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A Justiça e o Direito da Índia

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Agenda 13/12/2003 às 00:00

4 – O DIREITO INDIANO

O Serviço Judiciário da Índia, que conquistou uma boa reputação pela sua coragem e espírito de independência, e que avançou por novos terrenos dentro da ação judiciária, sofre de males diversos. No entanto, a população investiu muito em confiança e consideração por ele.

(David ANNOUSSAMY)

O Direito indiano é o Direito estatal, que somente passou a existir a partir da presença inglesa na Índia, com marcados traços de common law.

No site http://www.droitcivil.uottawa.ca/world-legal-systems/fra-tableau.html#i da Faculdade de Direito da Universidade de Ottawa (Canadá) é classificado o sistema jurídico da Índia como misto (common law/muçulmano/costumeiro). Abordaremos neste estudo apenas o primeiro e o terceiro devido às suas peculiaridades.

4.1 – GENERALIDADES

Nesta parte seguiremos sobretudo DAVID (1996), jurista mais conhecido, apesar de ANNOUSSAMY (2001) ser mais rico em detalhes até pelo fato de ser indiano de nascimento e ter desenvolvido toda sua vida de magistrado e jurista na própria Índia.

Entretanto vale a pena trazer para o Leitor uma observação esclarecedora de ANNOUSSAMY (2001:10):

O Direito moderno se baseia deliberadamente na Filosofia do Direito europeu, baseada na preponderância da pessoa humana. Essa orientação acentuou-se após a independência com a adoção de uma Constituição inspirada nos Direitos Humanos.

E, estabelecendo um parelelo entre o Direito indiano e o Direito hindu, diz ANNOUSSAMY (2001:10):

Enquanto que este último visava a preservação de uma sociedade fortemente hierarquizada, o novo Direito aspira a uma transformação social para fazer reinar a igualdade.

ANNOUSSAMY (2001:25) afirma a importância do "princípio do precedente":

As Cortes Superiores da Índia chegaram igualmente a afirmar com força o princípio dos precedentes. Elas não só determinaram que os tribunais inferiores eram obrigados a seguir suas decisões, como também declararam que toda recusa seria considerada como ato de insubordinação.

4.1.1 – DEFINIÇÃO

DAVID (1996:453) esclarece:

O Direito hindu é o de uma comunidade fundada sobre a vinculação estreita e uma religião. Este Direito tende a ser substituído, atualmente, por um Direito nacional, cuja aplicação é independente da filiação religiosa dos interessados. A tendência atual na Índia é substituir o conceito tradicional de Direito religioso (Direito hindu, Direito parsi, Direito muçulmano, Direito Canônico) pelo conceito ocidental de um Direito laico, autônomo em relação à religião. Este Direito nacional da Índia é chamado Direito indiano, por oposição ao Direito hindu. Ele compreende todas as leis da Índia que são, em princípio, de aplicação geral, mesmo quando disposições particulares destas leis as declaram inaplicáveis a certas categorias de cidadãos. O Indian Succession Act, por exemplo, é considerado como fazendo parte do Direito indiano, embora esteja previsto expressamente nesta lei que, com exceção de algumas disposições, ela não se aplica nem aos hindus, nem aos muçulmanos, nem aos budistas, nem aos parsis e que deixa fora do seu domínio a imensa maioria da população da Índia em tudo o que respeita às sucessões ab intestato.

4.1.2 – LEX LOCI

DAVID (1996:453-454) explica:

A noção de Direito territorial (lex loci), que concebe o Direito como um corpo autônomo de regras em relação à religião ou à tribo, é uma noção ocidental, moderna, estranha à tradição da Índia. Era desconhecida na Índia antes do domínio britânico, O Direito muçulmano era então, é certo, o único Direito aplicável pelos tribunais, cujo acatamento era assegurado pelas autoridades públicas, mas não podia, só por isto, ser considerado como um Direito territorial; o Direito muçulmano está ligado à religião do islã e é, pela sua própria natureza, inaplicável aos não-muçulmanos, quer se trate de cristãos, judeus ou gentios (gentoos), como eram então qualificados os hindus. Apenas em matéria de Direito criminal se aplicava aos hindus, na maior parte da Índia, o Direito muçulmano. Nas outras matérias deixava-se que aplicassem entre eles os seus costumes; não existia Direito territorial.

A criação de um Direito territorial impôs-se na Índia sob o domínio britânico. A constituição de um tal Direito surgiu como o melhor meio de regular as relações entre pessoas pertencentes a comunidades diferentes. Por outro lado, Direito muçulmano e Direito hindu deixavam fora da sua aplicação comunidades importantes da população da Índia 8: cristãos, judeus, parsis e pessoas cuja integração numa comunidade era duvidosa. Impunha-se a criação de um Direito territorial para uso destas populações, cada vez mais numerosas, a partir sobretudo do momento em que a Índia, em 1833, se abriu aos europeus. Direito muçulmano e Direito hindu, enfim, comportavam grandes lacunas, mesmo concedendo que em teoria eles estavam aptos a regular todas as espécies de relações; o desenvolvimento da Índia seria favorecido se, para regular as novas relações, se instituísse um Direito territorial comum aos muçulmanos e aos hindus, assim como aos habitantes pertencentes a outros credos.

4.1.3 – A LEX LOCI NAS PRESIDÊNCIAS

DAVID (1996:454-455) diz quanto ao Direito das cidades mais importantes, diferente das demais:

Qual vai ser este Direito territorial e como ele vai poder ser constituído? A resposta a estas duas questões variou em razão da complexidade e evolução política e constitucional da Índia.

Nas instâncias de Bombaim, de Calcutá e de Madras (Presidency Towns) os tribunais reais, criados desde a origem do domínio britânico, receberam instruções no sentido de aplicarem, em princípio, o Direito inglês, tal como era aplicado no ano de 1726. Contudo, este princípio comportava duas ressalvas. O Direito inglês só era aplicável sob reserva dos regulamentos (Regulations) que em certas matérias podiam ter sido definidos pelas autoridades locais. Só era aplicável, por outro lado, na medida em que a sua aplicação parecesse possível no meio particular da Índia.

Por último, e em especial, a competência dos tribunais reais abrangia originariamente apenas os litígios em que um dos interessados era inglês ou os litígios para os quais esta competência era formalmente admitida pelos pleiteantes. Quando, em 1781, a competência dos tribunais ingleses se estendeu a todos os litígios, especificou-se que, para os litígios privados, interessando a muçulmanos os hindus, o tribunal estatuiria, conforme o caso, segundo o Direito muçulmano ou hindu, O Direito, fundado sobre o Direito inglês, aplicado nas Presidências é, todavia, a origem daquele que viria a ser o Direito anglo-indiano ( Anglo-Indian Law).

4.1.4 – A LEX LOCI NO MOFUSSIL. 1º PERÍODO

DAVID (1996:455-456) mostra como, num primeiro tempo, era o Direito das localidades menos destacadas:

No restante da Índia, chamado mofussil ou muffassal, a situação era diferente. Os tribunais estabelecidos no moíussii não são tribunais reais ingleses, mas tribunais da Companhia das Índias (East India Company); esta tem, desde 1765, em virtude de um privilégio (diwani grant) que lhe fora concedido, o direito de cobrar impostos mediante o pagamento anual de uma soma adjudicatória ao imperador (Mo gol); a este direito está ligado o de administrar a justiça. Esta situação durará até 1858, data em que o governo da Índia ficará sob a autoridade direta da Coroa.

A necessidade de aplicar o Direito inglês não era sentida no mofussil. A aplicação deste Direito teria sido, de resto, difícil. Por conseqüência, fez-se uma distinção, cuja origem se encontra no "plano" estabelecido em 1772 pelo governador-geral Warren Hastings. Em matéria de sucessões, de casamento, de casta e de outros usos ou instituições ligados à religião há lugar para a aplicação, segundo os casos, das regras do Direito hindu ou das do Direito muçulmano. Noutras matérias convém estatuir segundo os princípios de justiça, de eqüidade e de consciência (principies o! justice, equity and good conscience). Esta fórmula é a de um regulamento de 1781, que cria dois tribunais superiores, um em matéria civil (Sadar Diwani Adaiat), outro em matéria penal (Sadar Nizamat Adalat) para as províncias de Bengala, Bihar e Orissa. Ela é retomada no Indin High Courts Act de 1861, que reorganiza a justiça em toda a Índia. A situação no moi ussií é, por conseqüência, a seguinte: por um lado, o Direito muçulmano e o Direito hindu, limitados a certos domínios específicos, não têm o mesmo alcance de aplicação que nas Presidências; por outro lado, o Direito que deve, além deles, ser aplicado não é, como nas Presidências, o Direito inglês: os tribunais devem encontrar a regra de Direito aplicável, procurando a solução mais conforme aos princípios da justiça, da eqüidade e da consciência.

Esta fórmula, como recentemente mostrou um autor, não teve por objeto proteger a importação do Direito inglês, mas sim excluir a aplicação da common law. Também, numa primeira fase, um importante lugar foi deixado à sabedoria daqueles que eram chamados a solucionar os litígios. Nenhuma "recepção" deliberada do Direito inglês teve lugar nesta época, pelo menos de modo geral, a partir da fórmula que a lei empregava. A justiça era então feita pelos administradores civis (Revenue 0/1 icers), que não eram juristas e nem conheciam o Direito inglês, e os debates realizavam-se muitas vezes numa das línguas da Índia. Por outro lado, o Direito inglês não parecia o mais apropriado para as populações nas quais os ingleses eram em número insignificante. Aplicaram-se principalmente, ao que parece, as regras que pareciam, aos olhos dos administradores, considerando a religião que professavam e todas as demais circunstâncias, ser as mais aptas a realizar a justiça: regras do Direito hindu ou do Direito muçulmano, costumes locais ou regras que pareciam ser simplesmente as mais eqüitativas segundo o bom senso do juiz, porque uma "notável ausência de princípios jurídicos indígenas" caracterizava a situação.

4.1.5 – A LEX LOCI NO MOFUSSIL. 2º PERÍODO

DAVID (1996:456-458) mostra como, num segundo tempo, passou a ser o Direito das regiões "interioranas":

Inicia-se um segundo período com o Charter Act de 1833. A fórmula da codificação, que triunfou na França e que teve na própria Inglaterra numerosos partidários, parece ter desempenhado serviços relevantes na Índia. Ela irá servir, neste país, para conferir segurança e unidade ao Direito, no interesse da justiça e do desenvolvimento do país; ela permitirá a recepção de um Direito inglês sistematizado, simplificado, modernizado e adaptado às condições próprias da Índia.

Um law member, verdadeiro ministro da justiça, é acrescentado em 1833 ao conselho de três membros que assiste o governador-geral no governo da Índia. A primeira personalidade nomeada para este posto, o futuro Lorde Macaulay, é, como muitos dos seus contemporâneos, um fervoroso admirador de Bentham e da codificação, prevista formalmente pela seção cinqüenta e três do Charter Act. Uma primeira Law Commission, sob a sua presidência, vai funcionar de 1833 a 1840; dessa gestão resultará um famoso relatório conhecido sob o nome de Lex Loci Report. A comissão projeta a elaboração de três códigos: um que exponha sistematicamente as regras do Direito muçulmano, um segundo código que exponha as regras do Direito hindu, e um terceiro que exponha as regras do Direito territorial (lex loci) que será aplicável sempre que o Direito hindu e muçulmano não o sejam; este terceiro código porá fim à diversidade do Direito que se observava entre as diversas regiões da Índia, e especialmente entre as regras e os próprios princípios de decisão seguidos nas Presidências por um lado, no mofussil por outro. No que se refere a este terceiro código, a comissão propõe tomar por base o Direito inglês, salvo certas exceções e observando certas adaptações; uma cláusula geral salvaguardará os costumes estabelecidos e os usos imemoriais aos quais os indígenas estão submetidos.

As propostas feitas pela primeira comissão, e especialmente um projeto de código penal por ela preparado, não produziram um resultado imediato. O princípio da codificação, por ela admitido, encontrava nos juristas da common law sérias resistências, e o projeto de códigos relativos ao Direito hindu e ao Direito muçulmano, por outro lado, suscitava graves objeções. Uma segt.mda comissão, constituída em 1853, abandona estes dois últimos projetos e concentra os seus esforços no estabelecimento de uma lex loci. Foi necessário, porém, esperar pelo choque provocado pela rebelião de 1857 e pelas reformas constitucionais que estas revoltas provocaram, para que fossem realizados progressos substanciais.

Segue-se um intenso movimento legislativo, de 1859 a 1882. Constituiu-se, então, um vasto corpo de Direito indiano, com a cooperação de duas novas comissões, tendo a sua autoridade substituído aquela que se atribuía precedentemente ao Direito inglês nas Presidências, por um lado, e, por outro, à jurisprudência do molussll, fundada sobre os princípios da justiça. Este processo iria em seguida se abrandar, sem contudo cessar.

Os principais elementos do Direito indiano são constituídos por diferentes códigos e por grandes leis. É curioso constatar que se deu o nome de códigos às leis indianas somente nos casos em que eles, quanto ao seu conteúdo, correspondiam a um dos códigos do modelo napoleônico. Assim, existe na 1 ndia um código de processo civil (1859, atualmente substituído por um código de 1908), um código penal (1860), um código de processo penal (1861). As outras grandes leis, que codificaram a common law da Índia, não são chamadas códigos. Podemos citar a lei sobre a prescrição (Limitation Act, 1859), a lei sobre as sucessões (Succession Act, 1865, hoje substituída por uma lei de 1925), a lei sobre os contratos (Contract Act, 1872) 14, a lei sobre as provas (Evidence Act, 1872), a lei sobre a execução específica das obrigações (Specijic RelieJ Act, 1872), a lei sobre os atos do comércio (Negotiable Instruments Act, 1881), sobre a transferência de propriedade (Trans ler 01 Property Act, 1882, emendada em 1929), a dos trusts (Trusts Acts, 1882), etc. Notar-se-á que, tal como na França, o Direito da responsabilidade delitual (torts) não foi codificado; um projeto preparado por sir Frederick Pollock, que visava esta codificação, não chegou a realizar-se.

4.1.6 – A RECEPÇÃO DO DIREITO INGLÊS

DAVID (1996:458-459) comenta sobre como o Direito inglês foi sendo difundido na Índia:

Por efeito destas diversas leis, que foram elaboradas por juristas ingleses e muitas vezes mesmo em Londres, operou-se na Índia uma verdadeira recepção do Direito inglês. Esta recepçao foi confirmada ao término do estatuto particular da East India Company, em 1858, com a abolição da soberania nominal do Mogol e quando a justiça, depois de uma reorganização dos tribunais, veio, em 1861, a ser administrada cada vez com mais freqüência, em todo o território da Índia, por juízes formados na common law. Estes, muito naturalmente, completaram a obra de recepção realizada pelo legislador e consideraram, contrariamente à verdade histórica, que por "princípios de justiça, de eqüidade e de consciência" se deveria entender as regras do Direito inglês. A evolução pode ser considerada como concluída em 1887, data em que a Comissão Judiciária do Conselho Privado, que controla como instância superior a administração do Direito na Índia, a consagra: "A eqüidade e a consciência podem ser interpretadas, de um modo geral, como significando as regras do Direito inglês, se estas forem consideradas suscetíveis de aplicação à sociedade e no contexto próprio da nação indiana".

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4.1.7 – A ORIGINALIDADE DO DIREITO INDIANO

DAVID (1996:459-460) afirma a identidade do Direito indiano [7], apesar de fortemente influenciado pelo Direito inglês:

Os códigos e leis com que a Índia foi dotada, na época do domínio britânico, são fundados sobre os conceitos do Direito inglês. Estão, porém, longe de ser uma obra de simples consolidação; não se limitaram a expor sistematicamente as regras do Direito anterior; a codificação foi utilizada para reformar o Direito. Os autores do código penal declararam formalmente que tinham sido influenciados na sua obra pelo código penal francês e pelo código penal da Louisiana, confissão que deveria ter sido cuidadosamente evitada na Inglaterra. Os codificadores do Direito indiano não temeram tampouco introduzir, nos seus códigos e leis, as reformas que julgaram desejáveis no Direito inglês: na lei sobre os contratos, por exemplo, foram dadas soluções originais no tocante aos contratos celebrados por menores, aos contratos formais, à impossibilidade de execução e à responsabilidade contratual; foi igualmente consagrada uma concepção diferente de ordem pública (public policy). A codificação indiana, por esta razão, revela um progresso acentuado em relação ao Direito inglês; ela foi o modelo seguido pelos que, na África Oriental e no Sudão, pretendiam codificar os seus direitos, continuando fiéis aos sistemas de common law.

As particularidades da Índia foram naturalmente levadas em conta na codificação indiana. Comprovam especialmente esta observação as incriminações mantidas pelo código penal, ou, em relação ao código de processo civil, a eliminação do júri em matéria civil; na lei sobre os contratos notar-se-ão as regras relativas à coação, à cessão de direitos litigiosos e àassistência dada aos pleiteantes (maintenance e champerty) e às cláusulas restritivas da liberdade comercial; na lei sobre as sucessões notar-se-a, também, a eliminação de toda a distinção entre real e personal property, o desaparecimento da declaração das liberalidades e a simplificação trazida às formas inglesas do testamento.

4.1.8 – A LIGAÇÃO À FAMÍLIA DA COMMON LAW

DAVID (1996:460-461) mostra como o Direito da Índia faz parte da família da common law:

Quaisquer que pudessem ter sido as reformas operadas, e apesar da importância atribuída à técnica da codificação e ao Direito legislativo, o Direito da Índia continuava antes da independência a pertencer à família da common law.

Pertencia a esta família, antes de mais nada, pela sua terminologia e pelos seus conceitos. As soluções do Direito indiano podem não ser as mesmas do Direito inglês; no entanto, elas inserem-se em quadros e utilizam conceitos que são próprios da common law. Um grande número de conceitos relativos ao Direito tradicional da Índia foi eliminado.

O Direito indiano liga-se à common law, em segundo lugar, pelas suas técnicas e pela própria concepção que ele tem da regra de Direito. Os indianos podem ter utilizado a técnica da codificação para reformar o seu Direito, porém os seus códigos são códigos de common law, que os juristas da Índia utilizam da mesma maneira como são utilizados estes materiais legislativos nos países de common law.

A regra do precedente é admitida e chega mesmo a ser oficializada como nunca o fora na Inglaterra. Compilações de decisões judiciárias foram publicadas na Índia desde 1845, e a iniciativa privada continuou a publicar numerosas compilações: a publicação de compilações oficiais foi considerada, depois de 1861, como uma tarefa que a administração devia assumir, devendo esta dar a conhecer do mesmo modo tanto o Direito de origem judiciária como o Direito de fonte legislativa.

No que se refere aos conceitos e técnicas, o Direito indiano é incontestavelmente aparentado com a família da common law. O exemplo do código penal indiano é a este respeito característico. Macaulay, o seu autor, considerava o Direito criminal inglês da sua época como atrasado e bárbaro, e era sua intenção formular um código independente de todo e qualquer sistema de Direito criminal existente; a Comissão Jurídica, no seu relatório de introdução ao código, envolve na mesma censura o Direito muçulmano, o Direito hindu e o Direito inglês. Elaborado por juristas ingleses, o código penal indiano surgiu, contudo, logo que foi terminado em 1860, como um código fundado sobre a common law: o código indiano rejeitara todas as soluções ultrapassadas do Direito inglês, mas permanecia fundado sobre os conceitos e maneiras de pensar dos juristas ingleses; podia-se mesmo encará-lo por esta razão, como um verdadeiro código-modelo para uso da Inglaterra.

A Índia não se liga à common law apenas pelos conceitos e técnicas do seu Direito. Está ainda ligada a esta pela concepção que aí existe da função judiciária, pela importância que aí se atribui à administração da justiça e ao processo e pela idéia que aí se faz da supremacia do Direito (rule of law). Os indianos depositam a sua confiança num bom processo, decalcado do processo inglês, para atingir uma solução justa quanto ao fundo. A psicologia dos seus juristas e dos seus juízes é, por outro lado, a dos juristas e juízes ingleses, com o mesmo prestígio ligado à função judiciária, o mesmo papel preponderante é, na Índia como na Inglaterra, atribuído ao Poder Judiciário, implicando a negação da distinção entre Direito público e Direito privado. Os tribunais devem exercer um controle geral sobre todo contencioso, sem que haja lugar para distinguir se o autor de uma infração ou aquele que infringiu uma regra de Direito é um particular ou um agente da administração.

4.1.9 – AS DIFERENÇAS EM RELAÇÃO AO DIREITO INGLÊS

DAVID (1996:461-462) diferencia o Direito indiano do Direito inglês:

Não é necessário levar estas conclusões demasiado longe. Desde a origem, existem elementos que diferenciam profundamente os direitos da Inglaterra e os da Índia 23, A distinção inglesa da common law e da equity não se faz na Índia. Isto éfacilmente explicável. Nunca existiram na Índia jurisdições especiais para aplicar as regras da equity. Os mesmos tribunais foram sempre convocados para aplicar, ao mesmo tempo, a common law e a equity. Por esta razão, na Índia, chegou-se desde o início a uma conclusão idêntica àquela para a qual os tribunais ingleses se encontram irremediavelmente voltados após a reforma dos Judicature Acts em 1873-75: common law e equity são considerados como um sistema único; segundo a fórmula de um juiz, a equity, na Índia, encontrou o seu lugar na common law e não em oposição à common law. A fusão assim realizada, da common law e da equity, conduziu a uma consideração muito diferente da inglesa da figura do trust; a terminologia indiana ignora, nesta matéria, a distinção inglesa dos direitos (legal rights) e dos interesses protegidos (equitable interests); para o jurista indiano, se a propriedade pertence ao trustee, o beneficiário do trust não é menos titular de um verdadeiro direito.

Em matéria de direitos reais, a terminologia do Direito inglês foi conservada. Mas é aplicada para organizar um regime fundiário tão diferente do inglês que se pode perguntar se a identidade de terminologia não cria somente uma falsa aparência; os conceitos que se batizaram com nomes ingleses parecem ser muitas vezes, nesta matéria, diferentes na Índia e na Inglaterra.

O Specific Relief Act de 1877 manifesta também a originalidade do Direito indiano. Esta lei reagrupou regras que, diferentes pela sua origem, parecem apresentar aos olhos dos ingleses um caráter completamente heteróclito: regras de equity referentes à execução in natura das obrigações contratuais ou outras, mas também à retificação ou anulação dos escritos de onde derivam as obrigações, regras relativas à restituição dos bens indevidamente detidos ou usurpados, regras respeitantes às ordens que um tribunal de common law pode dirigir à administração (mandamus).

O Direito internacional privado da Índia inspira-se em soluções do Direito inglês. Contudo, a atenção dos juristas da India, neste domínio, dirige-se principalmente para as questões de conflitos entre leis de estatuto pessoal, que não se apresentam sob o mesmo aspecto e são, afinal, secundárias para os juristas ingleses.

4.1.10 – A INDEPENDÊNCIA: CONFIRMAÇÃO DO DIREITO ANTERIOR

DAVID (1996:462-463) comenta sobre a continuidade do Direito indiano :

A independência da Índia não acarretou uma revisão dos conceitos implantados na época da dominação britânica, nem tampouco colocou em perigo a obra legislativa realizada.

A Constituição de 1950 proclamou a manutenção em vigor do Direito anterior (art. 372). A Índia, que continua a pertencer ao Commonwealth [8], permanece sendo um país de common law. Entretanto, sob diversos aspectos, se reduziu a ligação com o Direito inglês. Mesmo independentemente das matérias referentes ao estatuto pessoal, onde participar de uma determinada comunidade constitui um fator decisivo, o Direito indiano apresenta, no interior da common law, uma indubitável originalidade, comparável à que vimos existir no diretio dos Estados Unidos, em relação ao Direito inglês.

4.2 - MATÉRIAS ESPECÍFICAS

4.2.1 - DIREITO CONSTITUCIONAL

DAVID (1996:463-465) comenta sobre o Direito Constitucional indiano:

Esta originalidade aparece especialmente para quem considera o Direito constitucional da Índia. A Constituição da Índia, promulgada em 1950, comporta trezentos e noventa e cinco artigos agrupados em duas partes e oito anexos. A própria existência deste documento e a União de Estados que ele constitui 28 distinguem a Índia da Inglaterra, que não é um Estado federal nem tem Constituição escrita. Por outro lado, a diferença, embora não tão marcada, não deixa de ser considerável com os Estados Unidos da América.

Em ambos existe, sem dúvida, uma estrutura federal, mas os Estados da Índia dificilmente podem ser comparados aos Estados Unidos da América, porquanto a unidade linguística, que constitui um fator de unidade nos Estados Unidos, não existe na Índia. Quinze línguas, que pertencem a quatro grupos linguísticos diferentes, são reconhecidas como oficiais nos diferentes Estados. A disposição da Constituição, que prevê que o hindi seja a língua oficial da União, dificilmente se tornará uma realidade no subcontinente indiano que, neste aspecto, se assemelha mais à Europa do que aos Estados Unidos da América.

Independentemente disto, as relações entre Estados e União não puderam ser regulamentados do mesmo modo que nos Estados Unidos. A repartição de poderes entre os Estados e a União não se operou da mesma maneira nem na forma, nem quanto ao fundo. Não existe na Constituição da Índia nenhuma disposição análoga à que se encontra na dos Estados Unidos, definindo o princípio de que a competência dos Estados é a regra e a das autoridades federais a exceção; a Constituição da Índia enumera certas matérias da competência exclusiva da União (noventa e sete artigos) e outras que são da competência dos Estados (sessenta e seis artigos); outras, finlamente, cuja competência cabe a ambos, porque nesse caso a unificação surge como desejável, mas não como absolutamente necessária (quarenta e quatro artigos). Entre estes últimos figura o estabelecimento de um código civil único para toda a nação.

Por outro lado, são reconhecidas às autoridades federais amplas prerrogativas, em condições sem paralelo nos Estados Unidos, para intervirem nos Estados em circunstâncias excepcionais, com vista à manutenção da ordem e da paz; fez-se um largo uso destas disposições sempre que um Estado foi julgado ingovernável; foram também usadas para suspender as liberdades fundamentais dos cidadãos em caso de ameaça contra a segurança do país ou contra a ordem pública.

Submetidos durante muitos séculos ao domínio estrangeiro, os indianos experimentam um profundo sentimento de unidade e um legítimo orgulho por terem conquistado, por meios não violentos, conformes à sua doutrina, a independência. Entretanto, a Constituição de 1950 não é o mesmo tipo de documento que a Constituição dos Estados Unidos da América. Não possui, em especial, a mesma estabilidade; relativamente fácil de modificar num país em que existe um partido político dominante, ela sofreu, em vinte e cinco anos, quarenta alterações.

O controle da constitucionalidade das leis, reconhecido pelo Supremo Tribunal, tem, nestas condições, um significado diferente do dos Estados Unidos. Não se poderá falar propriamente, na Índia, de "governo de juízes", porque as decisões do Supremo Tribunal, que contrariam o desejo de reformas do governo central — ou de certos Estados —, são facilmente neutralizadas por uma emenda à Constituição. Tal fato foi particularmente notório quando o High Court de Patna e o Supremo Tribunal declararam inconstitucionais, porque se mostravam contrárias ao respeito pela propriedade, as medidas de reforma agrária bastante radicais, tomadas nos Estados de Bihar e de Bengala Ocidental 32; a quarta emenda à Constituição, votada em 1955, reagiu contra esta jurisprudência e veio permitir aos Estados, tal como à União, iniciar uma política agrária "socialista"; a mesma emenda, para excluir qualquer espécie de dúvida, tornou válidas, ao mesmo tempo e de modo expresso, sessenta e quatro leis relativas a essa matéria.

Profundamente tolerante, mas tendo de fazer face a uma extrema pobreza, a India hesita entre a via do liberalismo e a do socialismo e procura conciliar estas duas tendências. Os problemas apresentam-se aqui de modo diferente do dos Estados Unidos, país de abundância. A própria Constituição da India afastou-se deliberadamente da dos Estados Unidos em diversos aspectos. Ela procurou especialmente dar uma certa moderação ao princípio da "igual proteção das leis", reconhecendo a necessidade de consentir na existência de um estatuto especial para certas classes desfavorecidas de cidadãos ou em favor de certas castas ou tribos: cerca de 40% da população incluía-se nestas categorias.

A Constituição da Índia definiu, por outro lado, que o due process of law implicava somente a conformidade às leis regularmente publicadas e que esta fórmula não autorizava os juízes a pronunciarem-se sobre o valor moral ou o mérito destas leis.

4.2.2 - SOCIEDADES ANÔNIMAS

SÉROUSSI (2000:140) apresenta as características das sociedades anônimas indianas:

4.2.3 - CASAMENTO

SÉROUSSI (2000:142) fala também sobre o casamento:

O casamento na Índia é uma autêntica instituição, cheia de cores, na qual reina o dinheiro soberanamente. Os casamentos seguem quase as mesmas regras endógamas: os esposos são escolhidos pelos pais no seio de sua casta, sem que um parentesco muito distante possa ser observado.

Conforme a doutrina tradicional hindu do dharmasastra (tratado que expôe o dharma), o casamento é concebido como um sacramento que deve selar uma comunidade de vida indefectível. A tradição proibia, em princípio, a ruptura da união. No entanto, o marido tinha o direito, em determinadas circunstâncias, de tomar uma Segunda esposa (ex., pela recusa de cumprir as obrigações do casamento). A poligamia, se bem que rara, podia ocorrer em conseqüência.

O legislador e a obra da jurisprudência indiana fizeram muito evoluir o estatuto do casamento. Uma lei muito importante e estruturante foi votada em 1955, a Hindu Marriage Act. Esse texto vai unificar o Direito do casamento, e libertá-lo de seus numerosos costumes divergentes que, até lá, lhe impediam o bom desenvolvimento.

A lei nova adota assim as disposições seguintes que apresentam facetas impressionantes em um país onde as tradições, em particular na zona rural predominante, pesam com toda sua pujança:

  • abolição da proibição do casamento entre membros de castas diferentes,

  • proibição da poligamia,

  • diminuição das proibições relativas aos casamentos colaterais,

  • e autorização do divórcio.

O parlamento indiano rapidamente entendeu o interesse de fazer tais reformas. Nesse impulso, adotou assim no ano seguinte toda uma série de textos fundamentais visando codificar definitivamente todo o Direito sucessoral indiano (cf. the Hindu Succession Act of 1956). Da mesma forma, em fevereiro de 1986, uma lei foi promulgada - seguida ao caso Shah Banu - proibindo de fato aos divorciados musulmanos de pleitear o pagamento de pensão alimentícia.

O sistema de classes, largamente consolidado no curso dos séculos, inaugurou a partir daí sua lenta modificação que, conforme todas semelhanças e sob a dupla vigilância percuciente do legisla e do juiz, deve conduzi-lo em direção da igualdade. É, mais geralmente, o estatuto pessoal que ele pretende uniformizar em aplicação do artigo 44 da Constituição indiana.

4.2.4 - MANUTENÇÃO DA PENA DE MORTE

SÉROUSSI (2000:143) diz que a pena de morte ainda está em vigor sob a modalidade de enforcamento.

Mais adiante resume:

As crenças, os costumes perduram, mas alteram-se sob o efeito conjugado do legislador e da poderosa Suprema Corte federal. (p. 145)

4.2.5 - DIREITO PROCESSUAL CIVIL

ANNOUSSAMY (1996:11-13) fala de aspectos do Direito Processual Civil, principalmente sobre a instrução processual, as alegações finais dos advogados e a sentença.

O Processo Civil indiano antigo consagrava o sistema do livre convencimento, baseado nos depoimentos das partes, de testemunhas e outros meios de provas orais.

Atualmente, seguem o sistema inglês de "prova legal". [9]

As provas continuam sobretudo orais.

Quanto à instrução (trial) consiste nos depoimentos pessoais das partes, ouvida de testemunhas (arroladas pelas partes ou ouvidas - raramente - de ofício) e juntada de documentos (estes últimos que são apresentados por ocasião dos depoimentos pessoais das partes).

As audiências de instrução são demoradas e fastidiosas, sendo os depoimentos reduzidos a termo.

Quanto às alegações finais por ocasião delas os advogados lêem textos de jurisprudência que lhes são favoráveis.

Cada processo toma vários dias dos Tribunais.

Durante as alegações finais atuam os juízes de forma mais ou menos intensa, de acordo com a índole de cada um, ou somente ouvindo ou quase que debatendo com os advogados e alguns até antecipando a sentença.

As sentenças são exaradas na língua do Estado em que se encontra o Tribunal até o nivel dos Tribunais de Distrito. Os acórdãos dos Tribunais Superiores são redigidos, de acordo com o caso, na língua do Estado e em inglês.

As sentenças e acórdãos são geralmente muito extensas, devendo analisar os pontos controvertidos alegados pelas partes e mencionar a fundamentação, mas geralmente mencionam as alegações das partes, os depoimentos das testemunhas e das partes e reproduzem partes extensas da jurisprudência mencionada pelas partes.

Os juízes procuram decidir de acordo com a jurisprudência dominante.

Não se pode exprimir opinião sobre processos em andamento.

4.2.6 - DIREITO DO TRABALHO

RENOUARD (1996: 358-360) fala sobre o Direito do Trabalho:

A evolução do Direito do Trabalho modificou profundamente a vida dos trabalhadores indianos nas grandes empresas. Com a independência, os textos que associavam a proteção e a tutela (leis de Bombaim de 1937, tratavam dos trabalhadores permanentes das empresas com mais de 50 empregados mas os restantes permaneciam fragmentários. É sem ruptura com a herança colonial que foi elaborado o Direito do Trabalho da República Federal, sob o impulso de sindicalistas congressistas (tais como V. V. Giri, ministro do trabalho em 1952), de segmentos dos meios organizados do patronato e de pessoas independentes, formadas na escola jurídica anglo-saxônica.

As leis fundamentais, a lei sobre as usinas (1948), a lei sobre as relações industriais (1947), a lei sobre o salário mínimo (1948), a lei sobre a seguridade social dos empregados (1948), foram adotadas imediatamente após a partida dos colonizadores, para satisfazer os reformistas do Congresso e lutar contra a influência comunista. Essas leis tratam de forma codificada da duração do trabalho (oito horas legais), idade mínima de contratação (14 anos) e a prática do sindicalismo. Se o direito de greve não foi reconhecido mas somente admitido de fato (95% dos conflitos são ilegais), os sindicatos são sobretudo encorajados todos eles fortemente prevenidos contra o espírito aventureiro. Os Tribunais do Trabalho foram criados em 1949 e 1956. O recenciamento da mão-de-obra foi organizado nos anos 1950, ao mesmo tempo em que foram promulgadas leis sobre os trabalhadores de minas e portos e um sistema de poupança obrigatória (1952). Durante os anos 1960, sistemas de aposentadoria, formalização de prêmios anuais (1965) e uma extensão do salário mínimo foram concretizados. Existem leis nacionais, mas também leis estaduais, o que faz com que determinados governantes locais (Gujarat) usem da fluidez jurídica para atrair os investidores. Durante os anos 1970, novas leis definiram a proteção dos sindicalistas, promoveram a organização de negociações entre as partes, igualdade dos salários masculinos e femininos (1976), regularam as migrações internas e protegeram os trabalhadores precários.

Atualmente, o Direito do Trabalho indiano é um vasto conjunto heterogêneo. Conservou a tradição de práticas jurídicas que remontam ao período colonial, com campos de aplicação, mas também atores especializados. Os esforços para simplificá-lo (em 1953 e 1978) falharam. Acontece também em determinados casos a observância de um padrão de complexidade de forma alguma desejado por seus equivalentes dos países desenvolvidos, e que assentua o papel dos conselheiros jurídicos nos sindicatos. Desde 1980, o prestígio do Direito do Trabalho frente aos trabalhadores, até essa época muito importante, enfraqueceu muito. Além de sua tendência para impor intermediários em todos os setores, onerosos e fora do mundo das empresas, sua grande fragilidade reside no seu modo de aplicação. Inicialmente os delegados de oficina são raros e os procedimentos simplificados de resolução de conflitos, do tipo trabalhista da França, são desconhecidos. Além disso, a Justiça do Trabalho é lenta e terrivelmente sobrecarregada (10.000 processos em andamento em 1982). Enfim, as leis eficazes dizem respeito somente à mão-de-obra permanente das grandes empresas e do setor público, e elas estão longe de serem ali aplicadas como deveriam. Os efetivos de inspeção do trabalho são mínimos. Nas pequenas empresas, tratadas somente por alguns textos legais (trabalho infantil, trabalhadores da indústria do tabaco, salário mínmimo, higiene) as disposições legais são raríssimas. É por isso que a abertura econômica recente significou pouco para o abrandamento das leis sociais, apesar da tentativa, vitória, do governo de R. Gandhi para reduzir a idade legal de contratação de crianças para a indústria (de 14 para 12 anos). É problemático porém facilitar esses licenciamentos, que jamais foram difíceis, e sobretudo o fechamento de empresas até agora submetidos a um regime de autorização administrativa (sistema de licenças), enquanto que se intensifica a retórica da livre concorrência contra o emprego protegido em geral e contra o setor público em particular.

A persistência, ou seja, a extensão de determinadas formas de trabalho escravo agregado às grandes indústrias (grandes canteiros de obras, empreiteiras), nas pequenas empresas e no universo do "sistema do suor" ilustram a fragilidade da lei. Na Índia, o trabalho escravo é originariamente uma forma de escravidão por dívida, associada, no período colonial, à estrutura hierárquica das castas: foi inicialmente um fenômeno rural, ligado a determinados segmentos de trabalhadores agrícolas. Todavia, situações de semi-escravidão são muito encontradas entre os trabalhadores, as formas antigas de sujeição (apelo à humildade das castas inferiores, cumplicidade da administração e dívidas mais ou menos irreais) deram lugar freqüentemente a práticas de coerção declarada (pedreiras, minas clandestinas, fabricação de tapetes, têxteis). Escândalos surgiram regularmente no curso dos anos 1980. Todas as formas de trabalho escravo foram expressamente banidas pela lei (1976) e o Estado assumiu o dever de reabilitar aqueles que se encontram nessas condições. No entanto, a semi-escravidão não desapareceu nas regiões onde existia Bihar, Uttar Pradesh, Orissa) e ele permanece mesmo em determinados subúrbios urbanos (Hyderabad, Surat...).

4.3 - TENDÊNCIAS MODERNAS

BHAGWATI no seu artigo intitulado DEMOCRATIZAÇÃO DE SOLUÇÕES E ACESSO À JUSTIÇA (2002:44-47) mostra seu idealismo e a tendência mais moderna do Processo Civil indiano:

Hoje, mais do que nunca, é de vital importância assegurarmos o cumprimento dos Direitos Humanos, pois existem milhões de pessoas em todo o mundo (particularmente em países em desenvolvimento) que têm negada a proteção de seus direitos e, a menos que se desenvolvam soluções para assegurar o cumprimento dos Direitos Humanos e que se vá em busca destas soluções, em vez de meramente falar sobre Direitos Humanos através de uma plataforma elitista, os Direitos Humanos continuarão sendo uma mera ilusão e promessa de irrealidade. Toda nossa abordagem sobre Direitos Humanos não deve ser orientada através de conferências e seminários, mas sim através da realização de ações concretas e da estipulação de metas.

Somente se o movimento dos Direitos Humanos for levado a um nível básico pelos ativistas sociais que se dediquem à causa dos pobres, que tenham um senso de comprometimento social e que estejam trabalhando entre as camadas mais sofridas e exploradas da humanidade, e que compartilhem seu sofrimento e miséria, a semente dos Direitos Humanos irá germinar como uma grande árvore, espalhando suas raízes longe e de uma maneira abrangente, oferecendo sua proteção e sombra às pessoas exaustas.

O foco das atenções dos Direitos Humanos deve se voltar para as camadas mais destituídas e vulneráveis dos países em desenvolvimento, para quem a vida é uma eterna vigília e a quem Gandhi, o Pai da Nação, disse: "Eu tive a dor de observar pássaros que, por desejo de força, não puderam ser acariciados nem com um alvoroço de suas asas. O pássaro humano sob o céu da Índia se levanta mais fraco do que quando pretendia se aposentar. Para milhões, é uma eterna vigília ou um eterno transe."

Portanto, é necessário ter um mecanismo que assegure o cumprimento e a realização dos Direitos Humanos garantidos pela Constituição e as leis.

Visivelmente, não bastam meras declarações e resoluções sobre os Direitos Humanos essenciais ao pleno desenvolvimento da personalidade humana. Direitos Humanos devem ser efetivamente implementados, e não se deve permitir que continuem sendo meras declarações. Temos que desenvolver novas ferramentas e inovar estratégias, com o objetivo de atualizar os Direitos Humanos e fazer com que eles tenham significado para as grandes massas do povo. Temos que democratizar nossas soluções e assegurar o cumprimento desses direitos, para que assim eles se tornem disponíveis para cada cidadão no país, independente de sua casta, credo, cor, religião ou gênero. Infelizmente, hoje as portas dos tribunais, apesar de teoricamente abertas a todos, estão, em realidade, fechadas para os pobres, que não conseguem se aproximar para assegurar seus direitos. O sistema de justiça em nossos países é baseado em dois postulados, a saber: a auto-identificação de danos e injustiças e a auto-seleção da solução, do "remédio". Estes dois postulados estão, infelizmente, faltando na maioria dos países em desenvolvimento. Os pobres não estão cientes dos direitos a eles conferidos pelos organismos nacionais e internacionais, e tampouco possuem a capacidade de reivindicar esses direitos contra os representantes do governo, contra os violadores corporativos ou contra as camadas poderosas da comunidade. A eles falta consciência de seus direitos, assim como a capacidade de afirmar, de sustentar seus direitos.

Eles também não possuem a disponibilidade de recursos para se aproximarem dos tribunais e assegurarem seus direitos, resultando que os direitos a eles conferidos nacional e internacionalmente continuam sendo meramente "tigres de papel", sem dentes nem garras. Além disso, o enorme atraso e os altos custos do sistema legal barram, efetivamente, o acesso do pobre à Justiça.

Os pobres não estão cotados no sistema legal; eles são, se assim devo chamar, os "fora-da-lei" funcionais. Eles não têm outra opção a não ser sofrer, num silêncio angustiante e no desespero da falta de ajuda, da frustração, das violações dos seus direitos por camadas poderosas da comunidade, por exploradores cruéis, políticos insensatos e burocracia. Freqüentemente, eles são vítimas da falta de lei governamental e da polícia, e eles estão totalmente sem soluções contra a opressão e a injustiça.

Apesar da preocupação expressada pelos ativistas dos Direitos Humanos, infelizmente até agora, em algumas partes do mundo, a privação e a exploração continuam não sendo combati-das; os Direitos Humanos básicos do pobre são violados. A eles são negadas as necessidades básicas da vida. Eles não desfrutam do direito à educação e muitos são ainda analfabetos. Os benefícios das leis de seguro social e as medidas governamentais não chegam até eles; esses benefícios são desviados pelos intermediários, ou direcíonados aos bolsos errados, ou conferidos somente às camadas mais elevadas.

A lei geralmente é usada contra o pobre para questões repressivas e, em alguns locais, a máquina da polícia, em vez de ajudar as camadas mais vulneráveis, permite ser utilizada para assistir e perpetuar sua exploração. Quando a lei é utilizada contra os pobres como um instrumento de repressão, ela parece se aplicar somente a eles, e não aos ricos e influentes, e aqueles não sabem aonde ir ou a quem se reportar. Eles notam que o processo legal e judicial lhes foi tirado, e eles quase perdem a fé na sua capacidade de trazer-lhes justiça. Mas, não existem razões para desespero, pois gradualmente uma revolução está acontecendo no processo legal e judicial, como resultado de uma assistência legal e de ações de litígio social, que se tornaram instrumentos poderosos para prover acesso efetivo dos pobres e desafortunados à Justiça em muitos países em desenvolvimento.

É reconhecido em todos os lados que o acesso à Justiça é um dos Direitos Humanos básicos, e que sem este o cumprimento de muitos outros direitos deve tornar-se difícil. Portanto, em resposta à demanda do acesso à Justiça, que milhões de pessoas estão constantemente reivindicando, com vistas à proteção contra a violação de seus Direitos Humanos, a Suprema Corte da India abriu suas portas para ampliar a doutrina do locus standi, ou o que é conhecido como a chance de proporcionar e possibilitar aos pobres a oportunidade de trazerem seus problemas diante dos tribunais. A Suprema Corte da lndia, no documento "Nomeação de Juízes e Transferência de Caso", sustenta que, apesar de a regra comum da jurisprudência anglo-saxônica afirmar que uma ação somente pode ser trazida pela pessoa a quem o dano foi causado, esta regra pode e deve partir da observação da pobreza massiva e da ignorância do povo. Ou seja, quando o dano é causado a uma pessoa ou a uma classe de pessoas que, por razões de pobreza, inabilidade ou desvantajosa posição socioeconômica não pode aproximar-se dos tribunais para obter sentenças judiciais, qualquer pessoa pública ou representante de organização não-governamental, agindo de boa-fé, pode mover uma ação no tribunal procurando reparação judicial para o dano causado a essa pessoa ou classe de pessoas e, nesse caso, os tribunais não insistirão na petição regular a ser preenchida pelo indivíduo ou pela ONG que assumiu a causa. Essa ampliação da regra Iocus standi e a criação de uma nova jurisdição epistolar introduziram uma nova dimensão no processo judicial e abriram vistas a uma forma totalmente diferente de litígios em defesa dos direitos das classes mais pobres da comunidade, assegurando-lhes dignidade humana básica.

Ação de litígio social

Os tribunais na Índia estão agora recebendo ações de litígio social iniciadas através de petições regulares ou até mesmo cartas enviadas por grupos de ativistas sociais, advogados, jornalistas, acadêmicos de Direito e ONGs, e estão usando seu poder judicial ou de intervenção com vistas ao melhoramento da situação de miséria e sofrimento do povo, que tem origem na pobreza, repressão, falta de leis governamentais e desvio administrativo. O povo chegou a identificar os tribunais como o último reduto dos oprimidos e desnorteados. A transição do status de agência sw captação tradicional com baixa visibilidade social, para agência liberal com alta visibilidade sociopolítica é uma evolução memorável na carreira do nosso sistema judiciário. Portanto, através de ações de litício social, os tribunais indianos estão ditando o passo das mudanças socioeconômicas e forçando os governos e burocratas a desenvolcver seus deveres constitucionais de proteger os pobres contra as injustiças sociais e econômicas, assegurando o cumprimento dos Direitos Humanos básicos.

Existem vários tipos de causas chegando até os tribunais, elencando os problemas das camadas mais vulneráveis e desprovidas da comunidade; existem causas de réus primários, assim como de prisioneiros condenados; mulheres nos serviços de proteção; crianças em instituições juvenis; trabalhadores imigrantes e com vínculos empregatícios; mão-de-obra não-regulamentada; tribos intocadas e organizadas; agricultores sem terra que se vêem vítimas da mecanização defeituosa; mulheres que são compradas e vendidas; mendigos e vítimas de execuções extrajudiciais, entre muitos outros tipos de causas.

Os tribunais estão, através da criatividade judicial, evoluindo em direção aos pobres e aos novos direitos dos oprimidos, que fazem parte dos Direitos Humanos básicos, mas que estão hoje incompletos e lutando para nascer, e que mesmo antes de nascer já são sufocados pela classe exploradora.

O Judiciário, pela primeira vez, está agindo em prol das camadas mais fracas da comunidade indiana. Então, as ações de litígio social se tornaram um dos instrumentos mais poderosos para a proteção dos pobres e fracos contra a violação dos seus Direitos Humanos básicos, através da democratização das soluções e do acesso proporcionado pela Justiça a esses seres humanos desafortunados.

Quando eu, como juiz da Suprema Corte, dei início às ações de litígio social na Índia, havia críticas de alguns quadrantes que afirmavam que orientar as ações de litígio social, criar ordens e traçar diretrizes em direção à tomada de ações afirmativas para dar significado e tornar eficazes os Direitos Humanos eram atitudes que iam muito além da função judicial tradicional.

Alguns críticos afirmaram que a função de um juiz é meramente administrar a lei como ele a encontra e que não cabe a ele criar a lei; sua função éjus dicere e não jus dare; ele deve analisar as causas do povo apenas através da maneira apresentada pelos advogados, e decidir de acordo com o mistério e a mística herdada do processo judicial anglo-saxônico. Eles acham que orientar as ações de litígio social e formar ordens que assegurem os Direitos Humanos básicos aos pobres e necessitados faz com que o Judiciário se coloque acima da lei e transgrida suas limitações. Esta crítica foi repelida por mim como infundada, pois a lei não pode permanecer estática; ela tem que se adaptar às necessidades do povo e satisfazer suas esperanças e aspirações. A lei não é uma antigüidade para ser trazida, admirada e posta de volta à prateleira. É um instrumento dinâmico, elaborado pela sociedade com o objetivo de eliminar os atritos e conflitos e, a menos que assegure justiça social ao povo, ela não irá atingir o seu objetivo e, algum dia, o povo irá deixá-la de lado.

Portanto, é dever dos juízes moldar e desenvolver a lei na direção correta, através da sua interpretação criativa, de modo que ela atinja seu objetivo social e sua missão econômica. Os juízes devem perceber que a lei administrada por eles deve tornar-se um instrumento poderoso para assegurar justiça social a todos, e por justiça social eu digo justiça que não seja limitada a poucos felizardos, mas que compreenda grandes camadas de desafortunados e desprovidos, lei que traga distribuição equânime do material social e dos recursos políticos da comunidade. Nós precisamos de leis dinâmicas e não estáticas, leis que tenham sua sustentação no passado mas que olhem para o futuro, leis que estejam prontas para avançar a serviço da humanidade; nós faríamos bem em lembrar as famosas palavras do jurista Cardozo: "O recanto que protege o direito não é o fim da jornada. A lei, assim como o viajante, deve estar preparada para o amanhã."

ANNOUSSAMY (1996:22-25) fala também das ações de litígio social sob a denominação de ações de interesse público, sendo se destacar duas informações importantes:

Sobre o autor
Luiz Guilherme Marques

juiz de Direito em Juiz de Fora (MG)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARQUES, Luiz Guilherme. A Justiça e o Direito da Índia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 164, 13 dez. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4552. Acesso em: 18 mai. 2024.

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