4 A DIGNIDADE HUMANA EM HANNAH ARENDT E O TRABALHO
Hannah Arendt, também de origem germânica (Hannover, 1906), viveu em uma época completamente distinta do já explanado Immnuel Kant. O mundo passava pela Primeira e Segunda Grandes Guerras, e Arendt era de família judia, embora já não praticante, razão pela qual a literatura os chama de judeus assimilados (OLIVEIRA, 2014, p. 19).
O conturbado momento de sua produção intelectual fez com que sua obra ostentasse, como diferencial com relação àquela de Immanuel Kant, alto grau de sentimentalismo e compaixão pelo ser humano. Não por outro motivo um de seus mais importantes trabalhos, A Condição Humana (1958), foi redigida para chamar-se Amor Mundi, expressão agostiniana que se traduz em “amor ao mundo” (OLIVEIRA, 2014, p. 55). Referia-se e avaliava constantemente os regimes totalitários, inclusive porquanto vítima destes, em seu ápice, razão que a levou a escrever Origens do Totalitarismo (1951).
Não resta dúvidas, por muitos de seus conceitos, de que Hannah Arendt assentou seu pensamento também no trabalho kantiano, tratando de conceitos como a singularidade humana e a liberdade. Ao tratar dos regimes totalitários e sua tentativa de aniquilar a singularidade do ser humano, a pensadora traz a seguinte conclusão:
A situação-limite dessa experiência seria a dos campos de concentração nazistas – mas também a dos campos de trabalhos forçados na versão stalinista – onde, mesmo antes de serem assassinados pelo gás ou pela fadiga, os homens já estão aniquilados (OLIVEIRA, 2014, p. 56).
Arremata, nas páginas de Origens do Totalitarismo, que:
Morta a individualidade, nada resta senão horríveis marionetes com rostos de homem, todas como mesmo comportamento do cão de Pavlov, todas reagindo com perfeita previsibilidade mesmo quando marcham para a morte (ARENDT, 1990, p. 506).
Assim, retoma importantes ideias kantianas, notadamente no que toca a imprescindibilidade da autonomia da vontade e do livre arbítrio como condição para uma ação moralmente correta e a abominação da heteronomia da vontade. Ainda, a importante noção da liberdade enquanto valor intrínseco ao ser humano.
Com A Condição Humana, entretanto, Arendt trouxe novos conceitos para a filosofia pós-moderna. Dentre estes, o de vita activa, pelo qual sintetiza três atividades humanas fundamentais, ou “condições básicas sob as quais a vida foi dada ao homem na Terra” (ARENDT, 2010, p. 8). São estas o trabalho, a obra e a ação4.
O trabalho constituiria a ação humana voltada para o processo biológico do próprio corpo, em atenção às necessidades vitais do ser humano, que se realiza em prol do mantimento da própria vida. O homem, enquanto agente do trabalho e batalhador pela própria vida figura como animal laborans.
A obra é a atividade humana que se expressa na produção de bens duráveis para fins diversos da própria sobrevivência, por meio da qual o ser humano cria um mundo artificial, distinto do natural. Enquanto agente da obra, o homem se apresenta como homo faber.
Ação, por seu turno, constitui aquela atividade desenvolvida entre homens, sem intermediação por qualquer coisa, remetendo à noção de que os homens habitam a Terra em conjunto, carreando a noção de pluralidade da espécie humana. Sobre a pluralidade, afirma Arendt que é “especificamente a condição – não apenas a conditio sine qua non, mas a conditio per quam – de toda vida política”. Ainda, aduz que “a pluralidade é a condição da ação humana porque somos todos iguais, isto é, humanos, de um modo tal que ninguém jamais é igual a qualquer outro que viveu, vive ou viverá” (ARENDT, 2010, p. 9).
Um dos problemas centrais da Condição Humana é a alegada tomada de espaço, dentre os homens, do animal laborans (aquele agente do trabalho), em detrimento das demais atividades essenciais, como a obra e a ação:
Os ideais do homo faber, fabricante do mundo, que são a permanência, a estabilidade e a durabilidade, foram sacrificados à abundância, o ideal do animal laborans. Vivemos em uma sociedade de trabalhadores, porque somente o trabalho, com sua inerente fertilidade, tem possibilidade de produzir abundância (ARENDT, 2010, p. 156).
Inclusive, seria esse também o motivo pelo qual, na política, o ser humano tende a colocar seus interesses à frente do coletivo – prioriza o trabalho e as suas necessidades individuais em detrimento da ação, enquanto animal laborans. Prossegue com duras críticas às tendências da filosofia, sobretudo a Karl Marx, como anuncia no início de capítulo referente ao trabalho (2010, p. 97), notadamente no que diz respeito ao grau de estima que depositava no animal laborans:
A súbita e espetacular ascensão do trabalho, da mais baixa e desprezível à mais alta categoria, como a mais estimada de todas as atividades humanas, começou quando Locke descobriu que o trabalho é a fonte de toda propriedade. Prosseguiu quando Adam Smith afirmou que o trabalho era a fonte de toda riqueza e atingiu o clímax no “sistema do trabalho” de Marx, no qual o trabalho passou a ser a fonte de toda produtividade e a expressão da própria humanidade do homem (ARENDT, 2010, p. 125).
Por fim, conclui que o animal laborans é prisioneiro do próprio corpo, na medida em que está limitado à satisfação de suas necessidades básicas (2010, p. 146-147). Acaba por retomar a lição kantiana de que o homem, se levado por seus impulsos, é um prisioneiro de si mesmo.
Assim, faz referência aos dizeres de Platão quanto à necessidade de manter escravos e dedicar-se à vida política, social e artística, porque, segundo afirma, “os trabalhadores e escravos eram não apenas sujeitos à necessidade e incapazes de liberdade, mas inaptos também para dominar a parte 'animal' de sua natureza” (2010, p. 146).
Portanto, a imposição da heteronomia da vontade e a anulação das demais facetas da vita activa desfiguram a imagem do próprio ser humano, reduzindo-lhe à condição de mais um ser irracional, e procurando “fabricar algo que não existe, isto é, um tipo de espécie humana que se assemelhe a outras espécies animais, e cuja única 'liberdade' consista em 'preservar a espécie'” (ARENDT, 1990, p. 488).
Dessa forma, o direito ao trabalho em condições dignas busca preservar o ser humano em suas muitas facetas, mas, em primeiro lugar, impedir a anulação de sua personalidade e livre arbítrio (freie Willkür) por uma terceira vontade.
5 A VALORIZAÇÃO DO TRABALHO HUMANO E A LIVRE INICIATIVA: A ECLETICIDADE DA CONSTITUIÇÃO DE 1988
Há diversas classificações acerca das constituições, que buscar categorizá-las com o desiderato de compreendê-las para proporcionar uma maior efetivação de suas normas e uma melhor sistematização do ordenamento jurídico.
Quanto à dogmática, tem-se que a Constituição de 1988 é uma carta eclética, porquanto “formada por ideologias conciliatórias” (LENZA, 2012, p. 93). Conforme ensina CANOTILHO, tratar-se-ia ainda de uma constituição compromissória, uma vez que:
Através de 'barganha' e de 'argumentação, de 'convergência' e 'diferenças', de cooperação na deliberação mesmo em caso de desacordos persistentes, foi possível chegar, no procedimento constituinte, a um compromisso constitucional ou, se preferirmos, a vários compromissos constitucionais. (1993, p. 218).
Exatamente por figurar como eclética ou compromissória, a Constituição da República de 1988 trouxe em conjunto, mais de uma vez, fundamentos que outrora poderiam ser considerados antagônicos. Estabeleceu como fundamentos da República, no art. 1º, inciso IV, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Ainda, fixou como fundamentos da ordem econômica a valorização do trabalho humano e na livre iniciativa (art. 170).
Oportuna crítica feita por Eros Roberto Grau nos chama a atenção para o fato de que a ordem econômica, no artigo supracitado, diz respeito não a uma parcela do sistema normativo (como aparenta), mas, por atecnia, quis-se usar a palavra como “organização da vida econômica” ou “conjunto das relações econômicas”. Assim, conclui que o texto deveria ser lido da seguinte maneira: “as relações econômicas (…) deverão ser (estar) fundadas na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por fim (fim delas, relações econômicas ou atividade econômica) assegurar a todos uma existência digna (...)” (2008, p. 66).
O constituinte de 1988 mostrou ser meramente aparente o conflito entre a valorização do trabalho humano e na livre iniciativa. No Estado Democrático de Direito atual, não há que se falar em desenvolvimento social se ausentes a livre iniciativa – enquanto liberdade econômica, liberdade de produção e liberdade de auferir lucro do próprio esforço – ou a valorização do trabalho – enquanto proteção do ser humano. A livre iniciativa sem valorização do homem é inócua e violadora para o Estado Democrático, ao passo que a valorização do homem sem a liberdade de produção é um mero discurso demagogo e característico de experiências totalitaristas.
O direito fundamental ao trabalho resta expresso em duas acepções: enquanto direito a condições socioeconômicas que garantam o acesso ao emprego (expressão direta do animal laborans); e enquanto o direito ao exercício do trabalho em condições dignas.
A violação do direito fundamental ao trabalho na primeira das acepções apontadas seria resultado direto da má gestão governamental e o consequente enfraquecimento da atividade econômica. A consequência mais natural de sua violação é o desemprego. Vê-se portanto ser impensável a concretização do direito fundamental ao trabalho sem o fomento da atividade empresarial e, portanto, do lucro. É inegavelmente estreita a relação do direito ao trabalho com a livre iniciativa.
Como se sabe, moeda constitui um valor econômico agregado a determinados objetos (materiais ou imateriais) pela produção ou trabalho de alguém. É a evolução do sistema de escambo – representa o trabalho. O lucro é nada além da compensação, em moeda, por um novo trabalho; os homens trocam entre si seu próprio tempo, trabalho e esforço. Aquele empreendedor que puser os interesses da coletividade à frente do lucro tende a sucumbir à miséria, conforme expõe AGUILLAR ao citar Max Weber (2014, p. 9).
Assim, o homem, enquanto animal laborans (nos termos de Arendt), ao buscar sua subsistência, busca auferir renda, e não cultivar sua própria horta, construir sua própria casa ou construir seu próprio veículo.
A forma mais natural e mais saudável de auferir renda é a atividade empresarial, como organizador dos fatores de produção ou prestador de mão de obra, pois a produção de bens e a prestação de serviços são os setores responsáveis por criar bens para satisfazer as necessidades sociais.
Conclui-se, portanto, que o animal laborans não conseguirá renda se não houver emprego, e não há emprego se não houver outro animal laborans em busca do lucro (sua própria renda), organizando os fatores de produção – natureza, capital, trabalho e tecnologia (RAMOS, 2014, p. 11). Com a soma de seus esforços, produzirão os bens e serviços de que outros animali laborans necessitam.
Portanto, o direito fundamental ao trabalho, enquanto direito de acesso ao emprego, é concretizado na medida em que caminha saudável o desempenho das atividades econômicas. O sucesso da atividade empresarial deve figurar como sinônimo de empregabilidade, produtividade e circulação de renda. Para que isto resulte em desenvolvimento social, entretanto, é necessária a observância da segunda faceta do direito fundamental ao trabalho.
Na segunda das acepções, exige-se que os agentes econômicos organizem os fatores de produção considerando que o trabalhador é um deles, e não poderá ser tratado como mero fator. Conforme a lição kantiana, trata-se de situação na qual o trabalhador deverá ser considerado, simultaneamente, um fim em si mesmo. Aqui entra em cena o fundamento da valorização do trabalho humano.
Ao tempo em que se constitui em animal laborans e necessita produzir para intercambiar sua produção pela de outros e suprir suas necessidades, o homem detém uma dignidade. Simultaneamente, objeto e ser senciente (ente e ser, para Heidegger, 1967). Assim leciona a doutrina especializada:
“A Constituição Federal Brasileira de 1988, ao incluir a função social da empresa entre os princípios gerais da atividade econômica, impõe aos setores públicos e privados a necessidade de conciliar os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa como uma busca constante para a efetiva concretização do princípio fundamental da dignidade humana. Diante do citado preceito constitucional, o trabalhador não pode ser visto apenas como um fator econômico (...)” (SANTOS, 2008, p. 36).
Extrai-se claramente do excerto a noção kantiana de dignidade humana: o trabalhador, ser senciente, não pode ser visto como mero fator econômico, um meio para obtenção de lucro. Em que pese a inegável importância do lucro para bom funcionamento do sistema econômico, este em hipótese alguma pode justificar violação à dignidade humana, pois existe mesmo para protegê-la. Portanto, o lucro – esse sim – deve utilizado como ferramenta para o desenvolvimento social e para proteção do homem, devendo, neste termos, ser incentivado.
Tal se dá pelo simples motivo, retro esposado, de que o homem constitui em si um imperativo categórico, detém uma dignidade e é em si mesmo um fim absoluto para as ações humanas. O lucro, por sua vez, constitui um objeto da vontade, detentor de preço.
Conforme brilhantemente assenta GRAU (2008, p. 197):
Isso significa, por um lado, que o Brasil – República Federativa do Brasil – define-se como entidade política constitucionalmente organizada, tal como a constituiu o texto de 1988, enquanto a dignidade da pessoa humana seja assegurada ao lado da soberania, da cidadania, dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e do pluralismo político. Por outro, significa que a ordem econômica mencionada pelo art. 170, caput do texto constitucional – isto é, mundo do ser, relações econômicas ou atividade econômica (em sentido amplo) – deve ser dinamizada tendo em vista a promoção da existência digna de que todos devem gozar.
Assim, quando atuar na ordem econômica, o Estado deve ter sempre em vista a proteção da dignidade humana, por meio da valorização do trabalho humano, que apenas se pode dar com a promoção da livre iniciativa, considerando que a própria história demonstra que a ausência de liberdade é o principal antagonista do ser humano.