedra, e criou a obrigação de manter fundos de educação, inclusive com o oferecimento aos alunos necessitados de material escolar, bolsas de estudo, assistência alimentar, dentária e médica.
A carta de 1937 estabeleceu a educação como instrumento a serviço da unidade moral e política da nação, além de um incremento às forças produtivas do país. Dedicou todo um capítulo à educação e à cultura (arts. 128 usque 134), onde garantiu à infância e à juventude o acesso a todos os graus de ensino (priorizando o ensino pré-vocacional e profissional), mantendo a gratuidade (para os que alegassem escassez de recursos) e obrigatoriedade do ensino primário.
Com o advento da Carta política de 1946, comprometida com valores democráticos, retornou-se o ideário de 1934, aperfeiçoando-o. Consagrava a educação como direito de todos, assegurando a obrigatoriedade do ensino primário; dispunha em seu art. 168, II que: “o ensino fundamental ulterior ao primário sê-lo-á para quantos comprovarem falta ou insuficiência de recursos”. Foi promulgada a Lei 4.024, de 20.12.1961, que dispunha sobre diretrizes e bases da educação nacional.
A Constituição de 1967 não trouxe alterações substâncias, dispondo sobre a educação nos arts. 167 usque 172 (Da Família, da Educação e da Cultura). Tornava obrigatória o ensino dos sete aos quatorze anos de idade, bem como a gratuidade nos estabelecimentos primários oficiais.
A Emenda Constitucional 1/69 manteve o sistema de 1967, acrescentado a possibilidade de intervenção estadual nos municípios em caso de não aplicação anual, no ensino primário, de 20% da receita tributária municipal. A Emenda Constitucional 24/83 alterou esse percentual para 13% para União e 25% para Estados, Distrito Federal e Municípios.
A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, fruto de um processo de redemocratização do Estado brasileiro, dedicou toda uma seção ao direito à educação (arts. 205 usque 214), incorporando ao seu texto uma grande reformulação da área educacional, cujas finalidades, a teor do art. 205, são: “o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
Estabeleceu, em seu art. 206, os seguintes princípios democráticos educacionais: “I – igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola; II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III – pluralismo de idéias de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; IV – gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; V – valorização dos profissionais do ensino (...); VI – gestão democrática do ensino público, na forma da lei; VII – garantia do padrão de qualidade”.
A Constituição estabeleceu, ainda, um completo arcabouço organizacional da educação, onde destacamos: o estabelecimento de diretrizes gerais; a vinculação de percentuais mínimos das receitas de cada ente federativo; a atuação prioritária de cada ente em cada nível de ensino; divisão de competências legislativas.
Mas o ponto que agora merece maior atenção, para a finalidade aqui estabelecida de relacionar a educação como mínimo existencial, é o tratamento diferenciado dado à educação fundamental.
O ensino fundamental, nos termos do art. 208, inciso I e §1º, da CRFB, é de caráter obrigatório e gratuito, estando expressamente disposto que o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo, e o seu não-oferecimento, ou o oferecimento irregular, importa em responsabilidade da autoridade competente (art. 208, §2º, CRFB). O ensino médio gratuito, por sua vez, deverá ser progressivamente universalizado (art. 208, II, CRFB).
O caráter obrigatório e gratuito, bem como a previsão de constituir-se direito público subjetivo, importa em dizer que a Constituição vigente reconhece o direito à Educação fundamental como parcela inderrogável da uma existência digna do povo brasileiro, integrando, assim, o mínimo existencial.
Sendo, portanto, parcela do conteúdo indissociável da pessoa humana (mínimo existencial), o direito à educação fundamental está diretamente relacionado aos fundamentos da República Federativa do Brasil, em especial à dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, CRFB). Está, ainda, atrelado aos objetivos fundamentais (art. 3º, CRFB): construção de uma sociedade livre, justa e igualitária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, bem como promover o bem de todos, sem preconceitos e discriminações.
A legislação ordinária também vem dando especial atenção ao direito à educação. Demonstrando comprometimento com o ideal de educação como requisito para cidadania, foi promulgada em 20 de dezembro de 1996 a Lei 9.394 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), que deu especial relevo ao conteúdo político da educação, sempre a vinculando com a formação cidadã:
Art. 2º A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Art. 22. A educação básica tem por finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores.
Art. 32. O ensino fundamental obrigatório, com duração de 9 (nove) anos, gratuito na escola pública, iniciando-se aos 6 (seis) anos de idade, terá por objetivo a formação básica do cidadão […]
Art. 35. O ensino médio, etapa final da educação básica, com duração mínima de três anos, terá como finalidades: II - a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores.
A Lei 9.394/96, em seu art. 5º, ainda reforçou a natureza de direito público subjetivo da educação básica obrigatória, conferindo legitimidade ativa a qualquer cidadão, grupo de cidadãos, associação comunitária, organização sindical, entidade de classe ou outra legalmente constituída e, ainda, o Ministério Público, para acionar judicialmente o Poder Público e dele exigi-lo.
Pode ainda ser mencionada a Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, Estatuto da Criança e do Adolescente, que, de forma análoga ao texto constitucional, estabelece em seu art. 54, dentre outras coisas, ser dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente o ensino fundamental obrigatório e gratuito e a progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade do ensino médio, afirmando ser o ensino obrigatório e gratuito direito público subjetivo.
“A educação é direito público subjetivo de todo cidadão. O Estatuto da Criança e do Adolescente, de acordo com a Constituição de 1988, dispondo sobre a proteção integral à criança e ao adolescente, estabelece o direito à educação, assegurado pelo Estado. Mas a Constituição que o Estatuto complementa é um Constituição-“cidadã”, por isso estabelece que a educação, sendo dever do Estado, é também dever da família, da sociedade e de todos. Só o Estado pode dar conta do nosso atraso educacional. Mas não o fará sem o apoio da sociedade. Por isso, é necessário construir uma escola que também seja uma escola-ciadã.” (VASCONCELOS, 2003, p. 197.)
Ao prever a exigibilidade do direito prestacional de educação, em especial a fundamental, bem como a imediata sindicabilidade judicial, o legislador infraconstitucional está atendendo à essencialidade desse direito ao desenvolvimento digno das crianças e adolescentes.
O DIREITO À EDUCAÇÃO E A RESERVA DO POSSÍVEL
Muito embora a Constituição tenha estabelecido uma série de direitos sociais a serem implementados pelo Poder Público (educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados), o seu completo fornecimento se vê comprometido pelos limitados recursos estatais. Os recursos são escassos e as necessidades demasiadamente amplas. O paradigma do Welfare State encontra dificuldades econômicas de sustentação em países de reconhecida limitação de recursos, como o Brasil. Essa incapacidade econômica de implementação integral de todos os direitos prestacionais é a chamada reserva do possível, que pode ter conotação jurídica (ausência de previsão legal dos gastos) ou fática (real inexistência de recursos financeiros para satisfação dos direitos prestacionais).
Tem-se, contudo, um núcleo de direitos que exige um mínimo de exequibilidade, como condição sine qua non de satisfação da dignidade da pessoa humana. Trata-se do mínimo existencial. A implementação de alguns direitos prestacionais dependerá do concurso de complexa rede de circunstâncias de fato e de direito, estabelecendo-se prioridades lógicas. Mesmo dentre os direitos que integram o mínimo existencial, haverá de ser feita uma ponderação para estabelecimento da ordem lógica de atendimento.
O direito à educação fundamental, além de integrar parcela do mínimo existencial, como já demonstrado, constitui dever prioritário do Poder Público em relação às crianças e adolescentes (art. 227, CRFB). Assim, em juízo de ponderação para emprego de recursos existentes, ao direito à educação fundamental deverá ser dada especial relevância.
O art. 4º do Estatuto da Cidade, que praticamente transcreve o art. 227 da CRFB, estabelece que é dever da família, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à educação, dentre outros. Em relação a esse dispositivo, Wilson Donizeti Liberati comenta que:
“Por absoluta prioridade entende-se que, na área administrativa, enquanto não existirem creches, escolas, postos de saúde, atendimento preventivo e emergencial às gestantes, dignas moradias e trabalho, não se deveriam asfaltar ruas, construir praças, sambódromos, monumentos artísticos etc.” (LIBERATI, 2004, p. 19)
Em relação à reserva do possível fática, pouco se poderá fazer para compelir o poder público a cumprir seu dever jurídico, ante a uma total impossibilidade material que justifica a desídia. Já no que tange à reserva do possível jurídica, decorrente tão somente da ausência de previsão orçamentária, não de receita, Garcia orienta que
“deverá prevalecer o entendimento que prestigie a observância do mínimo existencial (...) com o conseqüente afastamento do princípio da legalidade da despesa pública. Não fosse assim, seria tarefa assaz difícil compelir o Poder Público a observar os mais comezinhos direitos assegurados na Constituição da República e na legislação infraconstitucional, o que terminaria por tornar legítimo aquilo que, na essência, não o é. Não é demais lembrar que, ao consagrar direitos, o texto constitucional implicitamente impôs o dever de que sejam alocados recursos necessários à sua efetivação” (GARCIA, 2004, p. 190-191).
A alegação de reserva do possível, salvo pela absoluta impossibilidade material, não exime o Poder Público de cumprir suas obrigações com o mínimo existencial, onde destacamos a educação fundamental. Isso se aplica, em especial, à educação de crianças e adolescentes, tendo em vista o comentado princípio da absoluta prioridade.
CONCLUSÕES
A Educação constitui-se pré-requisito para expansão de todos os outros direitos, sejam eles civis, políticos ou sociais. Atua como “passaporte para cidadania”, sendo mecanismo instrumental para implementação da democracia. É a educação que dá ao ser humano a capacidade de conhecer-se como tal, dotado de dignidade, propiciando-lhe lutar por novos direitos, e lhe conferindo o entendimento do porque de cumprir com seus deveres cívicos.
Inserido no rol dos direitos sociais, que integram os chamados direitos de segunda geração, o direito à Educação constitui-se direito fundamental, servindo, ainda, de limite material às reformas constitucionais.
A educação fundamental integra o denominado mínimo existencial, o que se verifica com seu paulatino reconhecimento em inúmeros documentos internacionais inerentes aos direitos humanos, bem como nas mais diversas constituições, fazendo parte da tradição constitucional brasileira, e recebendo especial atenção no vigente texto constitucional e legislação ordinária nacional.
A educação fundamental constitui norma de eficácia plena e aplicabilidade imediata, o que autoriza ingressar em juízo para requerer que o Poder Público seja compelido a prestá-la.
Tratando-se de direito público subjetivo, e fazendo parte do conteúdo do mínimo existencial, contra a efetivação da Educação fundamental não cabe alegação de reserva do possível, salvo em caso absoluta e provada impossibilidade material (absoluta ausência de recursos nos cofres do Estado).
REFERÊNCIAS
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