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Sucessão do cônjuge e do companheiro: problemas ainda!

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Agenda 28/01/2016 às 19:44

Artigo de autoria de Diogo Gomes Taborda, escrito sob orientação do Prof. Vitor Hugo Oltramari. Entregue como Trabalho de Conclusão de Curso na Pós-Graduação em Direito Civil e Processo Civil da Universidade de Passo Fundo - UPF, obtendo grau DEZ.

 

 

 

Resumo: o presente estudo visa realizar uma análise do tratamento desigual dado à sucessão do companheiro em relação à sucessão do cônjuge, no ordenamento jurídico brasileiro, principalmente da sua constitucionalidade. Ao longo deste artigo, serão trazidas as noções modernas de família, casamento e união estável, passando, na sequência, a uma demonstração da disciplina legal e de posições doutrinárias acerca da matéria, que demonstram ser a sucessão do cônjuge supérstite, no casamento, muito mais benéfica que a do companheiro sobrevivente, na união estável, o que fere o princípio da isonomia. Ato contínuo, verificar-se-á o atual estágio da jurisprudência, especificamente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, momento no qual se constatará que a questão está com repercussão geral reconhecida na Suprema Corte. Elege-se como método de abordagem o dialético e como técnica de abordagem a pesquisa bibliográfica e jurisprudencial.

ATUALIZAÇÃO: no julgamento do Recurso Extraordinário 646.721-RS e do Recurso Extraordinário n.º 878.694-MG, o STF, em 10/05/2017, julgou inconstitucional o artigo 1.790 do Código Civil, equiparando o tratamento sucessório do companheiro, na união estável, ao do cônjuge, no casamento.

Palavras-chave: Casamento. Família. Isonomia. Sucessão. União Estável.  

 

Abstract: this present paper aims to carry out an analysis of the inequality treatment given to the succession of the companion with respect to the spouse succession, in the Brazilian legal order, mainly from its constitutionality. Throughout this work, it will be brought some modern notions of family, marriage and stable union, and in the following sequence, there will be a demonstration of discipline and doctrinal positions about the subject in question, which determines that the succession of the surviving spouse in marriage, is much more beneficial than the surviving partner in a stable relationship, which violates the principle of equality. From that time forward, the current step of the jurisprudence will be enquired, specifically the Court of Justice of Rio Grande do Sul, the Superior Court and the Supreme Court. At this point it will be established that this issue is already identified in Supreme Court. The dialectical approach was named as a research method, and as approach technique the bibliographic and jurisprudential research.

 

Keywords: Marriage. Family. Equality. Succession. Stable Union.

 

Introdução

 

A atual ordem constitucional, instituída a partir da Carta de 1988, trouxe, sem sombra de dúvidas, inúmeros avanços sociais, a exemplo de um extenso rol de direitos e garantias fundamentais, os quais gravitam ao redor do seu núcleo essencial, o postulado da dignidade da pessoa humana.

Como é cediço, a Carta Magna buscou trazer previsões protetivas aos direitos das pessoas, individual ou coletivamente consideradas, visto que o ser humano passou a ser um fim e não um meio à disposição do Estado.

Note-se que essa nova ordem axiológica é decorrente de uma evolução calcada nas denominadas gerações (ou dimensões) de direitos fundamentais, que nada mais são do que os momentos em que os direitos humanos, inatos à condição humana, foram sendo internalizados nos ordenamentos jurídicos dos estados-nação.

Nessa toada, impende salientar que, ao final do século XVIII, exsurgiu a primeira geração de direitos fundamentais, quais sejam, os civis e políticos, representando direitos negativos do particular em face do Estado, em consagração ao ideal liberdade, promovido pela Revolução Francesa em decorrência da revolta da burguesia contra o Estado absolutista que vigia à época[2].

Já no século XX, em razão dos horrores da Primeira Guerra Mundial, começou a se verificar a necessidade premente de que o Estado assumisse uma posição mais positiva em relação ao povo, no sentido de que políticas públicas fossem efetivadas, operando-se um verdadeiro Estado do bem-estar social (welfare state), em consagração ao ideal igualdade (material), o que acarretou o surgimento da segunda geração de direitos fundamentais, ou seja, direitos sociais, econômicos e culturais[3].

Com o passar dos tempos, sobreveio a chamada terceira geração de direitos fundamentais, caracterizada pela consagração de direitos de solidariedade, decorrente de uma tendência de reconhecimento de direitos transindividuais, como o meio ambiente[4].

O legislador constituinte originário, atento à evolução em matéria de direitos fundamentais, promulgou a Constituição da República, em 1988, e consagrou, ao longo do seu texto, valioso rol de direitos, que abarca as três dimensões acima vistas, estando a família, direito civil que é, compreendida dentre os direitos de primeira geração, impondo-se ao Estado a vedação a ingerências indevidas sobre o núcleo familiar.

Nesse sentido, não se admite, no atual Estado Democrático de Direito, que atos do Poder Público, dentre eles a edição de normas infraconstitucionais, contrariem e neguem força normativa à Constituição, principalmente aos direitos fundamentais.

E, justamente levando essa lógica como premissa, permite-se o questionamento de leis ordinárias que não se coadunem com as diretrizes traçadas pela Carta Maior, inserindo-se justamente aí a problemática acerca da constitucionalidade ou não do tratamento atribuído pelo legislador pátrio às sucessões do cônjuge e do companheiro, impondo-se a necessidade de verdadeiro controle de constitucionalidade a fim de aferir se estaria havendo ou não violação à isonomia.

Pois bem, não há como negar que, historicamente, questões envolvendo família (e – por conseguinte – sucessões) sempre tiveram o condão de gerar imenso interesse, não só no meio jurídico, mas – e principalmente – na sociedade em geral. Isso porquanto tais temas estão inseridos de forma extremamente relevante na vida das pessoas e consagrados também na Constituição Federal, cujo artigo 226 prevê que a família é a base da sociedade e tem especial proteção do Estado.

Seria possível imaginar alguém que nunca teve família? Ademais, seria possível encontrar-se alguém que nunca se interessou em saber algo sobre uma questão sucessória?

Tais indagações levam a uma só inferência: as relações familiares sempre foram e continuarão sendo as principais e mais valiosas formas de relacionamento humano.

E justamente por isso que o Estado se encarregou de regulá-las ao longo dos tempos, seja com maior ou menor intervenção, mas sempre com o objetivo de buscar soluções dos conflitos, soluções essas nem sempre justas ou condizentes com a realidade social.

É nesse contexto que se insere a problemática da diferença de tratamento atribuída pelo ordenamento jurídico brasileiro à sucessão do companheiro, no instituto da união estável, em comparação com a sucessão do cônjuge, no casamento, o que enseja fortes questionamentos, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, acerca da constitucionalidade desse tratamento discrepante, notadamente em razão do princípio da isonomia, que veda tratamento inferior de uma espécie de família em relação à outra, visto que passaram a ser reconhecidas pelo Estado, o qual deve-lhes conferir especial proteção.

O próprio Código Civil de 2002, quando entrou em vigor, foi norteado pelos princípios da socialidade, caracterizado pela função social (que se estende à família), operabilidade, que indica a existência de cláusulas gerais, e eticidade, que impõe às partes verdadeira obrigação de boa-fé objetiva, abandonando-se a principiologia anterior, que propugnava por ideais patrimonialistas e individualistas.

Contudo, não obstante o código vigente ter representado grande evolução em matéria de Direito Civil, basta uma simples análise dos seus artigos 1.790 e 1.829 para se verificar que as regras sucessórias aplicáveis ao companheiro sobrevivente, na união estável, são menos protetivas em comparação com as regras impostas pelo legislador ao cônjuge supérstite, no instituto do casamento.

Veja-se que, além de proteger o casamento, a Carta Magna noticia que a união estável é reconhecida como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento, o que comprova que não mais só o casamento é reconhecido com tal, mas também outros arranjos familiares, como as famílias monoparentais, anaparentais, avoengas, homoafetivas, reconstituídas, socioafetivas e até mesmo famílias simultâneas e poliamorísticas.

Com efeito, não estaria o legislador infraconstitucional ferindo mandamentos constitucionais no exato instante em que relega a sucessão do companheiro a normas menos protetivas em comparação com o cônjuge?

Essa é a problemática, portanto, posta em discussão no presente artigo, a qual será desafiada de forma clara e objetiva, colacionando-se argumentos jurídicos e sociais.

Fica eleito como método de abordagem o dialético, o qual parte da análise de ideias contrapostas e discussões sobre os diversos ângulos do problema, agindo-se de modo crítico e pesando as posições contrárias, possibilitando-se atingir a solução da questão objeto da temática.

Utilizou-se, ademais, como técnica de abordagem a pesquisa bibliográfica e jurisprudencial.

 

1 – A família, o casamento e a união estável, na visão moderna

 

Antes de adentrar especificamente na problemática da inconstitucionalidade do tratamento diferenciado atribuído pelo direito brasileiro à sucessão do companheiro em relação à sucessão do cônjuge, faz-se mister tecer algumas considerações quanto aos conceitos de família, casamento e união estável, numa visão moderna, objetivando uma melhor compreensão da temática posta à apreciação.

Família, tradicionalmente considerada pela doutrina clássica, não é um ente dotado de personalidade jurídica, mas sim, consoante Sílvio de Salvo Venosa[5], “[...] a família é uma coletividade humana subordinada à autoridade e condutas sociais.”

Seguindo a linha tradicional, Maria Helena Diniz[6] dá notícia de três acepções do vocábulo família, assim compreendidas:

 

a) No sentido amplíssimo o termo abrange todos os indivíduos que estiverem ligados pelo vínculo da consanguinidade ou da afinidade, chegando a incluir estranhos, como no caso do art. 1.412, § 2º, do Código Civil, em que as necessidades da família do usuário compreendem também as das pessoas de seu serviço doméstico. A Lei 8.112/90, Estatuto dos Servidores Civis da União, no art. 241, considera como família do funcionário, além do cônjuge e prole, quaisquer pessoas que vivam a suas expensas e constem de seu assentamento individual. b) Na acepção “lata”, além dos cônjuges ou companheiros, e de seus filhos, abrange os parentes da linha reta ou colateral, bem como os afins (os parentes do outro cônjuge ou companheiro), como a concebem os arts. 1.591 e s. do Código Civil, o Decreto-Lei n. 3.200/41 e a Lei n. 883/49. c) Na significação restrita é a família (CF, art. 226, §§ 1º e 2º) o conjunto de pessoas unidas pelos laços do matrimônio e da filiação, ou seja, unicamente os cônjuges e a prole (CC, arts. 1.567 e 1.716), e entidade familiar a comunidade formada pelos pais e descendentes, como prescreve o art. 226, §§ 3º e 4º, da Constituição Federal, independentemente de existir o vinculo conjugal, que a originou [...] Inova, assim, a Constituição de 1988, ao retirar a expressão da antiga Carta (art. 175) de que só seria núcleo familiar o constituído pelo casamento.

 

Rolf Madaleno[7], em exposição sobre a radical mudança com que a noção de família passou ao longo do último século, ensina que, durante a vigência do Código Civil de 1916 – Código de Beviláqua – e especialmente até o advento da Constituição Federal de 1988, a família era decorrente especificamente do instituto do casamento, sendo concebida unicamente como matrimonializada, não recebendo os demais arranjos, como o concubinato – que, posteriormente, teve vertente que se converteu em união estável –, tratamento regido pelas normas do Direito de Família, mas sim consistindo em mero vínculo obrigacional. In verbis:

 

Ao tempo do Código Civil de 1916 até o advento da Carta Política de 1988, a família brasileira era eminentemente matrimonializada, só existindo legal e socialmente quando oriunda do casamento válido e eficaz, sendo que qualquer outro arranjo familiar existente era socialmente marginalizado e quando um homem e uma mulher constituíssem um concubinato, equivalente à atual união estável, seus eventuais e escassos efeitos jurídicos teriam de ser examinados no âmbito do Direito das Obrigações, pois eram entidades comparadas às sociedades de fato. No entanto, esses outros modelos de grupamento familiar passaram a perder essa característica marginal com a edição da Carta Política de 1988 que abriu o leque de padrões distintos de núcleos familiares, cujos exemplos não mais se restringiam ao casamento, à união estável e à família monocrática, simplesmente, porque o vínculo de matrimônio deixou de ser o fundamento da família legítima e, na atualidade, embora ausente o laço matrimonial, com efeito, que ninguém ousa afirmar esteja afastada uma entidade familiar fora do casamento, porquanto esta se expandiu ao se adequar às novas necessidades humanas construídas pela sociedade. A família matrimonializada, patriarcal, hierarquizada, heteroparental, biológica, institucional vista como unidade de produção e de reprodução cedeu lugar para uma família pluralizada, democrática, igualitária, hetero ou homoparental, biológica ou socioafetiva, construída com base na afetividade e de caráter instrumental.       

 

Ocorre que, como preconizado por Rolf Madaleno[8], a ideia de família passou a ser entendida a partir de uma noção de afeto, ou seja, um instrumento para a busca da felicidade das pessoas que a compõem, ainda que não haja uma relação tradicional matrimonializada.

Maria Berenice Dias[9] também vê no afeto importante aspecto a ser considerado, aduzindo que a “[...] afetividade, como categoria jurídica, resulta da transferência de parte dos fatos psicossociais que a converte em fato jurídico, gerador de efeitos jurídicos”.

Nesse diapasão, deve-se acrescentar que uma das funções do núcleo familiar atual é a realização dos projetos pessoais de vida de cada um de seus integrantes, constituindo uma verdadeira família eudemonista, como é ensinado, com propriedade, por Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho[10], os quais definem o conceito atual de família como sendo “[...] o núcleo existencial integrado por pessoas unidas por vínculo socioafetivo, teleologicamente vocacionada a permitir a realização plena dos seus integrantes, segundo o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana”.

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Observe-se que, como supramencionado, a família seria um dos meios de consagração do postulado da dignidade da pessoa humana – um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, previsto no inciso III do artigo 1º da Constituição Federal[11] –, o qual, segundo o constitucionalista José Afonso da Silva[12], “é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida”.

 Na mesma toada, Alexandre de Moraes[13], definindo o postulado da dignidade da pessoa humana, explica que ele também se aplica às relações familiares:

 

A ideia de dignidade da pessoa humana encontra no novo texto constitucional total aplicabilidade em relação ao planejamento familiar, considerada a família célula da sociedade, seja derivada do casamento, seja da união estável entre homem e mulher, pois, fundados nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas (CF, art. 226, § 7º).

 

Observe-se que, motivada por essa tendência, a família deixou de ser patriarcal e hierarquizada, calcada no chamado patrio poder, passando a representar uma família que visa à distribuição igualitária de papéis, tanto é que se chegou à noção de poder familiar, para representar que não só ao homem compete o “comando” da sociedade conjugal, mas também à mulher, que obteve uma espécie de emancipação[14].

Rodrigo da Cunha Pereira[15], ao realizar uma abordagem psicanalítica do Direito de Família, refere que, da forma como era, em que se atribuía a chefia da família à figura masculina, tinha-se como objetivo demonstrar que o homem exercia superioridade sobre a mulher, ideia essa abandonada a partir da Carta Fundamental de 1988, que expressamente passou a dispor que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, fazendo com que houvesse uma equiparação entre eles no que tange ao comando familiar.

Portanto, não há mais dúvidas de que a nova ordem constitucional ampliou a proteção no que tange à noção de família, indo muito além do casamento, abrangendo outras formas, como a própria união estável, a qual a Carta Magna, no artigo 226, § 3º[16], garante que é reconhecida como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento.

Já o casamento, segundo Maria Berenice Dias[17], “gera o que se chama de estado matrimonial, no qual os nubentes ingressam por vontade própria, por meio da chancela estatal”.

Por seu turno, Carlos Roberto Gonçalves[18] reputa casamento como sendo “a união legal entre duas pessoas, com o objetivo de constituírem família legítima”.

No que tange à natureza jurídica do casamento, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho[19] atestam que seria uma modalidade especial de contrato, assim o conceituando:

 

Assim, fixada a sua natureza jurídica, podemos então, com maior segurança, definir o casamento como sendo um contrato especial de Direito de Família, por meio do qual os cônjuges formam uma comunidade de afeto e existência, mediante a instituição de direitos e deveres, recíprocos e em face dos filhos, permitindo, assim, a realização dos seus projetos de vida.

 

Logo, facilmente se infere que o casamento é instituto que advém da lei, porquanto reclama o preenchimento dos requisitos legais, os quais devem ser demonstrados por meio de um procedimento administrativo de habilitação para casamento, que corre perante o Oficial do Registro Civil e deve ter a chancela do Ministério Público.

A união estável, por sua vez, decorre das próprias circunstâncias fáticas, visto que há a necessidade de “efetiva convivência more uxório, com características de união familiar, por um prazo que denote estabilidade e objetivo de manter a vida em comum entre o homem e a mulher assim compromissados”[20].

Carlos Roberto Gonçalves[21] preconiza que união estável é “a que se constitui pela convivência pública, contínua e duradoura de um homem e uma mulher, estabelecida com o objetivo de constituição de família”.

Portanto, como se denota dos conceitos alhures esposados, há diferenças conceituais entre casamento e união estável, possuindo o primeiro uma natureza mais formal e a segunda sendo caracterizada por uma situação fática, como bem definido por Rolf Madaleno:[22]

 

De qualquer modo, não há como estabelecer simetria entre o casamento e a união estável, embora se trate de institutos semelhantes, não são iguais, e suas reais diferenças não podem passar das idiossincrasias próprias de sua formação, onde pelo casamento, por sua absoluta formalidade, para a sua constituição, assumem precedentemente os cônjuges, pública e formalmente, a sua relação, enquanto para a mútua convivência está reservada a completa ausência de intervenção estatal.

 

Sílvio de Salvo Venosa[23], explicando a diferença entre os institutos, refere que tanto o casamento quanto a união estável são fatos sociais; todavia, o casamento é, também, um negócio jurídico, ao passo que a união estável não passa de um fato jurídico, promovido pelo homem (genericamente considerado) e apto a gerar efeitos jurídicos, os quais passaram a ser tutelados pelo Direito de Família e não mais apenas pelo Direito Obrigacional.

Impende trazer à baila, com efeito, as noções de concubinato puro, que seria o que hoje se entende como união estável, caracterizada como a relação duradoura e com intento de constituição de família entre pessoas desimpedidas, e de concubinato impuro, que é a união de fato quando estão presentes os impedimentos matrimoniais.[24]

Como visto, a noção de família foi ampliada consideravelmente, em razão da necessidade de efetivação da dignidade da pessoa humana, oportunidade na qual se passou a conceber família como um instrumento para a busca das realizações pessoais (e não mais como um fim em si mesma), a qual deve servir para possibilitar o atingimento dos projetos de vida.[25]

Disso tudo se infere que, além do casamento, a ordem jurídica atual passou a proteger outros arranjos familiares, como a união estável, os quais reclamam tratamento isonômico por parte do Estado, havendo “inexistência de hierarquia entre as modalidades de família”, consoante Gagliano e Pamplona Filho.[26]

Dessarte, partindo dessas premissas, fácil ficará passar à análise da problemática objeto deste estudo, que versa sobre a diferença sucessória imposta pelo legislador aos institutos da união estável e do casamento.

 

2 – A diferença inconstitucional das sucessões do companheiro e do cônjuge

 

Consoante demonstrado, os institutos do casamento e da união estável não se confundem, visto que, malgrado pertençam ao gênero entidade familiar, formam-se de maneira diversa, possuindo o casamento uma natureza de contrato especial de Direito de Família, sendo a união estável caracterizada a partir de uma situação fática.

Não obstante a diferença acima mencionada, discute-se se seria lícita a opção legislativa em se diferenciar as regras sucessórias em ambos os institutos, visto que o artigo 226, § 3º, da Constituição Federal[27], prevê que a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado, bem como que o princípio da isonomia, situado no artigo 5º, caput, da Carta Magna[28], não permitiria esse tratamento discriminatório, haja vista que tanto o casamento quanto a união estável passaram a ter proteção constitucional.

A fim de enfrentar a temática, assevere-se que as regras atinentes à sucessão do companheiro estão localizadas no artigo 1.790 do Código Civil[29], o qual está compreendido no Capítulo das “Disposições Gerais” do Título “Da Sucessão em Geral”.

Contrariamente, a sucessão do cônjuge tem as suas regras explicitadas no artigo 1.829 do mesmo Código[30], dentro do Capítulo “Da Ordem da Vocação Hereditária” do Título “Da Sucessão Legítima”.

Isso por si só já representa um preconceito ao companheiro, que teve a disciplina da sua sucessão localizada topograficamente nas Disposições Gerais, ao passo que deveria ter sido incluída na Sucessão Legítima.[31]

Ocorre que essa disciplina do Código Civil, que data do ano de 2002, foi inserida na órbita jurídica após a Lei 8.971/1994, que, em razão da inclusão da união estável como entidade familiar pela Constituição Federal de 1988, já havia tomado a iniciativa de trazer regras para a sucessão do companheiro, permitindo, no artigo 2º[32], o direito ao usufruto, quando houver descendentes e ascendentes, e à totalidade da herança, na falta de descendentes e ascendentes, além da meação, prevista no artigo 3º[33], que recairia sobre a metade dos bens adquiridos com o esforço comum.

Tal disciplina, à época, representou robusto avanço em matéria de relações familiares, pois se passou a dar ao companheiro sobrevivente um direito sucessório antes somente concedido ao cônjuge supérstite do casamento, em respeito ao direito fundamental à herança, previsto no artigo 5º, inciso XXX, da Constituição Federal[34].

Todavia, o artigo 1.790 do Código Civil, além de apenas permitir herança quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, previu, em seu inciso III, o direito a apenas 1/3 desses bens quando, a despeito de não haver descendentes e ascendentes, houver outros parentes sucessíveis. Ademais, segundo o inciso IV do referido dispositivo legal, o companheiro somente terá direito à totalidade da herança quando não houver parentes sucessíveis.

Atente-se que, quando se fala em “totalidade da herança”, em verdade está se referindo apenas aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nada versando sobre os bens particulares e anteriores à sociedade conjugal do de cujus – ou seja, que não pertençam à outra parte da meação.

Esses bens, segundo interpretação contrario sensu, poderiam ser atribuídos ao Poder Público em verdadeira herança vacante, como defendido por Francisco José Cahali e Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka,[35] malgrado Maria Helena Diniz[36] e Caio Mário da Silva Pereira[37] entendam que, neste caso, o companheiro deva herdar todos os bens, sem qualquer concorrência com o Estado.

Vale lembrar, ademais, que, salvo pacto firmado entre as partes, os companheiros, na união estável, são regidos pelas normas da comunhão parcial de bens, com fulcro no artigo 1.725 do Código Civil[38].

Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho[39] dão notícia de que a redação do artigo 1.790 foi inserida às pressas no projeto de lei que originou o Código Civil de 2002, pois não estava na redação original, tendo sido incluído ante a determinação constitucional de que à união estável deveria ser dado tratamento de entidade familiar.

Observe-se que essa disciplina, além de tornar pior a sucessão do companheiro em relação a ela mesma, ainda se mostrou totalmente dissonante das regras sucessórias previstas no artigo 1.829 do Código Civil para o cônjuge sobrevivente.

No casamento, além de não se limitar a sucessão apenas aos bens adquiridos onerosamente na vigência da sociedade conjugal, ainda dá ao cônjuge o direito de concorrer com os descendentes (a depender do regime de bens), bem como com os ascendentes, além de dar direito à totalidade da herança na falta de ascendentes e descendentes (e não só a 1/3 dos bens adquiridos na vigência da sociedade, como no caso da união estável).

Indo além dessa discrepante diferenciação, Rolf Madaleno[40] também critica o fato de o convivente não ter sido indicado na ordem de vocação hereditária, não ter sido previsto como herdeiro necessário, não ter havido a garantia de 1/4 da herança no caso de concorrer com descendentes comuns, além de não possuir, no Código Civil, previsão expressa de direito real de habilitação ao companheiro. Nesse sentido:

 

[...] é incompreensível o tratamento diferenciado outorgado à união estável em comparação ao casamento, como se fosse uma família de segundo nível. Embora os dois institutos não encontrem diferenças no plano dos fatos e da convivência social, teima o legislador em estabelecer notórias e injustificadas discriminações em todos os aspectos pessoais e patrimoniais da união estável, mostrando-se ainda mais impiedoso no direito sucessório, quer no fato de excluir o convivente da hierarquia da ordem de vocação hereditária (CC, art. 1.845), quer ao se olvidar de indicar o convivente supérstite como herdeiro necessário, tendo só direito hereditário aos bens adquiridos onerosamente na vigência do relacionamento, além de haver subtraído o companheiro sobrevivente da quota hereditária mínima de 25%, reservada ao cônjuge (CC, art. 1.832) e de não lhe haver estendido o direito real de habilitação.   

 

Corroborando esse entendimento e acrescentando que a disciplina sobre a sucessão do companheiro representa verdadeira violação ao princípio da vedação de retrocesso social, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho[41] assim se manifestaram:

 

Em vez de buscar uma equiparação que respeitasse a dinâmica constitucional – uma vez que diferença não deve haver entre a viuvez de uma esposa (ou de um marido) e a de uma companheira (ou companheiro), pois ambas mantinham com o falecido um núcleo de afeto –, o legislador, em franca violação do princípio constitucional da vedação ao retrocesso, minimizou – e sob certo aspecto aniquilou – o direito hereditário da companheira (o) viúva (o). O mal localizado, pessimamente redigido e – em nosso entender – inconstitucional art. 1.790 do vigente Código Civil brasileiro confere à companheira (o) viúva (o) – em total dissonância com o tratamento dispensado ao cônjuge – um direito sucessório limitado aos bens adquiridos onerosamente no curso da união (o que poderia resultar na aquisição da herança pelo próprio Município), além de coloca-la (o) em situação inferior aos colaterais do morto (um tio ou um primo, por exemplo). De fato, trata-se de tratamento demeritório da união estável em face do matrimônio, com uma disciplina que a desprestigia como forma de relação afetiva. [...] Nesse contexto de grande divergência doutrinária, é firme o nosso pensamento no sentido da inconstitucionalidade do art. 1.790, na medida em que afronta o princípio da vedação de retrocesso [...], ao menoscabar a dignidade conferida à união estável, enquanto núcleo familiar, pelo art. 226, § 3º, da Constituição Federal.

 

No mesmo sentido, Maria Berenice Dias[42] também destaca a incongruência, pugnando pela inconstitucionalidade do tratamento discrepante:

 

Em sede de direito sucessório é onde fica mais flagrante o tratamento discriminatório concedido ao parceiro da união estável, sendo tratado – e muito mal – em um único dispositivo (CC 1.790). O cônjuge é herdeiro necessário e figura no terceiro lugar na ordem de vocação hereditária. O companheiro é somente herdeiro legítimo e herda depois dos parentes colaterais de quarto grau. O direito à concorrência sucessória também é diferente. Quando concorre com os descendentes e ascendentes, o direito do companheiro se limita aos bens adquiridos onerosamente na vigência do relacionamento. Com relação aos colaterais até quarto grau, o direito concorrente é calculado sobre a totalidade da herança, mas o companheiro faz jus somente a um terço da herança. É subtraída do parceiro sobrevivente a garantia da quarta parte da herança, quota mínima assegurada ao cônjuge sobrevivo, se concorrer com os filhos comuns (CC 1.832). A disparidade prossegue quanto ao direito real de habitação, outorgado somente ao cônjuge (CC 1.831). Ainda bem que a jurisprudência concede tal direito invocando a Lei 9.278/96. Outra diferenciação descabida é conceder ao companheiro o direito à herança somente quando inexistirem herdeiros. A ausência de uniformidade levada a efeito pela lei, além de desastrosa, é flagrantemente inconstitucional.

Também pela inconstitucionalidade, Thiago Faria[43] refere que o artigo 1.790 do Código Civil é um dos dispositivos mais criticados da ordem civilista, pois atribui restrições aos direitos sucessórios do companheiro em relação ao cônjuge.

Sílvio de Salvo Venosa[44], seguindo a linha majoritária na doutrina, salientou que passou a haver “um retrocesso na amplitude dos direitos hereditários dos companheiros no Código de 2002”.

Eduardo de Oliveira Leite[45], ao se referir à sucessão do companheiro, preconiza que a garantia de apenas 1/3 da herança ao companheiro sobrevivente, sendo os outros 2/3 destinados aos demais parentes sucessíveis, nos casos em que não há descendentes nem ascendentes, configura “inquestionável retrocesso”.

Por outro lado, Maria Helena Diniz[46] não vê problemas na diferença de tratamento, porquanto entende que o companheiro não foi equiparado constitucionalmente ao cônjuge, não podendo desfrutar do tratamento privilegiado atribuído ao casamento. Ainda, segundo à autora, a união estável somente passou a ter proteção estatal em razão ser um fato cada vez mais comum na sociedade. Nesses termos:

 

A relação matrimonial na seara sucessória prevalece sobre a estabelecida pela união estável, pois o convivente sobrevivente, não sendo equiparado constitucionalmente ao cônjuge, não se beneficiará dos mesmos direitos sucessórios outorgados ao cônjuge supérstite, ficando em desvantagem. Não poderia ter tratamento privilegiado, porque a disciplina legal da união estável tem natureza tutelar, visto que a Constituição Federal a considera como entidade familiar apenas para fins de proteção estatal, por ser um fato cada vez mais frequente entre nós.

 

Outra questão que reclama atenção é saber se o companheiro é, de fato, reconhecido como herdeiro necessário.

Como é cediço, o convivente, logicamente, é herdeiro legítimo, pois herda por força de lei. Todavia, discute-se se ele poderia ou não ser excluído da sucessão por testamento, valendo-se o seu consorte de disposição de última vontade na qual designe todo o seu patrimônio a quem ele bem entenda, obviamente caso não possua descendentes e ascendentes, estes sim (juntamente com o cônjuge), herdeiros necessários, expressamente assim previstos no artigo 1.845 do Código Civil[47].

Washington de Barros Monteiro[48], em obra atualizada por Ana Cristina de Barros Monteiro França Pinto, é taxativo no sentido de que o companheiro “[...] não sendo herdeiro necessário, pode ser excluído por testamento, que não atingirá, porém, aquilo a que tem direito em função da vida em comum [...]”.   

No mesmo sentido, Arnoldo Wald[49] também não reputa como herdeiro necessário o companheiro sobrevivente, visto que a lei assim não o previu.

Por outro lado, Caio Mário da Silva Pereira[50] é voz contrária, pugnando não assistir lógica ao fato de ao companheiro ser despendida qualidade de herdeiro legítimo quando houver descendentes e ascendentes, mas permitindo, na falta destes, que, por testamento, possa o autor da herança alijar o companheiro sobrevivente de qualquer patrimônio, caso estes não hajam, reputando-o como herdeiro necessário.

Todavia, malgrado haja forte tendência doutrinária no sentido de não se considerar o companheiro como herdeiro necessário, o mesmo não se pode dizer acerca do direito real de habilitação, considerando que o Enunciado 117[51] das Jornadas de Direito Civil[52] indica que esse direito persiste, seja em razão do parágrafo único do artigo 7º da Lei 9.278/96[53], que o prevê expressamente ao companheiro, seja em razão de interpretação analógica do artigo 1.831 do Código Civil[54], que confere o referido direito real ao cônjuge no casamento.

Nesse diapasão, fica clara a diferença de tratamento atribuída pelo ordenamento jurídico brasileiro à sucessão do companheiro, na união estável, em comparação com a sucessão do cônjuge, no casamento, o que gera divergência quanto à sua constitucionalidade, sendo desafiada, a partir de agora, a análise da temática no campo jurisprudencial.

 

3 – Posicionamento jurisprudencial

 

No que tange ao posicionamento jurisprudencial acerca da matéria atinente à constitucionalidade ou não da diferença de tratamento atribuída pelo Código Civil para as sucessões do cônjuge e do companheiro, nota-se certa divergência.

A Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao apreciar a matéria no Agravo de Instrumento nº 70027138007[55], de relatoria do Desembargador Claudir Fidélis Faccenda, julgado em 04 de dezembro de 2008, resolveu por suscitar incidente de inconstitucionalidade em observância à regra da cláusula de reserva de plenário.

In casu, o agravante estava questionando a declaração de inconstitucionalidade por parte do Juízo de 1º grau do artigo 1.790, inciso III, do Código Civil, que gerou o afastamento dos herdeiros colaterais do inventário e permitiu que o companheiro herdasse a totalidade dos bens (e não apenas 1/3).

No julgamento do incidente de inconstitucionalidade pelo Órgão Especial do referido Tribunal, tombado sob o nº 70029390374[56], de relatoria do Desembargador Léo Lima, e tendo como redatora para acórdão a Desembargadora Maria Isabel de Azevedo Souza, julgado em 09 de novembro de 2009, houve, por maioria, decisão pela improcedência do incidente, a fim de reputar como constitucional o artigo 1.790, inciso III, do Código Civil.

Dentre os argumentos favoráveis pela declaração de inconstitucionalidade da mencionada regra, o Desembargador Léo Lima salientou que a Constituição Federal tratou de igualar o tratamento dado aos cônjuges e aos companheiros, devendo a lei ordinária ter esse princípio como norte, razão pela qual deveria ser a dita norma tida como inconstitucional.      

Todavia, prevaleceu na Corte Estadual o entendimento de que o referido dispositivo legal está de acordo com a Carta Magna, sob o principal fundamento de que, no instante em que a Constituição Federal indica que a lei facilitará a conversão da união estável em casamento, não estaria dando aos institutos igual tratamento, admitindo-se que a norma infraconstitucional estabelecesse regime sucessório diverso, como explicitado pela Desembargadora divergente, Maria Isabel de Azevedo Souza, em seu voto.      

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, a questão chegou por meio do Agravo de Instrumento no Recurso Especial nº 1.135.354-PB[57], julgado em 03 de outubro de 2012, tendo como relator o Ministro Luís Felipe Salomão e como relator para acórdão o Ministro Teori Albino Zavascki, oportunidade na qual o Tribunal da Cidadania decidiu que não se poderia conhecer de incidente de inconstitucionalidade por se tratar de questão constitucional que deveria ser apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, por meio de Recurso Extraordinário.

Saliente-se que o referido feito se originou de um processo de inventário promovido pela companheira do de cujus, após 26 anos de convivência, em que o Juízo da Comarca de João Pessoa, na Paraíba, determinou que a inventariante arrolasse os demais parentes sucessíveis, visto que a companheira apenas teria direito a 1/3 da herança e somente em relação aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, considerando que o falecido não teria deixado, no caso, descendentes nem ascendentes.

Contra essa decisão, a inventariante interpôs recurso de Agravo de Instrumento no Tribunal de Justiça da Paraíba, alegando a inconstitucionalidade da norma, visto que o artigo 1.790, inciso III, do Código Civil, afrontaria o artigo 226, § 3º, da Constituição Federal.

Pediu a recorrente, por conseguinte, a aplicação à espécie do artigo 1.829 do Código Civil, que assegura ao cônjuge sobrevivente a totalidade da herança na falta de descendentes e ascendentes, em preferência aos colaterais, no caso de casamento. Todavia, o Tribunal de Justiça negou provimento ao Agravo de Instrumento, sob o fundamento de que a norma seria constitucional, restando a Lei nº 8.971/94 revogada parcial e tacitamente pelo Código Civil de 2002.

Sobreveio, na sequência, Recurso Especial, o qual não foi admitido na origem, subindo ao Superior Tribunal de Justiça por meio do referido Agravo de Instrumento, porquanto a decisão do Tribunal de Justiça teria ferido a lei federal, visto que, em seu entendimento, deveria a companheira sobrevivente herdar a totalidade da herança, afastando-se os colaterais.

Verificando se tratar de questão constitucional, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça suscitou, em questão de ordem, incidente de inconstitucionalidade a ser julgado pela Corte Especial do Tribunal, seguindo a regra da cláusula de reserva de plenário.

Durante o julgamento, o Ministério Público opinou pela inconstitucionalidade do dispositivo.

No mesmo sentido, o relator, Ministro Luís Felipe Salomão, aduziu que não estaria de acordo com a Constituição Federal o tratamento diferenciado na questão da sucessão do companheiro.

O referido Ministro disse que a Constituição Federal passou a proteger outros arranjos familiares além do casamento, como a união estável, recebendo a família especial proteção do Estado, e que os institutos da união estável e do casamento são diversos, notadamente pelo fato de que a Carta da República prevê que a lei facilitará a conversão da união estável em casamento, justamente porque aquela é mais fragilizada do que esta, no sentido da necessidade de se comprová-la, muitas vezes, por meio de processo judicial, ao contrário do casamento, que se comprova com a certidão.

Contudo, malgrado sejam institutos diversos, a Constituição não teria feito discriminação entre as modalidades de família, não sendo lícito à legislação infraconstitucional estabelecer distinções entre os institutos, o que feriria o princípio da igualdade.

Já o Ministro César Asfor Rocha, em voto-vista, divergiu do relator e se posicionou pelo descabimento do incidente, visto que a questão deveria ser atacada por meio de Recurso Extraordinário, no Supremo Tribunal Federal, por envolver matéria constitucional.

Ademais, no mérito, o Ministro foi no sentido do acordão do Tribunal de Justiça da Paraíba, aduzindo que o artigo 1.790 do Código Civil não feriria a Constituição Federal, podendo a norma infraconstitucional estabelecer regimes sucessórios diferentes ao cônjuge e ao companheiro, pois o artigo 226, § 3º, da Carta Magna, não alcançaria os efeitos patrimoniais. Referiu, também, que a equiparação dos regimes retiraria a livre escolha do casal quanto à espécie de união que gostariam de contrair.

Por fim, a Corte, por maioria, não conheceu do incidente, entendendo se tratar de questão constitucional que deveria ser apreciada pelo Supremo Tribunal Federal.

Atualmente, a questão se encontra com repercussão geral reconhecida no Supremo Tribunal Federal, desde 03 de outubro de 2011, nos autos do Recurso Extraordinário 646.721-RS[58], de relatoria do Ministro Marco Aurélio Mello, e do Recurso Extraordinário n.º 878.694-MG[59], decisão datada de 27 de março de 2015, este de relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso.

Como se denota, a celeuma concernente à constitucionalidade do tratamento diferenciado dado pelo ordenamento jurídico brasileiro à questão sucessória do companheiro, na união estável, em relação à do cônjuge, no casamento, ainda não está pacificada na jurisprudência, visto que há posicionamentos e julgados para ambos os lados, tendo o Superior Tribunal de Justiça declinado do enfrentamento da matéria por reputar a questão de cunho constitucional, ficando a cargo do Supremo Tribunal Federal, a qualquer momento, chegar a uma solução, haja vista que já houve repercussão geral reconhecida.

ATUALIZAÇÃO: no julgamento do Recurso Extraordinário 646.721-RS e do Recurso Extraordinário n.º 878.694-MG, o STF, em 10/05/2017, julgou inconstitucional o artigo 1.790 do Código Civil, equiparando o tratamento sucessório do companheiro, na união estável, ao do cônjuge, no casamento.

 

Considerações finais

 

Hodiernamente, não há como deixar de se constatar que o Direito de Família – e, com ele, o Direito das Sucessões – representa um dos ramos que mais evolui (e mais rápido), encontrando as regras previstas nas normas infraconstitucionais fortes obstáculos para acompanhar os mais variados fatos e fatores que surgem e influenciam as relações familiares.

Isso porquanto, na busca incessante pela felicidade, tem a sociedade cada vez mais se desgarrado dos antigos dogmas que muitas vezes engessavam (e ainda engessam) as pessoas em suas relações interpessoais, mormente em ambiente familiar, dogmas esses impostos, em grande parte, pela religião e pela dita moral social.

Esse novo pensamento representa um grande avanço social e se dá a partir do reconhecimento da mulher também como titular do poder familiar, do reconhecimento do princípio da igualdade entre filhos, da facilitação do divórcio para que o casal possa resolver livremente qual o melhor caminho a ser seguido em sua relação e, notadamente, no que tange ao reconhecimento das mais diversas formas de família.

Essa busca pela satisfação pessoal dos integrantes do núcleo familiar ficou muito bem exemplificada com advento da Emenda Constitucional nº 66 de 2010, que, ao alterar o artigo 226, § 6º[60], da Constituição Federal, permitiu que o divórcio se desse de forma direta, sem a necessidade de observância de prazo, análise de culpa ou de prévia separação, judicial ou de fato, buscando-se, nas palavras de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho[61], “[...] a dissolução menos gravosa e burocrática do mau casamento, para que os integrantes da relação possam, de fato, ser felizes, ao lado de outras pessoas”.

Veja-se que a expressão família não se resume mais ao núcleo homem e mulher, unidos por vínculo matrimonial, e seus filhos, mas sim passando a abarcar a relação de mãe e pai solteiros com seus filhos, a família avoenga, anaparental, homoafetiva, paralelas e, quem sabe, até mesmo a família poliamorística.

Essa tendência, reconhecida pela principiologia constitucional, é decorrente de um valor que passou a nortear as relações familiares: o afeto.

Discute-se se seria o afeto um princípio ou um valor, mas o certo é que, em razão dele, o Direito de Família – ou Direito das Famílias, na expressão consagrada por Maria Berenice Dias[62]– passou por verdadeira transformação, devendo ser sempre interpretado à luz dos princípios constitucionais, não se admitindo que fique adstrito apenas e tão somente às regras declinadas na legislação infraconstitucional, sob pena de negar-se vigência ao postulado da dignidade da pessoa humana.

É justamente nesse contexto que se insere a problemática objeto deste trabalho, porquanto, ainda que sejam institutos diversos, o casamento e a união estável não podem receber tratamento diferenciado a ponto de a sucessão de um ser profundamente mais prejudicial ao consorte sobrevivente que a sucessão do outro.

Note-se que o que diferencia o casamento da união estável é somente a forma como são constituídos, ou seja, o casamento através de um contrato especial de Direito de Família e a união estável em razão de uma circunstância fática, na qual pessoas (de sexos diversos ou iguais) resolvem viver em comunhão recíproca de vida.

O fato de a Constituição Federal indicar que caberá à lei facilitar a conversão da união estável em casamento, a despeito de sinalizar no sentido de serem os referidos institutos espécies diversas de família, não dá à norma infraconstitucional a autorização para conferir ao companheiro sobrevivente um tratamento sucessório extremamente menos protetivo que o tratamento dado ao cônjuge supérstite.

Impende salientar que esse raciocínio decorre mormente do fato de que a Constituição passou a proteger as diversas espécies de família, o que impede o referido tratamento discriminatório.

Observe-se que não se está a advogar por uma disciplina idêntica à união estável e ao casamento, visto que ambos possuem as suas peculiaridades, sendo a união estável mais informal, calcada na própria união fático-afetiva das pessoas, e o casamento caracterizado pela formalidade e maior segurança jurídica, devendo ficar a cargo dos integrantes da sociedade conjugal estabelecer o que mais lhes aprouver, sendo defeso ao Estado intervir de forma desarrazoada nessa relação.

O que se pugna, em verdade, é por um tratamento isonômico, em consonância com a dignidade da pessoa humana, visto que não se mostra justo que o companheiro apenas herde sobre os bens adquiridos onerosamente na vigência da união, não tenha a garantia mínima de 1/4 da herança quando herdar em concorrência com descendentes comuns e, na falta de ascendentes e descendentes, herde apenas 1/3 da herança, ficando o restante aos colaterais até 4º grau (ou até mesmo ao Estado, quanto aos bens particulares e na falta de demais herdeiros, conforme alguns entendimentos).

Nessa senda, não prosperam os argumentos no sentido de que a declaração de inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil (que equipararia os regimes para fins sucessórios) retiraria a livre escolha do casal quanto à espécie de união que gostariam de contrair, pois não se estaria transformando a união estável em casamento, mas sim apenas dando a ambos os institutos efeitos condizentes com os direitos fundamentais.

Com efeito, impossível se exigir das pessoas em geral (leigas na disciplina jurídica) que, antes de optarem por determinada espécie de família, tenham absoluta ciência dos efeitos patrimoniais que dela decorrem.

Não se pode olvidar que, em matéria de família, o afeto e as emoções estão sempre presentes, sendo desarrazoado se exigir, no mais das vezes, plena consciência das partes acerca das normas técnico-jurídicas que regulam as relações, o que lesaria o princípio da confiança por parte do Estado, o qual, por meio da referida disciplina discrepante, geraria surpresas desagradáveis em momentos de tamanho sofrimento, como a morte do consorte.  

Portanto, deve o Direito buscar estabilizar e proteger as relações sociais familiares, e não impor obstáculos ao exercício de certos direitos subjetivos, devendo-se atribuir força normativa à Constituição, a fim de que a isonômica proteção aos diversos arranjos familiares abranja também as questões patrimoniais e sucessórias.

A doutrina pátria, como exposto no presente estudo, inclina-se majoritariamente pela inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil, que atribui ao companheiro tratamento sucessório menos protetivo em relação ao cônjuge.

Todavia, na jurisprudência a questão ainda pende de pronunciamento conclusivo por parte do Supremo Tribunal Federal, que já reconheceu a repercussão geral da matéria, tendo o Tribunal de Justiça do Rio Grande Sul se posicionado, em incidente de inconstitucionalidade, pela adequação constitucional do inciso III do referido artigo e o Superior Tribunal de Justiça declinado da análise do mérito, por reputar a questão constitucional, devendo ficar a cargo da Suprema Corte decidir.

Dessarte, enquanto à presente problemática não se confere decisão definitiva por parte do Supremo Tribunal Federal (ou do Poder Legislativo, por óbvio), entende-se que poderá o intérprete analisar a questão à luz da principiologia constitucional – notadamente do postulado da dignidade da pessoa humana – e reputar a norma consignada no artigo 1.790 do Código Civil inconstitucional, pois violadora do princípio da isonomia e da proteção integral das diversas espécies de família.

ATUALIZAÇÃO: no julgamento do Recurso Extraordinário 646.721-RS e do Recurso Extraordinário n.º 878.694-MG, o STF, em 10/05/2017, julgou inconstitucional o artigo 1.790 do Código Civil, equiparando o tratamento sucessório do companheiro, na união estável, ao do cônjuge, no casamento.

 

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Sobre o autor
Diogo Gomes Taborda

Assessor Jurídico do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade de Passo Fundo - UPF.

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