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O princípio da vedação à autoincriminação no Direito brasileiro.

Aplicações do nemo tenetur se detegere e seus desdobramentos no exercício da jurisdição penal

Agenda 13/01/2016 às 02:12

Em razão da amplitude adotada no ordenamento pátrio para o nemo tenetur se detegere, importante o presente estudo, a fim de delimitar seu real âmbito de proteção, contribuindo com suas repercussões ante o enfrentamento do poder estatal pelo indivíduo.

No ordenamento jurídico brasileiro o princípio da vedação à autoincriminação alcança interpretação mais dilatada do que aquela que a sua evolução histórica permite inferir. Além da previsão constitucional constante no artigo 5º, LXIII, de que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado", também no plano infraconstitucional e na jurisprudência dos tribunais superiores é insofismável a consagração e proteção desta garantia.

Até o ano de 2003, o artigo 186, do Código de Processo Penal brasileiro, ao dispor sobre o direito ao silêncio, estabelecia em seu texto o comando de que “antes de iniciar o interrogatório, o juiz observará ao réu que, embora não esteja obrigado a responder as perguntas que lhe forem formuladas, o seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa”.

Ocorre que a redação da parte final deste texto, antes das alterações promovidas no ano de 2003, era flagrantemente incompatível com a Constituição de 1988, eis que contrária a princípios elementares do seu texto, já estudados e, ainda, antagônica a tratados internacionais aderidos pelo Estado brasileiro, como, por exemplo, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, ambos com cartas de adesão depositadas pelo Brasil em 1992 e aprovadas no mesmo ano.

Promoveu-se, então, por meio da lei 10.792/03, a alteração da redação do artigo 186 do Código de Processo Penal, de forma a adequá-lo às diretrizes constitucionais. O texto, agora apropriado ao direito ao silêncio e às repercussões do princípio do nemo tenetur se detegere, aduz o seguinte:

Art. 186 do CPP – Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas.

Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.

O novo texto abarca, sem exceções, o significado essencial do nemo tenetur se detegere e a garantia do direito ao silêncio. Nota-se que contempla conceitos fortemente desenvolvidos em sua evolução histórica espalhados ao redor do mundo e preceitos sobremaneira importantes, provenientes de normas supralegais, concernentes aos direitos humanos.

No Brasil, de forma sistematizada, pode-se estruturar o princípio da vedação à autoincriminação em três direitos principais: o direito de não conformar-se com a acusação; o direito de não depor contra si; e o direito de não contribuir para a produção de outras provas (DEL PONTE, 2011). Interessa ao presente estudo conferir cada um desses desdobramentos de forma mais próxima.

Direito de Não Conformar-se com a Acusação

O direito à não incriminação permite ao acusado não conformar-se com a acusação, de forma que este poderá a todo tempo afirmar sua inocência no caso concreto.

Entretanto, em alguns sistemas, como é caso de alguns estados dos Estados Unidos, existem institutos que possibilitam que o réu receba uma pena mitigada caso concorde com a acusação, evitando-se o processo penal e aplicando-se, imediatamente, a pena.

Nos Estados Unidos, por exemplo, antes de ocorrer a instauração da ação penal, o acusado será convocado para o chamado pleading, oportunidade em que poderá declarar se está de acordo com a denúncia ou não, de modo que a pena poderá ser, de plano, fixada. (DEL PONTE, 2011)

No Direito Brasileiro há um instituto aproximado que é a transação penal, contudo, a aceitação da proposta não acarreta confissão da culpabilidade e a homologação do" acordo "não importará em condenação para o acusado. Os efeitos desta transação, todavia, comportam aproximação aos institutos norte-americanos, uma vez que, importa em aplicação de uma penalidade sem que o fato tenha passado por comprovação no seio de um devido processo, assegurados o contraditório, a ampla e os demais direitos fundamentais de caráter judicial e as garantias constitucionais do processo.

Apesar da existência do instituto da transação penal, não existe no processo penal brasileiro uma fase de concordância ou não com os fatos imputados. O réu tem a oportunidade de se manifestar no seu interrogatório, que será um dos últimos, senão o último ato de instrução probatória. No entanto, mesmo que concorde com as acusações, o procedimento penal deve continuar, não existindo possibilidade de antecipar-se para a imediata aplicação da pena.

A confissão no Brasil tem valor probatório relativo, devendo ser confrontada com as demais provas do processo para ter validade. Não há a possibilidade de se obter a condenação do réu com fundamento exclusivo na sua confissão. A validade deste ato está condicionada à sua confirmação pelos outros meios de prova.

Eugênio Pacelli de Oliveira (2011) aduz que a confissão do réu “constitui uma das modalidades de prova com maior efeito de convencimento judicial, embora, é claro, não possa ser recebida como valor absoluto”. Adverte, ainda, que é essencial “se confrontar o conteúdo da confissão com os demais elementos de prova” (op. Cit., p. 403) e que “deverá ser também contextualizada junto aos demais elementos probatórios, quando houver, diante do risco, sempre presente, sobretudo nos crimes societários, de autoacusação falsa, para proteger o verdadeiro autor” (op. Cit, p. 404).

Os institutos que propõem ao réu benefícios de redução de pena em troca de que aquiesça com a acusação, bem como no caso da transação penal, que evita a discussão do fato no âmbito da dialética processual, impedem o exercício do direito à não incriminação. No primeiro caso, o réu deixa de lado a sua garantia com medo de que, ao final do processo sofra pena mais grave. Ressalte-se, contudo, que no Brasil a transação penal ocorre apenas nos casos da lei 9.099/92, quando se tratar de crimes de menor potencial ofensivo.

Alguns doutrinadores demonstram preocupação com relação a esse instituto, aplicado no âmbito dos Juizados Criminais. Pertinente citar a crítica tecida por Luiz Flávio Gomes (1992, p. 88):

Ao se permitir uma facilitação de pronta reabilitação ao infrator (o que sinceramente não consigo vislumbrar com a mesma clareza e autenticidade); economizam-se recursos humanos e materiais. Em contraposição, e com procedência inequivocamente maior aos meus olhos, há um exército de desvantagens do porte do sacrifício do princípio da presunção da inocência (que adquire um caráter farisaico no sistema norteamericano atual), da verdade real, do contraditório, do devido processo legal; há ademais, o risco das injustiças, da flagrante desigualdade das partes, da falta de publicidade e de lealdade processual, dentre tantos outros.

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Eugênio Pacelli, no mesmo sentido, também informa suas ressalvas ao procedimento praticado nos Juizados Criminais, realçando que:

A pressa e a informalidade com que as questões podem ser tratadas - e a realidade demonstra tal incidência - nos Juizados, com os olhos voltados para a eficiência e a rápida satisfação dos interesses em conflito, podem ser altamente nocivas à realização da Justiça Penal.

A maioria da doutrina, porém, não concorda com as opiniões anteriormente mencionadas e não considera que a transação penal constitua ofensa ao princípio da vedação á autoincriminação, não somente com base na maior celeridade processual, mas porque o instituto permite ao sujeito escolher o prosseguimento do processo, sendo asseguradas todas as garantias inerentes a este, ou a transação penal, sem todos os trâmites processuais. (DEL PONTE, 2011, p.27)

Direito de não depor contra si

É direito do acusado exercitar sua autodefesa no curso do processo. O exercício deste direito pode se manifestar de forma positiva, quando este presta declarações perante a autoridade estatal para esclarecer o fato delituoso a ele imputado, ou de forma negativa, valendo-se do princípio da vedação à autoincriminação, através do direito de permanecer calado.

Na lição de TROIS NETO (2011, p. 127), o princípio da vedação à autoincriminação, traduzido no direito de não depor contra si, pode se manifestar nas formas a seguir:

Proibição de compelir alguém a confessar, ou seja, admitir a prática do fato imputado; a revelá-lo, quando as autoridades não tiverem notícia de que houve o crime ou de quem possa ser seu autor; e a dar qualquer informação sobre uma conduta penalmente tipificada, ainda que para negar a sua prática.

O momento em que o réu pode utilizar-se do seu direito de não depor contra si é no seu interrogatório. Antes da alteração legislativa trazida pela Lei 11.719/2008, este ato processual era realizado imediatamente após a apresentação de defesa prévia, impedindo que o réu tivesse acesso a todas as provas e soubesse quais os pontos que deveria esclarecer. (DEL PONTE, 2011)

A mudança no Código de Processo Penal colocou o interrogatório como último ato probatório a ser realizado no processo, ressalvadas as diligências que, porventura, devam ser realizadas a partir das provas. O artigo 400, do CPP, então passou a contemplar o seguinte texto normativo:

Na audiência de instrução e julgamento, a ser realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, ressalvando o disposto no art. 222 deste Código, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado.

O interrogatório passa a ser utilizado, assim, como um meio de defesa, distanciando-se de um procedimento direcionado, inquisitorialmente, para a sua condenação.

Além disso, o direito de não por contra si não se restringe ao processo penal, mas abrange qualquer atividade estatal que vise obter informações destinadas à apuração de fatos criminosos. Em interrogatório policial, no interrogatório judicial, em comissões parlamentares de inquérito, em sindicâncias e procedimentos disciplinares é assegurado ao acusado valer-se da prerrogativa de não responder qualquer questionamento que o comprometa, nem prestar informações que não queira.

Em que pese a norma constitucional apenas faça referência ao preso quanto ao exercício do direito ao silêncio, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal estende o direito ao silêncio às testemunhas, ou seja,"não há limites espaciais nem procedimentais: estende-se a qualquer indagação por autoridade pública de cuja resposta possam advir subsídios à imputação ao declarante da prática de crime‟ (HC 79.244-8, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, desp. Proferido em 26-041999).

A respeito do direito de não depor contra si nas Comissões Parlamentares de Inquérito, louvável o procedente do Supremo Tribunal Federal, de relatoria do Ministro Celso de Mello:

COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO - PRIVILÉGIO CONTRA A AUTO-INCRIMINAÇÃO - DIREITO QUE ASSISTE A QUALQUER INDICIADO OU TESTEMUNHA - IMPOSSIBILIDADE DE O PODER PÚBLICO IMPOR MEDIDAS RESTRITIVAS A QUEM EXERCE, REGULARMENTE, ESSA PRERROGATIVA - PEDIDO DE HABEAS CORPUS DEFERIDO. - O privilégio contra a autoincriminação - que é plenamente invocável perante as Comissões Parlamentares de Inquérito - traduz direito público subjetivo assegurado a qualquer pessoa, que, na condição de testemunha, de indiciado ou de réu, deva prestar depoimento perante órgãos do Poder Legislativo, do Poder Executivo ou do Poder Judiciário. - O exercício do direito de permanecer em silêncio não autoriza os órgãos estatais a dispensarem qualquer tratamento que implique restrição à esfera jurídica daquele que regularmente invocou essa prerrogativa fundamental. Precedentes. O direito ao silêncio - enquanto poder jurídico reconhecido a qualquer pessoa relativamente a perguntas cujas respostas possam incriminá-la (nemo tenetur se detegere) - impede, quando concretamente exercido, que aquele que o invocou venha, por tal específica razão, a ser preso, ou ameaçado de prisão, pelos agentes ou pelas autoridades do Estado. - Ninguém pode ser tratado como culpado, qualquer que seja a natureza do ilícito penal cuja prática lhe tenha sido atribuída, sem que exista, a esse respeito, decisão judicial condenatória transitada em julgado. O princípio constitucional da não-culpabilidade, em nosso sistema jurídico, consagra uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sido condenados definitivamente por sentença do Poder Judiciário. Precedentes. (STF - HC 79812 - TP - Rel. Min. Celso de Mello - DJU 16.02.2001 - p. 00021)

Num plano geral, o Supremo Tribunal Federal também assegura, em outros importantes julgados, que ninguém pode ser constrangido a confessar a prática de conduta criminosa, estando inserida esta proteção no alcance da cláusula do devido processo legal (due process of law).

Oportuna a invocação do seguinte precedente do STF:

Esta Suprema Corte, fiel aos postulados constitucionais que delimitam, nitidamente o círculo de atuação das instituições estatais, salientou que qualquer indivíduo que figure como objeto de procedimento investigatório, verbis: tem, dentre as várias prerrogativas que lhe são constitucionalmente asseguradas, o direito de permanecer calado. Nemo tenetur se detegere. Ninguém pode ser constrangido a confessar a prática de um ilícito penal. O direito de permanecer em silêncio insere-se no alcance concreto da cláusula constitucional do devido processo legal. E nesse direito ao silêncio inclui-se, até mesmo por implicitude, a prerrogativa processual de o acusado negar, ainda que falsamente perante a autoridade policial ou judiciária, a prática da infração penal (RHC, Rel. Min. Celso de Mello, em RTJ 141/512).

Embora a norma constitucional refira-se ao preso, por se tratar de uma regra processual penal, o direito ao silêncio admite interpretação extensiva, ou seja, a garantia compreende qualquer pessoa que venha a ser incriminada, tanto a pessoa presa como o acusado que está em liberdade, sendo esse o entendimento doutrinário e jurisprudencial.

Imperioso destacar que essa é a tendência, ou seja, não somente assegurar o direito ao silêncio, mas também coibir qualquer interpretação prejudicial àquele que invocou o direito constitucional em seu benefício, o que se verifica da decisão a seguir:

[...] III. Nemo tenetur se detegere: direito ao silêncio. Além de não ser obrigado a prestar esclarecimentos, o paciente possui o direito de não ser interpretado contra ele o seu silêncio. IV. Ordem concedida, para cassar a condenação. (STF, HC n. 84.517/SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence, em 19.10.2004)

José Carlos Barbosa Moreira (apud LIMA, 2004, p. 58), observa que:

[...] importa notar que entre nós se vêm dando à garantia extensão maior que no seu próprio berço. É o que sucede quando se extrai do direito ao silêncio, constitucionalmente consagrado, a inadmissibilidade de provas que não se relacionam com aquilo que o indiciado ou acusado diz. Sirvam de exemplo as impugnações que se tem levantado à utilização de aparelhos destinados a medir o teor da intoxicação por álcool, à exigência do fornecimento de padrões gráficos, e assim por diante. Como antes se demonstrou, tal entendimento não acha apoio no direito norte-americano, nem pode, portanto, ser atribuído, sic et simpliciter, à sua influência.

Consoante os julgados já elencados, no ordenamento brasileiro a vedação à autoincriminação assume interpretação sobremodo extensiva. É o que se verifica, também, do julgado a seguir, referente ao Habeas Corpus nº 77.135, do Supremo Tribunal Federal:

Diante do princípio nemo tenetur se detegere, que informa o nosso direito de punir, é fora de dúvida que o dispositivo do inciso IV do artigo 174 do Código de Processo Penal há que ser interpretado no sentido de não poder ser o indiciado compelido a fornecer padrões gráficos do próprio punho, para exames periciais, cabendo apenas ser intimado para fazê-lo a seu alvedrio (STF, HC nº. 77.135, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJU de 6.11.1998).

Na Interpretação do STF, então, o acusado não é obrigado a fazer aquilo que não deseja. Fica a seu critério prestar, ou não, declarações em seu interrogatório, bem como o fornecimento de padrões gráficos para exames periciais. Como na área penal não se pode condenar ninguém por presunção, emerge desta interpretação que a negativa não poderá jamais ser respaldo para a procedência da ação penal.

Necessário aludir, por fim, que, o direito de não depor contra si, apesar de ser mais comumente utilizado em oposição ao agir estatal, a fim de evitar excessos de poder deste (eficácia vertical) também pode ser exercido em face de terceiros (eficácia horizontal) que, embora não atuem em nome do Estado, praticam condutas ofensivas ao princípio da vedação à autoincriminação.

Tiago Del Ponte (2011, p. 30) cita a "teoria da bandeja de prata", cuja ideia, rejeitada no Brasil, permitiria que provas obtidas por particulares seriam consideradas válidas, mesmo que essas mesmas provas quando obtidas pelo Estado fossem consideradas ilegais.

O Supremo Tribunal Federal decidiu a respeito, negando sua conformidade com o ordenamento brasileiro:

Qualifica-se como prova ilícita o material fotográfico que, embora alegadamente comprobatório de prática delituosa, foi furtado do interior de um cofre existente em consultório odontológico pertencente ao réu, vindo a ser utilizado pelo Ministério Público, contra o acusado, em sede de persecução penal, depois que o próprio autor do furto entregou à Polícia fotos incriminadoras que havia subtraído. (STF - RE 251445 - Rel. Min. Celso de Mello - DJU 03.08.2000 - p. 00068)

Assim, as provas obtidas por terceiros sem a permissão do réu, ou ausente autorização judicial para tanto, são consideradas ilegais por infringir direitos fundamentais do acusado, inclusive o princípio da vedação à autoincriminação.

Direito de Não Contribuir para a Produção de Outras Provas

No sistema jurídico brasileiro, comumente discute-se a obrigatoriedade de o acusado submeter-se a determinado tipo de prova determinado pelo juízo ou até mesmo pelas autoridades policiais. O Código de Processo Penal não traz regra expressa a respeito do dever do acusado de colaborar, ou não, na realização dos tipos de provas que dependam da sua colaboração.

Nesse contexto, discute-se que o acusado não pode ser obrigado a exercer condutas ativas para a produção de provas concretas contra si, como, por exemplo, participar de reconstituições e entregar documentos ou objetos, nem a submeter-se como objeto de prova. Seria ofensa à não autoincriminação também a sua participação com condutas passivas, quando imposto que tolere a utilização de seu corpo e imagem na produção de provas.

No Processo Penal, há um intenso conflito entre os interesses da sociedade (dever dos poderes públicos) e o interesse individual (proteção dos direitos fundamentais). Diante disso, busca-se uma harmonia entre ambos os interesses, ou seja, não é possível permitir a sobreposição do interesse estatal na persecução penal, pois caso isso ocorresse, estaríamos diante de um método autoritário que violaria as garantias constitucionais e a dignidade da pessoa humana. Por outro lado, também não é possível haver uma prevalência absoluta e ilimitada do interesse individual, pois nesse caso, a persecução penal estaria fracassada.

Ensina Trois Neto (2010, p. 132):

A intervenção no direito à não autoincriminação será tanto menos grave quanto menor for o grau de exigência de atividade exigido do imputado, mas não podem ser excluídas da proteção do direito fundamental, antes de qualquer ponderação, as condutas que, embora predominantemente passivas, de algum modo digam respeito à liberdade de acusado para determina como parte. A existência de razões para a submissão do acusado a uma diligência probatória não faz apagar, por completo, a sua condição de sujeito processual.

Assim, pode-se dizer que a inexistência do dever de colaborar decorrente do nemo tenetur se detegere não é absoluta, ou seja, encontra alguns limites, sob pena de aniquilar, em determinados casos, a persecução penal eficaz do Estado.

Maria Elizabeth Queijo (2003, p. 244) classifica as provas que dependem da colaboração do acusado para sua produção em provas que implicam intervenção corporal no acusado e provas cuja produção não depende de intervenção física no acusado. As provas que implicam intervenção corporal podem ser invasivas ou não invasivas.

Dentre as provas consideradas invasivas pode-se citar a coleta de sangue e o exame ginecológico, como exemplos comuns. Dentre as não invasivas estão os exames de matérias fisiológicos, identificação datiloscópica, exames realizado através de fios de cabelo ou pelos, dentre outros. A busca pessoal, por sua vez, pode ser feita através de meios invasivos ou não.

Dentre as provas cuja produção não depende de intervenção física no acusado, porém dependem de sua colaboração, estão as diligências de reconhecimento, de acareação, os exames grafotécnico e de padrões vocais, o uso do etilômetro, entre outros. (VIOLIN, 2011)

As provas não invasivas, em regra, harmonizam as exigências da persecução penal e os direitos fundamentais do acusado, tendo, portanto, grande importância no processo penal.

No Direito Brasileiro, como regra geral, as provas invasivas não podem ser realizadas contra a vontade do acusado. Todavia, em casos excepcionais, como ocorrência de delitos graves (por exemplo, hediondos), mediante decisão judicial fundamentada, é possível determinar que o acusado tolere passivamente a produção de alguma prova, desde que de outro modo não possa ser efetivada (e desde que seja respeitada a integridade física e moral). (SANGUINÉ, 2010)

No julgamento do Habeas Corpus de número 71.373, que versava sobre a possibilidade de colheita compulsória de material biológico para fins de exame genético de investigação de paternidade, o Ministro Francisco Rezek ponderou que:

O direito ao próprio corpo não é absoluto ou ilimitado. Por vezes a incolumidade corporal deve ceder espaço a um interesse preponderante (...). O sacrifício imposto à integridade física do paciente é risível quando confrontado com o interesse do investigante, bem assim com a certeza que a prova pericial pode proporcionar à decisão do magistrado”. (HC 71.373, Relator: Min. Francisco Rezek, Julgamento: 10/11/1994, Órgão Julgador: Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal).

Em relação ao tipo penal previsto no artigo 306, do Código de Trânsito Brasileiro, que pune a conduta de "conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de substância psicoativa que determine dependência", o Superior Tribunal de Justiça tem entendimento inclinado ao princípio do nemo tenetur se detegere.

Para o Tribunal, compelir o indivíduo a se submeter ao exame de sangue e ao teste do "bafômetro", elencados no artigo 3º, da Resolução 432, do CONTRAN, ofende o princípio da vedação à autoincriminação. A seguir trecho do julgado:

O entendimento adotado pelo Excelso Pretório, e encampado pela doutrina, reconhece que o indivíduo não pode ser compelido a colaborar com os referidos testes do 'bafômetro' ou do exame de sangue, em respeito ao princípio segundo o qual ninguém é obrigado a se autoincriminar (nemo tenetur se detegere). Em todas essas situações prevaleceu, para o STF, o direito fundamental sobre a necessidade da persecução estatal. 2. Em nome de adequar-se à lei a outros fins ou propósitos não se pode cometer o equívoco de ferir os direitos fundamentais do cidadão, transformando-o em réu, em processo crime, impondo-lhe, desde logo, um constrangimento ilegal, em decorrência de uma inaceitável exigência não prevista em lei.

Nota-se que também em relação à produção de provas, assim como nos demais aspectos, o princípio da vedação à autoincriminação no Brasil manifesta-se de forma ampliada. Numa relação pouco balanceada, privilegia-se o interesse do acusado em detrimento dos interesses do Estado no exercício do direito de punir.

É certo que, contribuindo para a formação de meios probatórios, não deve o acusado contribuir com condutas ativas e passivas de qualquer tipo, que importem em violação ao seu direito à não autoincriminação, no entanto, também é claro que esse direito não pode ser visto como absoluto.

Essencial, nesta seara, invocar a proporcionalidade, a fim de que a proteção ao acusado não se sobreponha à persecução penal, afinal, os direitos e garantias fundamentais tem a finalidade de tirá-lo do status de desvantagem frente ao poder do Estado, não de colocá-lo numa posição de superproteção.

Sobre o autor
Danilo Batista

Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Pós-graduando em Direito Administrativo pela Universidade Estácio de Sá. Pesquisador nas áreas de Direito Penal Administrativo e Direito Processual Penal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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