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Da função social da propriedade imóvel.

Estudos do princípio constitucional e de sua regulamentação pelo novo Código Civil brasileiro

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Agenda 04/12/2003 às 00:00

8 – DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE IMÓVEL E O NOVO CÓDIGO CIVIL

Por tudo que foi dito, considerando que a lei há de ser interpretada sob a ótica constitucional da qual retira validade, é justificado fazer-se uma releitura das normas infraconstitucionais acerca da propriedade à luz do princípio da função social. E não há por que excluir desse tratamento hermenêutico sequer antigos institutos de direito privado, cujas origens remontam o tempo do direito romano. Aqueles recepcionados pela Constituição passam a valer ungidos pela função social que condiciona o exercício da titularidade da propriedade. Nas palavras de ARAÚJO SÁ:

A função social, portanto, na concepção dos estudiosos mais acatados, incide no conteúdo do direito de propriedade, impondo-lhe novo conceito. A constituição posiciona a propriedade privada como princípio da ordem econômica, submetendo-a aos ditames da justiça social. É dizer que se legitima a propriedade enquanto cumpre sua função social. É importante destacar que a disciplina constitucional deve orientar a compreensão das normas de direito privado sobre o direito de propriedade, e não o contrário, como costuma ocorrer na prática jurídica nacional. [85]

Nessa perspectiva, pelo novo Código Civil, instituído pela Lei 10.406, de 10/01/2002 (que entrará em vigor um ano após sua publicação, ocorrida em 11/01/2002), a questão da função social da propriedade no Brasil recebe importantes contribuições e institutos.

A começar da seção das disposições preliminares do título relativo à propriedade (Seção I do Capítulo I do Título III do Livro III da Parte Especial), logo após seu respectivo conceito (caput do art. 1.228), o novo Código já cuida de traçar pressupostos à utilização do direito de propriedade. Seu exercício deverá fazer-se "em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas" (§1º do art. 1.228).

Assim, a par de reservar à lei especial o tratamento da ótica ecológica da função social, optou o legislador civil por avançar na positivação do princípio relativo às finalidades econômicas e sociais da propriedade, propiciando ao juiz estabelecer as respectivas regras concretas. Foi agora explicitado o que no Código antigo era princípio geral implícito norteador do direito de propriedade. [86]

Aliás, inova o recente Código ao indicar algumas regras ligadas à finalidade social e econômica da propriedade. Esse o caso da norma do art. 1.229, que apesar de inserir na abrangência da propriedade do solo o espaço aéreo e subsolo, [87] retira a garantia de proteção do direito do proprietário se desenvolvidas atividades por terceiros a "uma altura ou profundidade tais, que não tenha ele interesse legítimo em impedi-las."

Da mesma forma, o §2º do art. 1.228 consagrou proibição ao abuso do direito de propriedade, ao estabelecer serem "defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem."

Nessas regras, a intenção da lei é clara. A propriedade também é concebida como fato econômico e social. Daí, restam afastadas pretensões emulatórias, meramente egoísticas ou idiossincráticas de seu titular, o qual não pode opor o direito de propriedade tão-só para prejudicar terceiros. [88] É o velho abuso do direito convertido em tipo de descumprimento da função social da propriedade. Portanto, a interpretação do §2º do art. 1.228 deve ser conciliada com disciplina geral do novo Código acerca do abuso de direito (art. 187). É dizer, no estudo da incidência do §2º do art. 1.228, está o hermeneuta autorizado a considerar ilícitos os atos que manifestamente excedam os limites impostos pela finalidade econômica ou social da propriedade, pela boa-fé (objetiva) ou pelos bons costumes. E a constitucionalidade de tais preceitos não desperta controvérsias, na medida em que a função social compõe o próprio direito de propriedade, que aliás não é absoluto - até porque se relaciona com mais de um só sujeito. [89]

Em matéria de aquisição da propriedade imóvel por usucapião, a Lei 10.406/2002 também é inovadora. [90] O Código de 1916 prevê somente "o" usucapião [91] ordinário e o usucapião extraordinário. Os requisitos do primeiro prescindem da boa-fé do possuidor, mas dependem da posse ininterrupta, e sem oposição, por longos 20 anos. Já no extraordinário, exige-se a boa-fé do adquirente, mas o tempo de posse é menor: 10 ou 15 anos, conforme se trata ou não de pessoas que residem no mesmo município.

Na nova sistemática, foram reproduzidas nos artigos 1.239 e 1.240 as hipóteses de usucapião criadas pela CF/88, [92] bem como diminuído o prazo da usucapião ordinária para 15 anos (caput do art. 1.238), salvo se o possuidor houver estabelecido no imóvel moradia habitual ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo, caso em que o prazo cai para 10 anos (par. único do art. 1.238). [93]

Aqui, mais uma vez, sente-se a preocupação com a função social da propriedade. [94] A constituição de moradia habitual ou (note-se o caráter alternativo dos requisitos) a realização de obras ou serviços que remedeiem a inércia do proprietário reduz o prazo da usucapião, ainda que ausente a boa-fé do possuidor.

Com relação ao estabelecimento de "moradia", talvez influenciado pela dicção dos artigos 183 e 191 da CF/88, [95] o novo Código foge de sua própria sistemática, abandonando o emprego das consagradas expressões "domicílio" e "residência" (art. 70 e seguintes). Dessarte, moradia não se confunde com domicílio e tampouco precisa ser a única do possuidor. Porém, o conceito de moradia está historicamente ligado ao de habitação. [96] Logo, apesar de a redução valer para estrangeiros (ressalvada a hipótese do art. 190 da CF/88), é imprópria sua utilização para pessoas jurídicas. Outra, aliás, não é a diretriz dos arts. 183 e 191 mencionados. [98] Além disso, ao exigir que o possuidor tenha estabelecido no imóvel "sua" moradia, a redação do par. único do art. 1.238 não deixa dúvidas quanto ao caráter pessoal e indelegável da habitação, pelo que a redução do prazo não se aplica, e. g., quando, no interstício, tenha havido locação ou arrendamento do imóvel. Por fim, de modo a evitar abusos, o critério da "habitualidade" da moradia deverá ser verificado com parcimônia pelo juiz. "Habitual" não se confunde com "ocasional".

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Nada obstante, é possível o aproveitamento do tempo de posse do antecessor (art. 1.243), desde que presentes as mesmas condições exigidas ao atual possuidor. E aqui, ao contrário da regra do art. 9º, §3º, do Estatuto da Cidade, [99] a usucapião do par. único do art. 1.238 não exige que o sucessor da posse já resida no imóvel por ocasião da abertura da sucessão do antecessor. Basta que à posse anterior se some tempo suficiente de moradia do sucessor.

De sua vez, não são quaisquer obras ou serviços que possibilitam a redução do prazo da usucapião ordinária. Exige-se o caráter produtivo. Assim, em imóveis urbanos, tratando-se de regra excepcional cuja interpretação se deve fazer restritivamente, é indevida a aplicação da redução do prazo, v. g., em caso de imóvel utilizado como local de simples lazer do possuidor. É bem verdade que o art. 182 da CF/88, ao tratar da política de desenvolvimento urbano, fixa o objetivo de "ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes" (destacou-se). Assim, poder-se-ia argumentar, obras destinadas ao lazer satisfariam a política de garantir "bem-estar" ao possuidor de imóvel urbano. Contudo, além de a preocupação com o bem-estar do habitante dizer respeito à política confiada ao "Poder Público municipal", não se confundindo assim com a usucapião regulamentada por lei federal, não se pode baralhar "caráter produtivo" com "bem-estar do habitante". Não bastasse o fato da barreira linguística [100] – aqui insuperável pelo intérprete –, quando a Constituição quis, de certa forma, aproximar conceitos tão diversos, usou expressões do tipo "adequado aproveitamento", a exemplo do que ocorreu no §4º do mesmo art. 182.

Quanto a imóveis rurais, aplica-se supletivamente a legislação que cuida da verificação da produtividade como requisito para desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária.

Em relação à usucapião extraordinária, o recém-aprovado Código não mais distingue o prazo aquisitivo com base na residência dos sujeitos envolvidos. Unificou-se em 10 anos o período necessário para usucapir. Porém, foi diminuído para 5 anos o prazo "se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada (sic) posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico" (par. do art. 1.242). [101]

Desse modo, ainda que qualificada pela boa-fé na formal aquisição onerosa de imóvel, outra vez a função social impõe redução ao prazo prescricional aquisitivo. Porém, as hipóteses não se assemelham inteiramente às do par. único do art. 1.238. Em primeiro plano, porque a lei não exige habitualidade na morada. [102] Em segundo lugar, no caso da usucapião extraordinária de prazo reduzido, dispensa o Código o "caráter produtivo" das obras e serviços realizados no imóvel, contentando-se com a exteriorização de "investimentos de interesse social e econômico". Logo, amplia-se o leque de possibilidades de incidência da nova regra.

Ao final, considerando a própria característica particular do imóvel a que se refere o art. 1.238, o "interesse social" aqui é entendido de forma ampla, abrangendo não só interesses da coletividade mas também aqueles que, apesar de aparentemente individuais, devam ser incentivados, garantidos ou patrocinados pelo Estado. É dizer, a indeterminação do conceito de "interesse social" será preenchida, caso a caso, à luz de determinadas diretrizes contidas na Constituição e leis vigentes. Daí, v. g., investimentos destinados à "convivência familiar" ou ao "lazer" de crianças e adolescentes alavancam a redução do prazo da usucapião extraordinária, pois o caput do art. 227 da CF/88 contém princípio programático de atuação estatal nesse sentido.

Em matéria de perda da propriedade, contudo, a maior inovação do Código de 2002 diz respeito aos §§4º e 5º do art. 1.228:

Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

§ 1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.

§ 2º São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.

§ 3º O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente.

§ 4º O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.

§ 5º No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores.

Assim, por força do §4º, poderá o juiz decretar a perda da propriedade sobre imóvel de extensa área, havendo ininterrupta posse de boa-fé, por mais de cinco anos, por parte de considerável número de pessoas, desde que os possuidores tenham na área realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante. De outro lado, exige o §5º seja fixada justa indenização ao proprietário, condicionando ainda o registro do imóvel em nome dos possuidores somente quando for pago o preço.

Por tais normas, ao condicionar a perda da propriedade a considerações ligadas ao interesse social e econômico relevante, mais uma vez se revela a preocupação do legislador com a função social da propriedade. Contudo, o novo instituto apresenta numerosos problemas.

Em primeiro lugar, não se trata de forma de usucapião, pois a efetiva perda da propriedade deve ser antecedida de indenização equivalente ao "preço" do imóvel. Ademais, ao contrário da típica sentença de cunho declaratório da usucapião, a hipótese em tela dá origem a sentença do tipo "constitutivo", na medida em que o ato judicial só terá eficácia translativa de domínio após o pagamento da indenização.

Não bastasse a exigência de indenização, distingue-se o instituto em tela da usucapião especial coletiva criada pelo art. 10 do Estatuto da Cidade [103] pois esta: (a) é de aplicação restrita às áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados; (b) só se aplica a possuidores de baixa renda; (c) está condicionada à utilização da área para fins de moradia dos possuidores; (d) prescinde da posse de boa-fé; (e) exige a impossibilidade de se identificar os terrenos ocupados por cada possuidor; e (f) não beneficia possuidores que sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.

De outro lado, não se pode confundir o instituto com algum tipo de desapropriação, pois o registro da propriedade se dá em favor de particulares. Assim, falta-lhe a característica mais singela da desapropriação que é a transferência compulsória da propriedade particular (ou pública de entidade de grau inferior para a superior) para o Poder Público ou seus agentes delegados. [104] Ademais, outras objeções podem ser alinhadas: (a) não há procedimento administrativo que o anteceda; (b) não é o Poder Público quem deve suportar a despesa com a indenização; (c) já existe hipótese de interesse público para desapropriação em caso muito semelhante (art. 2º, IV, da Lei 4.132, de 10/09/62); e (d) a antiga tradição brasileira segundo a qual ao juiz não compete decidir sobre a oportunidade e conveniência da desapropriação (art. 9º do DL 3.365, de 21/06/41).

Por fim, se o Código enumerou a desapropriação no §3º do art. 1.228, pode-se dizer que o §4º subseqüente criou outra forma de perda de propriedade pois utilizou a expressão o "proprietário também pode ser privado da coisa...".

Portanto, a regra dos §§4º e 5º do art. 1.228 da nova codificação parece regular caso de alienação compulsória de imóvel, cabendo ao Judiciário avaliar a presença dos pressupostos autorizadores, ligados ao interesse social ou econômico, que impõem o suprimento da vontade do proprietário. [105] É dizer, em prol do melhor atendimento à função social, permitem-se que os possuidores adquiram a propriedade do imóvel, de forma onerosa, mesmo contra a vontade de seu titular.

Nesse prumo, sob pena de não se atingir a vontade da norma, a alienação forçada há de ser considerada forma originária de aquisição da propriedade, tornando o imóvel, uma vez registrado em nome dos possuidores, insuscetível de reivindicação e liberado de quaisquer ônus, [106] cabendo aos eventuais credores somente a sub-rogação no preço pago ao antigo proprietário.

De sua vez, o novo Código não condicionou a vigência do instituto a nenhum óbice além da cláusula geral de vigência de um ano estabelecida no art. 2.044. [107] Assim, entrando em vigor a Lei 10.406/2002, são aplicáveis os §§4º e 5º do art. 1.228. Dessarte, enquanto não editadas regras processuais específicas, deve-se utilizar o procedimento comum ordinário, com certas adaptações ligadas à natureza do novo instituto. [108]

Nada obstante, a ausência de regras processuais é problemática. Caso o preço não seja pago espontaneamente e não possuam os possuidores bem penhoráveis, o proprietário ficará em situação delicada. O fato de o registro da área continuar em seu nome em nada o ajuda se não houver fixação de prazo razoável, na sentença, para que o preço seja pago pelos possuidores. Esse, porém, é problema que foge à temática deste estudo, por merecer estudo aprofundado de direito processual, em especial sobre a questão das sentenças condicionais (CPC, art. 460, par. único).

Quanto à contagem do prazo necessário à alienação forçada, [109] vê-se que a regra do art. 1.243 não se estende aos §§4º e 5º do art. 1.228. Logo, a contrario sensu, afigura-se que o novo Código não deseja a soma do tempo de posse dos antecessores ao dos adquirentes.

Por fim, em caso de imóvel rural, a grande extensão da área deve ser aquilitada pelo juiz com base no art. 4º da Lei 8.629/93. Tratando-se de imóvel urbano, haverá de utilizar-se de algum parâmetro descrito na lei municipal do plano diretor (art. 182, §2º da CF/88). Na omissão do legislativo municipal, deve o juiz se valer da regra do art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, mas não pode negar vigência aos §§ 4º e 5º do art. 1.228.

Mas não é tudo. A Lei 10.406/2002 veiculou outras figuras que devem ser interpretadas sem olvidar a íntima ligação que mantêm com o princípio da função social, mesmo tratando-se de institutos de longa data.

Nessa linha, pelos arts. 1.258 e 1.259, a construção que invada solo alheio pode ensejar a aquisição da propriedade da área invadida:

Art. 1.258. Se a construção, feita parcialmente em solo próprio, invade solo alheio em proporção não superior à vigésima parte deste, adquire o construtor de boa-fé a propriedade da parte do solo invadido, se o valor da construção exceder o dessa parte, e responde por indenização que represente, também, o valor da área perdida e a desvalorização da área remanescente.

Parágrafo único. Pagando em décuplo as perdas e danos previstos neste artigo, o construtor de má-fé adquire a propriedade da parte do solo que invadiu, se em proporção à vigésima parte deste e o valor da construção exceder consideravelmente o dessa parte e não se puder demolir a porção invasora sem grave prejuízo para a construção.

Art. 1.259. Se o construtor estiver de boa-fé, e a invasão do solo alheio exceder a vigésima parte deste, adquire a propriedade da parte do solo invadido, e responde por perdas e danos que abranjam o valor que a invasão acrescer à construção, mais o da área perdida e o da desvalorização da área remanescente; se de má-fé, é obrigado a demolir o que nele construiu, pagando as perdas e danos apurados, que serão devidos em dobro.

Dessarte, em vez da antiga sistemática que impunha a simples demolição do prédio invasor, [110] em nítida preocupação com o atendimento à função social da propriedade, é possível manter de pé a construção, com a transferência da propriedade do solo invadido, independentemente da data do esbulho.

Pela nova codificação, a caracterização do abandono do imóvel foi facilitada, com a presunção – absoluta – da intenção de abandonar o imóvel, quando, cessados os atos de posse, deixar o proprietário de satisfazer os ônus fiscais (§2º do art. 1.276), a menos que a área se encontre na posse de outrem (caput do art. 1.276). [111]

Também as velhas regras acerca do uso nocivo da propriedade foram embebidas da função social. Continua assegurado o direito do proprietário ou possuidor de fazer cessar interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha (art. 1.277 do CC novo), determinando a lei nova, porém, se devam considerar as interferências conforme a natureza da utilização e a localização do prédio, atendidas as normas que distribuem as edificações em zonas, e os limites ordinários de tolerância dos moradores da vizinhança (par. único do mesmo artigo). [112] No entanto, prevê o novo Código que eventual interesse público - aqui servindo de parâmetro de aferição do atendimento da função social - poderá justificar a perturbação, "caso em que o proprietário ou o possuidor, causador delas, pagará ao vizinho indenização cabal" (art. 1.278, caput). Tudo sem prejuízo a que o vizinho possa exigir a redução ou eliminação das interferências, quando possível (par. do art. 1.278).

Não olvidando o antigo direito de passagem do dono de prédio encravado (art. 1.285), o Código recém-aprovado criou a figura da passagem de cabos, tubulações e outros condutos subterrâneos de utilidade pública, em proveito dos prédios vizinhos (art. 1.286). Outra concessão à função social do imóvel em detrimento da propriedade privada.

Por fim, de certa forma, antecipa o novo Código a regulação da ótica ecológica da função social de propriedade, conforme diretriz contida no §1º do art. 1.228 já comentado.

Nesse prumo, no art. 1.291, impõe-se a vedação de poluição, por parte do possuidor do imóvel superior, das águas indispensáveis às primeiras necessidades da vida dos possuidores dos imóveis inferiores. [113]

Ademais, proibiram-se construções capazes de poluir, ou inutilizar, para uso ordinário, a água do poço, ou nascente alheia, a elas preexistentes (art. 1.309), bem como escavações ou quaisquer obras que tirem ao poço ou à nascente de outrem a água indispensável às suas necessidades normais (art. 1.310).

Contudo, a parte final do artigo 1.291 permite ao possuidor de imóveis superiores a poluição das águas que não forem indispensáveis às primeiras necessidades de vida dos possuidores dos imóveis inferiores, mediante recuperação ou o desvio do curso artificial das águas, se possível, ou o ressarcimento dos danos sofridos. Nessa parte, porém, ao admitir a possibilidade de poluição de águas, o novo Código retrocedeu, já que a disciplina da matéria está melhor tratada na Lei 6.938, de 31/08/81, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, e respectivos regulamentos. [114] Logo, seria melhor manter a diretriz fixada no art. 1.228, §1º, que remetia a questão à legislação especial.

Sobre o autor
Juliano Taveira Bernardes

juiz federal em Goiás, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás, mestre em Direito e Estado pela Universidade de Brasília (UnB), ex-membro da magistratura e do Ministério Público do Estado de Goiás, membro do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (IBDC)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BERNARDES, Juliano Taveira. Da função social da propriedade imóvel.: Estudos do princípio constitucional e de sua regulamentação pelo novo Código Civil brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 151, 4 dez. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4573. Acesso em: 23 dez. 2024.

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