O Garantismo Penal é teoria clássica do Direito Penal, construída por Luigi Ferrajoli, em sua obra “Direito e Razão: teoria do garantismo penal”. O fundamento basilar da sua teoria reside na garantia dos direitos fundamentais de cada cidadão frente aos poderes do Estado. A tese fundamental do garantismo está na rígida observância dos direitos fundamentais elencados na Constituição.
Ferrajoli afasta o retribucionismo, que enxerga a pena com um fim em si mesmo e estabelece limites ao poder de punir, uma vez que na relação processual é o acusado a parte mais frágil e, frente à magnitude do poder estatal, figura em condição menos favorável. Nesta seara, a função da pena, portanto, seria a dissuasão sem uma retribuição vingativa e desproporcional ao criminoso.
Em sua essência, estabelecendo conceitos da proporcionalidade e isonomia, pretende escudar o imputado de tantas garantias quantas necessárias para que, no seio da relação processual penal, consagre-se a paridade de armas e os julgamentos aproximem-se dos ideais de justiça.
Ferrajoli (2002, p.74-75) estrutura sua obra a partir de dez axiomas (ou princípios axiológicos fundamentais) e dez teses deles derivadas, que, segundo o mesmo, definem, quando ordenados e conectados sistematicamente, o modelo garantista de direito ou de responsabilidade penal. São os princípios, representados pelas máximas em latim: a) Nulla poena sine crimine, princípio da retributividade ou da consequencialidade da pena em relação ao delito; b) Nullum crimen sine lege, princípio da legalidade, no sentido lato ou no sentido estrito; c) Nulla lex (poenalis) sine necessitate, princípio da necessidade ou da economia do direito penal; d) Nulla necessitas sine injuria, princípio da lesividade ou da ofensividade do evento; e) Nulla injuria sine actione, princípio da materialidade ou da exterioridade da ação; f) Nulla actio sine culpa, princípio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal; g) Nulla culpa sine judicio, princípio da jurisdicionariedade, também no sentido lato ou no sentido estrito; h) Nullum judicium sine acusatione, princípio acusatório ou da separação entre o juiz e acusação; i) Nulla accusatio sine probatione, princípio do ônus da prova ou da verificação; e j) Nulla probatio sine defensione, princípio do contraditório ou da defesa, ou da falseabilidade.
Observados estes postulados, pode-se afirmar, sem maiores dificuldades, que a Constituição Federal brasileira de 1988 é garantista, assentando seus pilares nos direitos fundamentais dos indivíduos e na dignidade da pessoa humana, conforme se extrai do seu artigo 1º, III, que define a dignidade como princípio fundamental da República.
O garantismo penal é comumente citado na doutrina e jurisprudência pelo seu aspecto negativo, qual seja, a limitação ao arbítrio do Estado frente aos direitos e garantias fundamentais e a proteção do indivíduo contra excessos de poder, sobretudo em razão do poder punitivo estatal.
Contudo, o garantismo, a partir dos conceitos da proporcionalidade que também integram o ordenamento jurídico pátrio, não pode ser enxergado apenas sob essa perspectiva de restrição ao poder estatal. Da mesma maneira que existe um viés negativo, relacionado à abstenção do ente estatal para preservação das liberdades públicas, necessário entender a sua perspectiva positiva, consubstanciada num dever de agir para salvaguardar os interesses mais importantes da sociedade.
Nayara Caixeta e Joamar Nunes (2014), citando ROXIN (1998), afirmam:
O direito penal serve simultaneamente para limitar o poder de intervenção do Estado e para combater o crime. Protege, portanto, o indivíduo de uma repressão desmesurada do Estado, mas protege igualmente a sociedade e os seus membros dos abusos do indivíduo. Estes são os dois componentes do direito penal: o correspondente ao Estado de Direito e protetor da liberdade individual e o correspondente ao Estado Social e preservador do interesse social mesmo à custa da liberdade do indivíduo
No ordenamento brasileiro, o princípio da proporcionalidade atua como verdadeiro guardião dos direitos fundamentais. A proporcionalidade não se comporta apenas como um critério ou uma regra diante de lesões e conflitos entre direitos, mas é princípio básico do Estado de Direito, na harmonização de interesses e como instrumento necessário para a efetivação/aplicação da Constituição. O princípio da proporcionalidade pode ser definido como “princípio dos princípios”, e também como garantia e pressuposto da existência dos direitos fundamentais. (CAIXETA e NUNES, 2014)
Seu conceito contempla duas noções. A primeira é o garantismo negativo, a proibição do excesso (Ubermassberbot), que proíbe opção por toda e qualquer medida que seja excessivamente gravosa para o direito fundamental subordinado no caso concreto. A segunda é a proibição da proteção deficiente (Untermassverbot). Esta, menos conhecida, pressupõe que, a partir do momento que um determinado ordenamento jurídico se predispõe a proteger determinado direito como fundamental, a proteção do bem jurídico defendido por esse direito não pode ser insuficiente.
A Constituição Federal de 1988exige que a proteção dos direitos fundamentais seja feita de duas formas. De um primeiro modo, protegendo o cidadão frente ao agir do Estado; de outro, por meio do próprio Estado no exercício do seu direito de punir. Não somente o acusado tem o direito de ter seus direitos assegurados, como, igualmente, o cidadão tem o direito de ver seus direitos fundamentais resguardados, diante da violência de outros indivíduos. Em síntese, essa concepção permite inferir que o Estado está obrigado não apenas a observar os direitos de qualquer indivíduo em face das investidas do Poder Público (direitos de defesa), mas também a garantir os direitos fundamentais contra agressão propiciada por terceiros.
Alguns dispositivos constantes do art. 5º, da Constituição Federal, podem ser mencionados como exemplo do amplo elenco de normas que não outorgam direitos, mas que, antes, determinam a criminalização de condutas. Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à propriedade, nos termos seguintes: XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais; XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei; XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem; XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.
A propósito do princípio da proporcionalidade, não há como questionar a sua existência, embora implícita, na Constituição Federal de 1988. Dessa forma, também não há como negar a aplicação da sua vertente positiva no atual Estado Democrático e Social de Direito, no qual se exige uma atuação do Estado com o fim de proteger de forma efetiva os bens jurídicos. A Carta Magna, apesar de não trazer expressamente o princípio da proibição da proteção deficiente, prevê a necessidade de proteção de determinados bens e valores e, ainda, traz um rol de bens com relevância constitucional e as indicações formais criminalizadoras. (FREITAS, 2006)
Nesse sentido, é esclarecedora a observação de Sarlet acerca da outra face do princípio da proporcionalidade, relacionada à proibição da proteção deficiente:
(...) por outro lado o Estado – também na esfera penal – poderá frustrar o seu dever de proteção atuando de modo insuficiente (isto é, ficando aquém dos níveis mínimos de proteção constitucionalmente exigidos) ou mesmo deixando de atuar, hipótese, por sua vez, vinculada (pelo menos em boa parte) à problemática das omissões inconstitucionais. É nesse sentido que – como contraponto à assim designada proibição de excesso – expressiva doutrina e inclusive jurisprudência têm admitido a existência daquilo que se convencionou batizar de proibição de insuficiência (no sentido de insuficiente implementação dos deveres de proteção do Estado e como tradução livre do alemão I).
Sobre este tema, da doutrina brasileira emerge uma corrente denominada Garantismo Penal Integral, que tem como defensores Douglas Fischer, Vladimir Aras e Daniel de Resende Salgado, que aponta para a necessidade de se praticar um garantismo observando suas perspectivas positiva e negativa. Para eles, enxergar a persecução penal unicamente sob o ponto de vista das garantias do acusado é prejudicial à ordem social e isso consiste num "garantismo hiperbólico monocular", pois é protecionista em excesso e despreza uma face do princípio da proporcionalidade. Afirmam que o garantismo da forma que é aplicado não é o mesmo idealizado por Ferrajoli, mas uma distorção da sua teoria.
Sobre o Garantismo Penal Integral, Douglas Fischer leciona:
Precisamos ser sinceros e incisivos (sem qualquer demérito a quem pensa em contrário): têm-se encontrado muitas e reiteradas manifestações doutrinárias e jurisprudenciais com simples referência aos ditames do “garantismo penal”, sem que se compreenda, na essência, qual a extensão e os critérios de sua aplicação. Em muitas situações, ainda, há distorção dos reais pilares fundantes da doutrina de Luigi Ferrajoli (quiçá pela compreensão não integral dos seus postulados). Daí que falamos que se tem difundido um garantismo penal unicamente monocular e hiperbólico, evidenciando-se de forma isolada a necessidade de proteção apenas dos direitos dos cidadãos que se veem processados ou condenados. Relembremos: da leitura que fizemos, a grande razão histórica para o surgimento do pensamento garantista (que aplaudimos e concordamos, insista-se) decorreu de se estar diante de um Estado em que os direitos fundamentais não eram minimamente respeitados, especialmente diante do fato do sistema totalitário vigente na época. Como muito bem sintetizado por Paulo Rangel, (4) a teoria do garantismo penal defendida por Luigi Ferrajoli é originária de um movimento do uso alternativo do direito nascido na Itália nos anos setenta por intermédio de juízes do grupo Magistratura Democrática (dentre eles Ferrajoli), sendo uma consequência da evolução histórica dos direitos da humanidade que, hodiernamente, considera o acusado não como objeto de investigação estatal, mas sim como sujeito de direitos, tutelado pelo Estado, que passa a ter o poder-dever de protegê-lo, em qualquer fase do processo (investigatório ou propriamente punitivo).
Sucede que a ideia que se extrai do Garantismo Penal de Ferrajoli, consoante os axiomas já mencionados, é que sua construção, naturalmente, já contempla a harmonia esperada entre pretensão punitiva e garantias do acusado. Sua teoria tem o objetivo de equilibrar o acusado na relação processual com o Estado, quando este último busca satisfazer uma pretensão punitiva. Elmir Duclerc (2014, p. 06) afiança que, pela teoria de Ferrajoli, "seria alcançado equilíbrio na relação custo/benefício da intervenção penal, com a imposição de certos limites ao poder punitivo, mediante de um sistema de garantias penais e processuais penais". Isso, contudo, nada tem a ver com proteger em excesso o sujeito e impedir que o Estado consiga, mesmo quando legitimado pela ofensa a bens jurídicos importantes, aferida no âmbito do processo, atribuir a responsabilidade ao autor do delito.
O Garantismo Penal, consagrado por Ferrajoli, propõe um equilíbrio fundamental entre a atividade do estado no exercício do seu direito concreto de punir e as garantias do acusado na persecução penal. Não integra a sua teoria a necessidade de que as garantias individuais sobreponham o jus puniendi, ou tampouco que, ultrapassando as barreiras dos direitos fundamentais, em prol de uma garantia da ordem, use o estado do seu poder para, cegamente, punir a qualquer custo, transformando o acusado num inimigo da sociedade, tal como proposto por Günter Jakobs em sua teoria da funcionalidade sistêmica.
Se por um lado o acusado tem direitos e garantias fundamentais que impedem o excesso de poder do Estado, por outro, não se pode esquecer que a sociedade tem, como um todo, direito à vida, liberdade, segurança e propriedade. A proibição do excesso (Ubermassverbot) e a proibição da proteção deficiente (Untermassverbot) existem, portanto, para que ambos os valores sejam harmonizados. Que o sujeito não seja transformado em objeto dos processos estatais, nem tenha injustamente suprimidas suas liberdades, mas que os bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal sejam suficientemente protegidos diante de violações concretas. Os direitos fundamentais desempenham não apenas uma função limitadora do poder estatal, mas impõem a este um dever concreto de tutela perante os cidadãos.
Para Lênio Streck (2007), a maioria da doutrina e da jurisprudência brasileira que trata do tema, ainda não se deu conta de que está trabalhando com o princípio da proporcionalidade sob um único horizonte.
com a hipótese – para mim, ahistórica e atemporal – do garantismo negativo, em que a violação da proporcionalidade se dá pela proibição de excesso (Ubermassverbot), esquecendo a relevante circunstância de que o estado pode via a violar o princípio da proporcionalidade na hipótese de não proteger suficientemente direitos fundamentais de terceiros (garantismo positivo), representado pela expressão alemã Untermassverbot (STRECK, 2007, p. 100).
Nayara Firmes Caixeta e Joamar Gomes Vieira Nunes (2014, p. 37), sobre o garantismo positivo e o papel do Estado na sua proteção, aduzem:
Ademais, o Estado, possuindo a função de protetor dos direitos fundamentais, não tem atualmente apenas a função de proteção contra o arbítrio, mas também a obrigatoriedade de concretizar os direitos prestacionais e, ao lado deste, a obrigação de proteger os indivíduos contra agressões provenientes de comportamentos delitivos, razão pela qual a segurança passa a fazer parte dos direitos fundamentais (art. 5º. Caput, da Constituição Federal). Portanto, a tarefa do novo modelo de Estado, prevista na CF/88, é a de dar resposta para as necessidades de segurança de todos os direitos, incluindo-se nesse rol também os prestacionais por parte do Estado, direitos econômicos, sociais e culturais, e não somente daquela parte de direitos denominados de prestação de proteção, em particular contra agressões provenientes de comportamentos delitivos de determinadas pessoas. Isso significa afirmar e admitir que a Constituição determina - explícita ou implicitamente - que a proteção dos direitos fundamentais deve ser feita de duas formas: em uma, protege o cidadão frente ao Estado; em outra, o faz por meio do Estado – e inclusive através do direito punitivo – uma vez que o cidadão também tem o direito de ver seus direitos fundamentais protegidos, em face da violência de outros indivíduos.
Aos poucos, o princípio da Proibição da Proteção Deficiente e o garantismo positivo vem sendo utilizado nos tribunais para resguardar direitos fundamentais. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE nº. 418.376-5, datado de 09.02.06, proferiu a primeira decisão em que o citado princípio serviu como base para afastar a aplicação de uma causa extintiva da punibilidade. O Ministro Gilmar Mendes, como voto vencedor, decidiu impor a sanção penal ao réu, sob o fundamento de que,
de outro modo, estar-se-ia a blindar, por meio de norma penal benéfica, situação fática indiscutivelmente repugnada pela sociedade, caracterizandose típica hipótese de proteção insuficiente por parte do Estado, num plano mais geral, e do Judiciário, num plano mais específico.
E, acerca do princípio da proporcionalidade, trouxe o seguinte entendimento:
Quanto à proibição de proteção insuficiente, a doutrina vem apontando para uma espécie de garantismo positivo, ao contrário do garantismo negativo (que se consubstancia na proteção contra os excessos do Estado) já consagrado pelo princípio da proporcionalidade. A proibição de proteção insuficiente adquire importância na aplicação dos direitos fundamentais de proteção, ou seja, na perspectiva do dever de proteção, que se consubstancia naqueles casos em que o Estado não pode abrir mão da proteção do direito penal para garantir a proteção de um direito fundamental. (...) conferir à situação dos presentes autos o status de união estável, equiparável a casamento, para fins de extinção da punibilidade (no termos do art. 107, VII, do Código Penal) não seria consentâneo com o princípio da proporcionalidade no que toca à proibição de proteção insuficiente. Isso porque todos os Poderes do Estado, dentre os quais evidentemente está o Poder Judiciário, estão vinculados e obrigados a proteger a dignidade das pessoas.
Conclui-se, deste modo, que não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, visto que encontram limites nos demais direitos igualmente consagrados pelo texto Constitucional. Assegura-se, assim, a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeitos aos direitos e garantias de terceiros. Como bem lecionam Gilmar e Paulo Gonet Branco (2012) os direitos fundamentais também podem ser objeto de limitações, não sendo, pois, absolutos. Outros direitos fundamentais e valores com sede constitucional podem limitá-los.