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Da função social da propriedade imóvel.

Estudos do princípio constitucional e de sua regulamentação pelo novo Código Civil brasileiro

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Agenda 04/12/2003 às 00:00

6 – DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL INSERIDO NA ORDEM ECONÔMICA

Analisando o texto das Constituições anteriores que expressamente consignaram a função social da propriedade, percebe-se, em todas elas, que a inclusão do princípio se deu no capítulo destinado à ordem econômica (cf. art. 157, III, da CF/67 e art. 160, III, da CF/69). De outro turno, ainda que a Carta de 1988 tenha feito o mesmo, inovou o Constituinte consagrando o princípio, em relativização ao próprio direito individual de propriedade, no capítulo destinado aos direitos fundamentais (inciso XXIII do artigo 5º). Ademais, a propriedade privada foi incluída em inciso autônomo, entre os princípios da ordem econômica (inciso II do art. 170), antes mesmo da enunciação do princípio da função social da propriedade (inciso III do mesmo artigo).

Por conseguinte, pela nova Constituição, a função social não interessa apenas à ordem econômica, mas serve de princípio norteador também do direito individual de propriedade. Outrossim, inserido no capítulo da ordem econômica, o conceito de propriedade privada foi ainda mais "relativizado", [66] em comparação com aquele das Cartas anteriores, pois passou a se submeter ao juízo de ponderação decorrente da aplicação de todos os outros princípios integrantes da ordem econômica.


7 – PECULIARIDADES DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE RURAL

Em relação aos imóveis rurais, aplica-se tudo o que se disse acerca da função social, especialmente em relação à transformação do regime privatístico de propriedade. Contudo, há certas peculiaridades anotadas especialmente por jus-agraristas.

Primeiramente, cabe dizer que a expressão "função social da propriedade rural" é muito criticada pelos estudiosos do direito agrário. Defendem eles que a expressão utilizada pelo Constituinte não satisfaz plenamente as preocupações com a total dimensão do problema agrário, o qual não se resume só à questão da propriedade, pois engloba também a função social da posse e dos contratos agrários. Daí, sustenta-se a predileção pela expressão genérica "função social da terra" [67] ou "função social do imóvel rural", [68] de que seriam espécies a "função social da posse agrária" e a "função social dos contratos agrários".

Porém, dadas as finalidades deste estudo, que exorbitam o campo da função social do imóvel rural, com a vênia dos jus-agraristas, tem-se por escusável a utilização da consagrada expressão "função social da propriedade".

Na esteira da repercussão do princípio da função social em face do novo regime da posse agrária, ensina outro ilustre professor GETÚLIO TARGINO LIMA, da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás, em obra já mencionada, a posse de imóvel rural não mais pode ser encarada como simples exercício de um dos poderes inerentes ao domínio, mas sim como um comportamento em relação à coisa que tenha por pressuposto o cumprimento da função social.

Essa nova concepção de posse agrária vem contaminando a jurisprudência dos tribunais estaduais, não sendo raro encontrar assentado em acórdãos que "não se concebe mais a posse como mera emanação do domínio. O poder fático sobre a coisa (posse), a partir do regramento constitucional, se caracteriza pelo uso econômico do bem". [69]

Ressalte-se, porém, não serve esse raciocínio de incentivo a invasões de terra praticadas a pretexto de fazer cumprir a função social. Conforme jurisprudência do TJRS, citando acórdão do TAMG, não constitui "o principio constitucional da função social da propriedade justificativa de invasão, a permitir a realização de justiça pelas próprias mãos." [70]

Assentado tudo isso, já se pode dizer alguma coisa sobre as regras que dão densidade ao princípio da função social do imóvel rural. Essas considerações, contudo, serão feitas de maneira perfunctória, dado o recorte temático do trabalho.

Pois bem. Como antes mencionado, não houve maior preocupação da Constituição com a concretização das normas que dispõem acerca do princípio da função social da propriedade, salvo em relação aos imóveis rurais e, com menor intensidade, em face dos imóveis urbanos.

Enfocando os imóveis urbanos, o tratamento um pouco mais específico que a Constituição lhes reservou não impediu fosse o tema tratado com alto grau de abstração. Dispõe o art. 182, §2º, da CF/88, que a "propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor." (CF, art. 182, §2º). Desse modo, restou ao legislador municipal ampla margem de poder para dizer como será cumprida a função social. A lei do plano diretor tratará do assunto. Mas a Constituição também cuida da edição de leis municipais específicas (no §4º do mesmo artigo) que poderão regulamentar exigências menos genéricas - se comparadas às previsões do plano diretor - , nos termos definidos na recente Lei 10.257, de 11/07/2001, [71] sob pena de serem aplicadas as sanções previstas nos incisos I a IV do mesmo parágrafo 4º do art. 182 da CF/88.

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No tocante aos imóveis rurais, entretanto, a Constituição foi menos generosa para com o legislador. De início, percebe-se que só a União Federal possui competência material para promover a desapropriação por descumprimento da função social do imóvel rural (caput do art. 184), bem como para legislar sobre os requisitos a serem atendidos (caput do art. 186). E dessas restrições, com base na teoria dos poderes implícitos, [72] pode-se extrair outra: só a União detém atribuição para fiscalizar e controlar a observância da função social do imóvel rural.

Conforme consta do artigo 2º da Lei 8.629, de 25/02/93, a atribuição para ingressar no imóvel rural, em nome da União, para fins de levantamento de dados, é realizada por intermédio de "órgão federal competente" (§2º do art. 2º), [73] tarefa essa que vem sendo observada por uma autarquia federal, no caso, o INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Nada indica, porém, essa competência de controle tenha sido dada com exclusividade à União, motivo pelo qual se afigura válida a possibilidade de delegação a Estados-membros, Distrito Federal ou a municípios. [74]

Volvendo à Constituição, percebe-se que o art. 185 estabelece zona de imunidade à desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, mesmo que a função social não esteja sendo observada, em relação: (a) à pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra; e (b) à propriedade produtiva.

Nesse prumo, a conceituação de pequena e média propriedade rural só veio a ser estabelecida com o art. 4º da Lei 8.629/93, pelo qual ficou assentado que pequena propriedade é aquela com área compreendida entre 1 (um) e 4 (quatro) módulos fiscais [75] e média propriedade é o imóvel rural [76] de área superior a 4 (quatro) e até 15 (quinze) módulos fiscais.

Critica-se a dimensão dessa imunidade expropriatória em relação à grande propriedade produtiva, dizendo que a produtividade é apenas um dos elementos da função social, motivo pelo qual não basta ser produtivo o imóvel rural para que seja considerado cumpridor do princípio. [77] Contudo, defende CELSO RIBEIRO BASTOS a opção da Constituição, afirmando que parcelar "a propriedade produtiva é prenúncio quase certo de diminuição da produção com conseqüente degradação dos níveis sociais já atingidos." [78] Desse modo, mesmo que sem o aplauso de toda doutrina pátria, o fato é que essa imunidade expropriatória da terra produtiva foi expressamente consagrada pela Constituição, que previu ainda a edição de lei que garanta tratamento especial ao imóvel rural produtivo, fixando normas para o cumprimento dos requisitos da função social (par. único do art. 185).

Neste ponto, cabem breves digressões em torno dos pressupostos a serem observados no atendimento da função social do imóvel rural. A começar das regras enumeradas pelo art. 186 da Constituição, o imóvel rústico deverá simultaneamente satisfazer os seguintes requisitos: (a) aproveitamento racional e adequado; (b) utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; (c) observância das disposições que regulam as relações de trabalho; (d) exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

De conseguinte, fala-se que o preenchimento da função social do imóvel rural exige a presença simultânea de requisitos espalhados em três óticas: [79] (a) econômica, ligada à "produtividade" do imóvel rural, ou seja, seu aproveitamento racional e adequado; (b) social, abraçando as disposições que regulam as relações de trabalho e as que contemplam o bem-estar dos que exploram a terra (incluídos aí não só os proprietários e trabalhadores, mas os que detém a posse direta do imóvel); (c) ecológica, relacionada com a preservação do meio ambiente, concebido como direito fundamental de terceira geração, garantido-o à presente e futuras gerações. [80]

Por óbvio, a Constituição, no caput do art. 186, previu que esses requisitos fossem fixados por lei, de modo a atender às peculiaridades da região onde se situa cada imóvel rural. E essa tarefa foi confiada à Lei 8.629/93.

Em linhas gerais, o esquema legislativo de fixação dos critérios de cumprimento da função social do imóvel rural, conforme estabelecidos pela Lei 8.629/93, atualmente alterada pela MP 1.577, de 11/06/97, e reedições (atualmente, MP 2.183-56, de 24/08/2001), pode assim ser resumido.

O reconhecimento da produtividade da gleba exige sejam atingidos, cumulativamente, nos termos do art. 6º da Lei 8.629/93: (a) um percentual mínimo de 80% do grau de utilização da terra (GUT), e; (b) um percentual igual ou superior a 100% do grau de eficiência da exploração econômica (GEE).

O cálculo do índice do GUT considera a área efetivamente utilizada do imóvel, em cotejo com a área potencialmente utilizável, excluídas, desse último conceito, por força do art. 10 da Lei 8.629/93,

as áreas ocupadas por construções e instalações, excetuadas aquelas destinadas a fins produtivos, como estufas, viveiros, sementeiros, tanques de reprodução e criação de peixes e outros semelhantes; as áreas comprovadamente imprestáveis para qualquer tipo de exploração agrícola, pecuária, florestal ou extrativa vegetal; as áreas sob efetiva exploração mineral; as áreas de efetiva preservação permanente e demais áreas protegidas por legislação relativa à conservação dos recursos naturais e à preservação do meio ambiente.

De sua vez, o GEE é obtido por meio da aplicação de sistemática de cálculo que leva em consideração a destinação econômica da gleba em face de índices de rendimento considerados medianos, de acordo com a região onde se localiza o imóvel. Assim, determina o art. 6º, §2º, da Lei 8.629/93, que,

para os produtos vegetais, divide-se a quantidade colhida de cada produto pelos respectivos índices de rendimento estabelecidos pelo órgão competente do Poder Executivo, para cada Microrregião Homogênea (inciso I); para a exploração pecuária, divide-se o número total de Unidades Animais (UA) do rebanho, pelo índice de lotação estabelecido pelo órgão competente do Poder Executivo, para cada Microrregião Homogênea (inciso II). Então, a soma dos resultados obtidos na forma anterior é dividida pela área efetivamente utilizada e multiplicada por 100 (cem), determinando-se assim o grau de eficiência na exploração (GEE) do imóvel rural. Dessa forma, um imóvel com níveis de exploração econômica mais eficientes que aqueles relativos à média exigida pelos órgãos oficiais poderá obter um percentual superior a 100% de GEE.

Nada obstante, não há registro de que o Poder Público venha respeitando a regra do art. 11 da Lei 8.629/93, que mesmo antes da alteração determinada pela MP 1.577/97, já exigia que, na fixação dos parâmetros, índices e indicadores que informam o conceito de produtividade fosse ouvido também o Conselho Nacional de Política Agrícola.

De outro turno, mostra-se razoável a Lei 8.629/93, ao não retirar a qualificação de propriedade produtiva do imóvel que, por razões de força maior, caso fortuito ou de renovação de pastagens tecnicamente conduzida, devidamente comprovados pelo órgão competente, deixar de apresentar, no ano respectivo, os graus de eficiência na exploração, exigidos para a espécie (art. 6º, §7º). Assim, os danos à produtividade decorrentes de esbulho da área podem ser considerados albergados por essa norma legal, como já reconheceu o STF. [81]

Pela ótica social, considera a lei que a terra, mesmo produtiva, poderá estar desatendendo à função social se quem a explora o faz com desrespeito às leis trabalhistas, às disposições dos contratos agrários, bem como se não forem observadas as normas de segurança do trabalho ou provoca conflitos e tensões sociais no imóvel (§§4º e 5º do art. 9º da Lei 8.629/93). Aqui, portanto, é importante identificar o agente provocador do conflito social, pois com ele a lei não se compadece. Daí por que se afiguram materialmente corretas as disposições contidas na atual MP 2.183-56/2001, que inseriram os §§6º a 8º na redação do art. 2º da Lei 8.629/93. [82]

O último dos requisitos - mas nem por isso menos importante - a ser brevemente analisado diz respeito à utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente.

De efeito, considera-se adequada a utilização dos recursos naturais disponíveis quando a exploração se faz respeitando a vocação natural da terra, de modo a manter o potencial produtivo da propriedade (§2º do art. 9º da Lei 8.629/93). E por preservação do meio ambiente deseja a lei a manutenção das características próprias do meio natural e da qualidade dos recursos ambientais, na medida adequada à manutenção do equilíbrio ecológico da propriedade e da saúde e qualidade de vida das comunidades vizinhas (§3º do art. 9º da Lei 8.629/93). [83]

Neste ponto, percebe-se a necessidade de ponderar os aspectos relativos ao aproveitamento racional e adequado do imóvel rural (ótica econômica) em face daqueles referentes à adequada utilização dos recursos naturais e a preservação do meio ambiente (ótica ecológica). Assim, na fixação dos requisitos da função social do imóvel rural, a lei há de observar uma razoabilidade interna [84] que permita a eleição de critérios adequados tanto sob a ótica econômica quanto ecológica, daí o motivo de a Constituição mencionar, em ambos os casos, a questão da adequabilidade (cf. os incisos I e II do art. 186). Dessarte, a fixação do GUT e o GEE não pode perder de rumo a vedação à exploração econômica depredatória. É preciso saber se os parâmetros de produtividade que vêm sendo fixados pelos órgãos do Executivo não estão trabalhando com padrões por demais genéricos, ou que não levem em consideração certas peculiaridades ligadas à localização dos imóveis rurais.

Essa importante questão, aliás, sujeita-se ao controle judicial não só para verificar se o "núcleo essencial" do direito de propriedade está sendo preservado, diante de eventuais imposições concretamente inatingíveis, mas principalmente para que não se exijam graus de exploração econômica mais elevados que a própria capacidade de regeneração natural do imóvel rural.

Sobre o autor
Juliano Taveira Bernardes

juiz federal em Goiás, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás, mestre em Direito e Estado pela Universidade de Brasília (UnB), ex-membro da magistratura e do Ministério Público do Estado de Goiás, membro do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (IBDC)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BERNARDES, Juliano Taveira. Da função social da propriedade imóvel.: Estudos do princípio constitucional e de sua regulamentação pelo novo Código Civil brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 151, 4 dez. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4573. Acesso em: 23 nov. 2024.

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