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O foro privilegiado e o duplo grau de jurisdição.

Direitos fundamentais ou não?

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Agenda 13/02/2016 às 10:23

O artigo questiona a constitucionalidade do foro privilegiado e do duplo grau de jurisdição, baseado no caso do Mensalão, levando em conta os princípios da igualdade e da isonomia.

1. Introdução

Todo esse questionamento sobre o foro por prerrogativa de função e o duplo grau de jurisdição obteve grande repercussão a partir da Ação Penal nº 470, mais conhecida como “Mensalão”.

Entre 2005 e 2006, foi desvendado um esquema de corrupção política mediante compra de votos de parlamentares no Congresso Nacional durante o governo do então Presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva. Inicialmente foram denunciadas 40 pessoas, dentre elas, três Deputados Federais. Estes últimos, segundo o artigo 102, inciso I, alínea “b” e artigo 53, § 1º, ambos da Constituição Federal de 1988[1], possuem foro por prerrogativa de função, segundo o qual devem ser, originariamente, processados e julgados pelo Supremo Tribunal Federal (STF), mitigando a regra do artigo 70 do Código de Processo Penal[2] em que a Justiça competente para julgar a infração penal seria a do local da consumação.

Além disso, o direito processual penal traz o instituto da conexão, prevista no artigo 76 do CPP[3], que, de acordo com o autor Nestor Távora:

é a interligação entre duas ou mais infrações, levando a que sejam apreciadas perante o mesmo órgão jurisdicional. Infrações conexas são aquelas que estão interligadas, merecendo, portanto, em prol da celeridade do feito e para evitar decisões contraditórias, apreciação em processo único.[4]

Desse modo, os demais 37 denunciados não Deputados Federais, mesmo não possuindo foro privilegiado, deviam ser processados e julgados também pelo STF, pois este órgão atrai a competência devido à conexão intersubjetiva. No entanto, os indiciados que não eram Deputados, se não fossem abarcados pelo STF, seriam julgados pelo juiz singular e, assim, teriam direito a recorrer da decisão proferida pelo juízo de primeiro grau.

O direito ao recurso é a expressão do princípio do duplo grau de jurisdição, levando em consideração algumas hipóteses fáticas, como o da falibilidade humana (existe a possibilidade de erro por parte do órgão julgador), o grau de importância e o inconformismo natural do sucumbente, além de gerar maior segurança jurídica. No determinado caso, caberia o recurso da apelação para que os réus condenados requeressem um novo julgamento, já que o instrumento apelatório analisa tanto as questões de fato quando as questões de direito, promovendo a revisão do processo como um todo e resultando em uma nova decisão pelo tribunal superior. Além do direito à apelação perante o Tribunal de Justiça do Estado ou o Tribunal Regional Federal da respectiva Região, também poderia se utilizar do Recurso Especial perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Recurso Extraordinário, no STF.

Porém, por causa da conexão, os acusados entraram no âmbito de julgamento pelo STF que, por ser a instância máxima do nosso ordenamento jurídico, não cabe o recurso apelatório, mas o instrumento de embargos de declaração nos casos de omissão, contradição ou obscuridade, de forma que não há revisão do julgamento como um todo, salvos casos excepcionais (bastante difícil de acontecer). Outras possibilidades seriam o Recurso Especial (REsp) e o Recurso Extraordinário (RE), que só analisam as questões de direito, e não as de fato, não provocando uma nova decisão, exceto raros casos.

Diante de toda a situação demonstrada, surgem vários questionamentos: os julgados que não possuem foro por prerrogativa de função, mas que foram atraídos pelo STF devido à conexão, teriam direito ao duplo grau de jurisdição? Mesmo aqueles que possuem foro privilegiado e que, originariamente, já devem ser julgados pela última instância superior - STF – também não teriam direito ao duplo grau de jurisdição?

Todas essas respostas giram em torno de se decidir em qual nível hierárquico se encontra o princípio do duplo grau de jurisdição, que não está claramente expresso na Constituição Federal, mas muitos defendem que é desdobramento direito do princípio do devido processo legal e da garantia à ampla defesa e ao contraditório, dispostos no artigo 5º da Carta Magna.

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2. Constitucionalidade do foro por prerrogativa de função

A prerrogativa de foro não entra no rol de imunidades parlamentares. Consiste em que determinadas pessoas sejam julgadas em um órgão de maior graduação pelo fato de desempenharem função de alta relevância. No caso dos Deputados Federais, ocupam um cargo de interesse público. Segundo Nestor Távora:

Permite-se, assim, enaltecer a função desempenhada, e evitar as pressões indiretas que poderiam ocorrer se as diversas autoridades fossem julgadas pelos juízes de primeiro grau. Para proteger o exercício do cargo ou da função que tenha relevância constitucional estatal, contra investidas de toda ordem, para assegurar ao acusado detentor de prerrogativa de função um julgamento com menos suscetibilidade a pressões externas (porque colegiado), vem como para proteger o julgamento contra ameaças de pressões do próprio acusado, prevê o ordenamento jurídico a prerrogativa de função.[5]

No entanto, nota-se uma contradição na medida em que os Ministros do STF que vão julgar Deputados e Senadores devem ser aprovados pelo próprio Senado Federal, depois de indicados pelo Presidente da República, sendo que existe o foro privilegiado justamente para que não ocorram tais pressões indiretas. Discute-se ainda o fato de os juízes de primeiro grau serem mais suscetíveis. Porém, há instrumentos criados com o objetivo de evitar que aconteçam essas injustiças por parte dos juízes, como são exemplo as exceções de suspeição e impedimento.

Outra questão que também permeia o assunto do foro por prerrogativa de função é se afronta ou não os princípios da igualdade e da isonomia. Estaria ferindo sim o preceito na medida em que o caput do artigo 5º da CF estabelece que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” (grifo nosso), logo, não pode haver distinção considerando cargos públicos. No entanto, a grande parte da doutrina e da jurisprudência entende que não fere a igualdade, pois se trata de benefício para pessoas que ocupam cargos de interesse público, no caso dos parlamentares. Esse fato influencia ainda no que diz respeito ao Tribunal do Júri, pois, a competência desse tribunal é suprimida em face da prerrogativa de foro, os casos julgados pelo STF não se submetem ao Tribunal Popular. De modo que aqueles que cometem crimes dolosos contra a vida serão julgados por jurados enquanto os que possuem foro privilegiado, mesmo cometendo tais infrações penais, continuam sob a égide do STF.

Apesar de estarem realizando funções em prol da organização do Estado Democrático brasileiro, com o objetivo de representarem o povo, sabemos que eles se utilizam de tais benefícios para sair impunes, como meio de se favorecer em detrimento dos seus representados. De maneira que chega a ser injusto com as pessoas “comuns”. Situação que a Constituição Federal combate declaradamente.

Diante do exposto, seria o foro privilegiado uma norma constitucional inconstitucional? Não há dúvidas de que o benefício está expresso constitucionalmente. Logo, como poderia ser inconstitucional? Considero aqui a possibilidade de ser inconstitucional por ir contra alguns princípios que estão também previsto na CF - direitos fundamentais -como a igualdade e a isonomia. Mas é entendido e defendido como constitucional por ser um direito individual daqueles que se beneficiam com tal medida. No entanto, coloco aqui também como individual o direito ao recurso, apesar de não estar previsto expressamente na Carta brasileira.


3. Duplo grau de jurisdição: fundamental ou não?

No caso específico do Mensalão, o dilema sobre o foro por prerrogativa de função leva a outro, relacionado ao duplo grau de jurisdição. Isso ocorre, pois, os Deputados Federais, devido ocuparem tal cargo, possuem foro privilegiado, e, pelo instituto da conexão, levam os demais denunciados para serem todos julgados pelo STF. Como se sabe, o STF é a máxima instância do nosso ordenamento, logo, os acusados não teriam como recorrer com a finalidade de obter um novo julgamento.

Então, questiona-se: Eles não teriam direito ao recurso? Ou melhor, o duplo grau de jurisdição não é um direito fundamental, garantido a todos?

O STF já se manifestou no sentido de que não há inconstitucionalidade nas decisões em que não haja previsão de recurso para um órgão de segunda instância, de modo que entende que “o duplo grau de jurisdição, no âmbito da recorribilidade ordinária, não consubstancia garantia constitucional”[6]. Nesse sentido, alguns autores, como Nelson Nery Jr., que considera não haver uma garantia absoluta ao duplo grau de jurisdição, embora reconheça que há a previsão constitucional da existência de tribunais, conferindo-lhes competência recursal[7].

No entanto, a grande parte da doutrina entende ser o duplo grau jurisdicional um direito fundamental, mesmo que não declarado expressamente na CF/88, apesar de ter sido na Carta de 1824 como garantia absoluta (Art. 158: “Para julgar as Causas em segunda, e ultima instancia haverá nas Provincias do Imperio as Relações, que forem necessarias para commodidade dos Povos.”). Entende-se que o direito ao recurso, certificado pelo duplo grau de jurisdição, decorre dos direitos essenciais ao devido processo legal e à ampla defesa e ao contraditório, previsto no artigo 5º, incisos LIV e LV, da Constituição[8].

Utilizando o mesmo pensamento, Emilia Cavalcante Nobre sustenta:

Omitido nas sucessivas constituições da República, entende a maioria da doutrina processual que, não obstante a ausência de menção expressa na Lei Maior, decorre a garantia do sistema constitucional vigente, o qual prevê a existência de tribunais de segunda instância competentes para o julgamento dos recursos ordinário constitucional, especial e extraordinário, bem como de outros princípios constitucionais, como a ampla defesa e o devido processo legal.[9]

Nessa linha de raciocínio, o mediador do Trabalho, Evilazio Marques Ribeiro, entende que a constitucionalidade do duplo grau de jurisdição se percebe se analisados o § 2º do artigo 5º da CF estabelecendo que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”, juntamente com os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa[10]. Muitos defendem também que o dispositivo que trata do acesso à justiça, na medida em que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito” (art. 5º, XXXV da CF) abrange o duplo grau de jurisdição, pois que a lesão ou ameaça de direito pode vir do próprio Poder Judiciário.

Como o ponto central da questão problemática envolvendo o duplo grau jurisdicional consiste em saber se é abarcada ou não pelos direitos fundamentais, cabe aqui fazer a diferenciação entre direitos e garantias fundamentais, que são institutos diversos. O autor Pedro Lenza traz que

os direitos são bens e vantagens prescritos na norma constitucional, enquanto as garantias são os instrumentos através dos quais se assegura o exercício dos aludidos direitos (preventivamente) ou prontamente os repara, caso violados.[11]

Sendo assim, pelo fato de o duplo grau de jurisdição não ser claramente disposto na nossa Constituição, entendo como se concretizasse a ideia de uma garantia constitucional, de modo que objetiva assegurar direitos fundamentais como o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório, além do direito ao acesso à justiça e de que qualquer lesão ou ameaça de direito poder ser analisada pelos órgão jurisdicionais, como já explicitado anteriormente.

O mesmo entendimento é observado por Paulo Gustavo Gonet Branco quando defende que “as garantias fundamentais asseguram ao indivíduo a possibilidade de exigir dos Poderes Públicos o respeito ao direito que instrumentalizam” e ainda ao sustentar que essa distinção, “na realidade, não apresenta maior importância prática, uma vez que a nossa ordem constitucional confere tratamento unívoco aos direitos e garantias fundamentais”[12].


4. A força normativa dos tratados internacionais

Os tratados internacionais são aprovados pelo Congresso Nacional através de decreto legislativo depois de celebrados pelo Presidente da República. Depois de passar pelo processo, ingressam no ordenamento jurídico brasileiro como lei ordinária.

Porém, o tratado internacional em questão é a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto São José da Costa Rica), incorporada ao nosso direito positivo em 1992, com o Decreto nº 678. Os acordos internacionais que dispõem sobre direitos humanos recebem tratamento especial no nosso ordenamento jurídico.A Convenção Americana prevê, em seu artigo 8º, nº 2, alínea h que durante o processo, toda pessoa acusada de delito tem direito, em plena igualdade, à garantia do direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior. Logo, a garantia ao duplo grau de jurisdição estaria prevista e não poderia ser rebatida.

Contudo, em 2004, a Emenda Constitucional nº 45 acrescentou ao nosso texto constitucional o § 3º do artigo 5º estabelecendo que “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. Daí surgiu toda a problemática, pois que o Pacto de São José não teria natureza constitucional já que não aprovado pelo quórum qualificado. No entanto, o tratado em questão foi recepcionado pelo ordenamento brasileiro antes da EC nº 45/04, e por omissão da legislação que não exigiu que os tratados anteriores passassem novamente pelo processo de aprovação, deveria continuar tendo caráter constitucional. Além de tudo, como argumenta Fernanda Fóes Bianchini, deve-se considerar:

O princípio da primazia da norma mais favorável ao ser humano que é assegurado pelo artigo 4º, inciso II da Constituição Federal[13], uma vez que a prevalência dos direitos humanos está em aplicar a norma mais benéfica ao homem, visando garantir sua dignidade[14].

Assevera, ainda, o artigo 25 do Pacto São José da Costa Rica que

Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízos ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercícios de suas funções oficiais.

Mesmo que o recurso utilizado nessa assertiva não esteja em seu sentido técnico, entende-se aplicável ao recurso defendido pelo duplo grau de jurisdição, mesmo porque é uma forma de debater aquilo que se entende desfavorável ao sucumbente, é um meio de garantia dos direitos fundamentais.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos já julgou vários casos semelhantes em que sempre foi garantido o direito ao duplo grau de jurisdição, obrigando os países vencidos a se submeterem à decisão, baseado no princípio da hierarquia. Antes da Ação Penal nº 470, o STF, para garantir o direito ao recurso, realizava um processo em que o primeiro julgamento seria por uma das Turmas e o segundo, pelo Plenário. Mas, o regimento sofreu alterações, estabelecendo que os julgamentos só poderiam ser feitos pelas Turmas. No caso de recorrerem à Corte Interamericana, ela provavelmente optará por garantir o duplo grau de jurisdição e o STF acatará, obrigatoriamente, por se tratar de órgão hierarquicamente superior, já que o Brasil se subordinou à Corte no momento em que assinou o Pacto e foi aprovado pelo Congresso Nacional. Esse tipo de situação já ocorreu algumas vezes, como no caso em que a Corte condenou o Brasil a fechar todos os hospitais psiquiátricos (“Medunas”) e a criar uma legislação específica sobre a violência contra a mulher (Lei Maria da Penha).

Sobre o autor
Andreza Caroline Sousa Pires

Acadêmica de Direito da Universidade Federal do Piauí - UFPI

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PIRES, Andreza Caroline Sousa. O foro privilegiado e o duplo grau de jurisdição.: Direitos fundamentais ou não?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4609, 13 fev. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46378. Acesso em: 22 nov. 2024.

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