V. Breve desenvolvimento das hipóteses.
Primeira hipótese. Interesses públicos e privados normalmente se harmonizam. Esta é a regra primordial do sistema. Os diversos princípios e direitos fundamentais guardam uma conexão de sentido que impõem a idéia de unidade, de mútua complementação e autodelimitação [54].
Nota-se a verificação desta hipótese geral quando se analisa, por exemplo, o instituto da propriedade privada [55] e de sua função social. Interesses privados e coletivos, nesta sede, não se excluem. Ambos, a um só tempo, encontram-se albergados numa síntese dialética: a propriedade nem se presta apenas para satisfazer os interesses exclusivos do proprietário e nem tampouco justifica um sentido de coletivização ou funcionalização absoluta de sua utilização [56].
O mesmo ocorre quando se compreende a síntese entre livre iniciativa e livre concorrência, onde um é limite do outro, numa balança razoável entre interesses públicos – consumidor, proteção do mercado etc. – e privados – vg., lucro, liberdade de constituição e desenvolvimento das atividades empresariais e assim por diante [57].
Portanto, no quadro da primeira hipótese de análise, não há que se falar em supremacia do interesse público sobre o interesse privado na medida em ambos se integram.
Segunda hipótese. Poder constituinte originário opta, inicialmente, a priori, pela prevalência de um interesse em relação ao outro. É o caso do art. 5º, XXV, por exemplo, onde a Lei Fundamental opta, em certas condições, pela preferência ao interesse público. Já na hipótese do art. 5º, XI nota-se nítida preferência ao interesse privado, que somente cederá ao interesse público nas exceções da segunda parte do enunciado normativo. Ou seja, a regra neste caso é a tutela da privacidade, sendo que o interesse público configurado pelas expressões flagrante delito, desastre, prestação de socorro etc. entram como excepcionalidades. Ninguém poderá dizer que o interesse prevalecente é o público e a privacidade, nas situações da primeira parte do enunciado, exceção.
Nesta hipótese de análise, como já se afirmou anteriormente, não se vê autorizada a extração de um princípio geral de supremacia do interesse público sobre o privado. O critério de prevalência do interesse público, em tais situações, é casual. A ponderação, in abstrato, realizada pelo constituinte originário, ora pende aos interesses públicos e ora aos privados. Logo, daí não se infere a supremacia de um ou de outro.
Terceira hipótese. A Constituição autoriza que lei (infraconstitucional) restrinja o interesse particular, em determinadas situações, em favor do interesse público. Neste caso, sempre deverá cobrar-se observância da razoabilidade, proporcionalidade, proibição do excesso e preservação do núcleo essencial. Formalmente, a autorização deverá ser expressa etc. É a situação típica do art. 5º, XII (sigilo de dados e comunicações telefônicas). Note-se que o interesse público, aqui, mesmo quando justifica a restrição do interesse particular, não é absoluto. O interesse público prevalece em certas condições materiais (necessidade, adequação e proporcionalidade estrita etc.) e formais (fim de instrução processual penal ou investigação criminal, na forma da lei, por autorização judicial...). Sem as condições, o interesse público sucumbe. Logo, reitere-se, não é absoluto.
Mais uma vez, portanto, nesta terceira hipótese de trabalho, não há que se falar em irrestrita supremacia do interesse público sobre o privado eis que o público só poderá prevalecer em determinadas condições que não impliquem em negação absoluta dos interesses privados (idéias, repise-se, de preservação do núcleo essencial e de proibição do excesso na restrição).
Quarta hipótese. São aqueles casos de colisão de interesses privados e públicos não referidos diretamente e explicitamente pela Constituição. Imagine-se a situação onde eventualmente entrem em colisão interesses privados na manutenção de algumas cláusulas de contrato administrativo e a necessidade de alteração contratual para atendimento de algum interesse público. Ou, ainda de modo mais claro, as diversas situações em que se discute o cabimento de declaração de inconstitucionalidade (evidentemente por razões de ordem pública) sem pronúncia de nulidade (onde se pondera boa-fé dos particulares, segurança nas relações jurídicas, proibição de enriquecimento sem causa etc.). São exemplos em que não se pode, previamente, sem os dados do caso concreto, determinar qual interesse deverá prevalecer. Eventualmente o privado cederá ao público (afirmando-se preferência no caso concreto a este) mas, eventualmente, o público cederá ao privado (como sucede em geral quando não se pronuncia a nulidade do ato).
Destarte, mais uma vez, não será aqui que o interesse público afirmará uma incondicional supremacia sobre os interesses privados.
VI. Reflexões finais.
Nota-se, a partir do exposto, que no plano da dogmática de realização constitucional não se sustenta, portanto, a tese indiscriminada de existência de um princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. A idéia de supremacia do público só se verifica em algumas situações específicas e sempre dentro de condições definidas e limitadas constitucionalmente.
Nada obstante, em sentido contrário, a doutrina do Direito Administrativo brasileiro e a práxis jurisprudencial têm trabalhado na perspectiva de existência de um pressuposto princípio de supremacia do interesse público. E mais, não se tem levado em consideração as diversas hipóteses e limitações às quais, quando se manifesta, deve se vincular. Tem-se olvidado que, ainda quando referida supremacia do interesse público se manifesta, constitucionalmente, legalmente ou mediada pelo juiz, como critério de solução de colisão de interesses ou bens constitucionais, ela não poderá ser absoluta, eis que utilizada como medida de ponderação (e, logo, mais uma vez, não poderá ser absoluta).
Destarte, a tese inicial de Humberto Bergmann ÁVILLA [58] no sentido de que o discutido princípio da supremacia do interesse público sobre o privado explicita, antes, uma regra de preferência, também a partir da abordagem sugerida no presente trabalho, parece ser verdadeira. Como se nota, contudo, o presente texto chega em idêntica conclusão a partir de uma metodologia e de referenciais dogmáticos diversos. Trata-se, assim, da proposta de outra abordagem para corroborar com a reflexão colocada em pauta pelo Professor gaúcho.
Com isso tem-se que a inexata compreensão da categoria analisada, vista como verdadeiro princípio geral de Direito Público, tem proporcionado que a idéia de supremacia do interesse público sobre o privado funcione como verdadeira cláusula geral de restrição dos direitos, liberdades e garantias fundamentais, olvidando os seus limites e distorcendo todo o regime constitucional dos direitos fundamentais.
Haverá, todavia, aqueles que afirmarão, com Ronald DWORKIN, que o simples fato de se imaginar a hipótese de ponderar os interesses públicos diante dos privados (e vice-versa) fará com eles devam ser compreendidos na categoria dos princípios [59]. Afinal, na distinção entre regras e princípios proposta pelo autor citado, estes se caracterizam pela possibilidade de ponderação (lógica de peso, qualidade e importância), enquanto aqueles submetem-se à lógica da validade, do tudo ou nada [60]. Assim, subsistiria a possibilidade de afirmar-se a existência de um princípio de supremacia do interesse público sobre o privado.
Nada obstante, esta espécie de raciocínio não seria verdadeira. O que se pondera, em todas as situações analisadas neste ensaio, não é, propriamente, a supremacia do interesse público mas, sim, o próprio interesse público. De onde se poderia conceber, afinal, a existência, na perspectiva de Ronald DWORKIN, de um princípio material do interesse público, mas jamais a existência de um princípio que afirme a sua supremacia.
Por certo a conclusão não possui o condão de ilidir a existência do chamado regime jurídico do Direito Administrativo. Este, por óbvio, poderia sustentar-se no suficiente e bastante princípio da tutela do interesse público, este sim, um princípio constitucional implícito, relativo e ponderável.
Como restou afirmado no início do texto, então, o problema que se verifica na dogmática do Direito Público não decorre do questionamento da existência ou não de um princípio constitucional implícito de tutela do interesse público ou de uma adequada compreensão do seu conteúdo. O cerne do debate está, sim, nos aspectos formais de como ele vem sendo colocado. Da afirmação de sua supremacia, de sua entronização num patamar hierárquico privilegiado.
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