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Responsabilidade civil pela desistência na adoção

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O termo “devolução", usado frequentemente para traduzir a desistência da adoção, parece muito mais vocacionado a bens, uma vez que seres humanos, dotados de inseparável dignidade, não se sujeitam a um trato que os objetifique, como se fossem coisas defeituosas que frustraram as expectativas do “adquirente”.

“Via-se metade ao espelho porque se via sem mais ninguém, carregado de ausências e de silêncios como os precipícios ou poços fundos. Para dentro do homem era um sem fim, e pouco ou nada do que continha lhe servia de felicidade”

(O filho de Mil Homens, Valter Hugo Mãe)


Sumário:  1. Introdução. 2. Diálogo entre o Direito de Família e a Responsabilidade Civil. 3. Responsabilidade Civil por Desistência da Adoção. 3.1. Desistência ocorrida durante o estágio de convivência em sentido estrito. 3.2. Desistência no âmbito da guarda provisória para fim de adoção. 3.3. Desistência depois do trânsito em julgado da sentença de adoção. 4. Conclusões e Reflexões Finais.


1. INTRODUÇÃO.

No final do mês de maio de 2020, sites de notícias e redes sociais revelaram ao mundo o caso do pequeno Huxley, um menino de origem chinesa que passou por um processo de adoção internacional que o tornou, em 2017, aos quase dois anos de idade, filho do casal de americanos Myka Stauffer e James de Columbus, pais biológicos de outras quatro crianças.

Myka, uma influenciadora digital com mais de setecentos mil inscritos em seu canal na plataforma YouTube, documentou boa parte da rotina e das etapas do processo de adoção em 27 vídeos e, segundo divulgado por alguns veículos de imprensa, teria tido um crescimento exponencial no seu número de seguidores em virtude dessa divulgação .[1]

Ocorre que o casal, quase três anos após a adoção de Huxley, comunicou ao público haver decidido pela “devolução” do filho, em função de não terem conseguido administrar as necessidades especiais decorrentes do diagnóstico de autismo do garotinho.

A revelação chocou internautas do mundo inteiro, e trouxe a lume uma cruel realidade que não é desconhecida dos nossos pretórios, mas cujo debate ainda é incipiente em solo pátrio: a da “devolução” de crianças e adolescentes por seus pais adotivos. 

O termo “devolução", usado frequentemente para traduzir a desistência da adoção, parece muito mais vocacionado a bens, uma vez que seres humanos, dotados de inseparável dignidade, não se sujeitam a um trato que os objetifique, como se fossem coisas defeituosas que frustraram as expectativas do “adquirente” .

Justo por isso, o uso do termo é repleto do significado da dureza que envolve as situações de desistência na adoção, com o retorno a abrigos de pessoas que já estavam acolhidas em seios familiares.

Tudo se torna ainda mais triste se lembrarmos o potencial que essa desistência possui para acarretar uma nova sensação de rejeição naquele que somente foi adotado em razão já haver sido rejeitado, antes, pela família biológica que lhe deu origem.

Segundo dados divulgados pela BBC News, decorrentes de uma pesquisa feita entre onze Estados da federação, num lapso de cerca de cinco anos, foram registrados 172 casos de “devolução” de crianças e adolescentes candidatos à adoção[2], sendo que alguns desses candidatos experimentaram mais de uma situação de desistência no seu calvário em busca de uma família substituta. 

Ao lado disso, é cada vez mais frequente a divulgação de decisões que versam sobre a possibilidade de compensação de eventuais danos decorrentes desse fenômeno.[3]

Nesse delicado contexto, surgem questionamentos que serão enfrentados aqui de forma bastante objetiva.

No transcurso do processo de adoção, a desistência dos pais adotantes, se já estiverem convivendo com as crianças ou adolescentes, pode atrair a incidência das regras de responsabilidade civil?

Depois de concluído o processo de adoção, haveria hipótese de desfazimento dela e, se houver, essa desistência geraria dever de indenizar?


2. DIÁLOGO ENTRE O DIREITO DAS FAMÍLIAS E A RESPONSABILIDADE CIVIL.

Importante pontuar que nos parece superada a discussão sobre a possibilidade de se aplicar aos danos causados no âmbito de relações familiares as regras da responsabilidade civil.

Ainda que o Direito das Famílias da pós-modernidade, repersonalizado e revolucionado pelos influxos da Constituição Federal de 88, tenha um dos seus pilares na intervenção mínima do Estado na seara das suas relações[4], isso não significa que a família é um lócus imune às regras da responsabilidade civil.

Não à toa, é ampla (e por vezes polêmica) a casuística em que o Estado-juiz tem sido chamado a decidir sobre a reparabilidade de danos causados no âmbito da convivência familiar, a exemplo das demandas indenizatórias pelo descumprimento dos deveres conjugais (sobretudo o de fidelidade), pelo rompimento de relações amorosas (como o noivado) e pelo abandono afetivo de filho.

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Analisando a questão a partir do prisma dos pressupostos da responsabilidade civil na interface com as relações de família, entendemos que, se demonstrada a existência (a) de conduta antijurídica de um membro da família contra outro, (b) do dano indenizável, (c) do nexo de causalidade e, em regra, (d) da culpa, presentes estarão os elementos centrais do nascimento do dever de indenizar.

Todavia, soa fundamental rememorarmos que há, em nosso ordenamento, danos indenizáveis que excepcionalmente derivam de condutas lícitas[5], bem como inúmeras hipóteses enquadradas como de responsabilidade objetiva, ou seja, que prescindem da investigação de culpa para que haja o reconhecimento do dever de indenizar (CC, art. 927), com destaque para o abuso de direito previsto no art. 187 do Código Civil.

Quanto ao art. 187 do CC, escreve, com propriedade, FLÁVIO TARTUCE: “pontue-se que prevalece o entendimento segundo o qual a responsabilidade decorrente do abuso de direito é objetiva, independentemente de culpa. A propósito da correta conclusão a respeito do abuso de direito, vejamos o Enunciado n. 37, da I Jornada de Direito Civil, de 2004: ‘a responsabilidade civil decorrente do abuso de direito independe de culpa e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico’ ”.[6]

Após essas necessárias considerações, façamos agora a específica análise do tema proposto.


3. RESPONSABILIDADE CIVIL POR DESISTÊNCIA NA ADOÇÃO

 Para que possamos analisar com solidez o cabimento da reparação por dano derivado da desistência no âmbito da adoção, necessário se faz sedimentar a nossa avaliação em três etapas[7]:

Vamos a elas.

3.1. Desistência ocorrida durante o estágio de convivência em sentido estrito

O art. 46 do ECA dispõe que:

"A adoção será precedida de estágio de convivência com a criança ou adolescente, pelo prazo máximo de 90 (noventa) dias, observadas a idade da criança ou adolescente e as peculiaridades do caso”.

O instituto tem por objetivo propiciar um início de convivência[8] entre os candidatos previamente habilitados no Cadastro Nacional de Adoção. Vale observar que o procedimento de habilitação deveria durar no máximo 120 dias (ECA, art. 197-F), mas, como informa Maria Berenice Dias, demora, geralmente, de um a dois anos[9].

Cumpre notar, analisando os parágrafos do referido art. 46, que é possível a dispensa do estágio de convivência, se o adotando já estiver sob a tutela ou guarda legal do adotante por tempo que o magistrado considere suficiente para avaliar a conveniência da constituição do vínculo (ECA, art. 46, §1º). 

O legislador adverte, contudo, que a simples guarda de fato não autoriza, de per si, a dispensa da realização do estágio de convivência (ECA, art. 46, §2º).

O prazo máximo de 90 dias é passível de prorrogação por até igual período, e quando os adotantes forem residentes no estrangeiro, será de no mínimo 30 e no máximo 45 dias, prorrogável apenas uma vez (ECA, art. 46, §2º-A e §3º). 

Como essa fase tem por característica ser uma espécie de teste[10] acerca da viabilidade da adoção, concluímos que, regra geral, a desistência em prosseguir com o processo de adoção nessa etapa é legítima e não autoriza a reparação civil.

Note-se que aqui estamos tratando do estágio de convivência no sentido estrito, descolado da guarda provisória dos adotandos.

Não desconsideramos, contudo, que possa haver intenso sofrimento psíquico para a criança ou o adolescente se, por exemplo, o estágio de convivência se estender por  tempo significativo, se ocorrer  majoritariamente fora dos limites do abrigo ou se o laço entre as partes se desenvolver  com aparência de firmeza, por meio de atitudes capazes de criar no candidato a filho a sólida expectativa de que seria adotado.

Nesse horizonte, excepcionalmente e a depender das peculiares características do caso concreto[11], as rupturas absolutamente imotivadas e contraditórias ao comportamento demonstrado ao longo do estágio podem vir a ser fontes de reparação civil[12].

 Em alguns Estados da federação há a previsão de salutares medidas voltadas para amenizar as consequências dos traumas decorrentes do insucesso do estágio de convivência, como se dá com o Juizado da Infância e da Juventude de Porto Velho (RO), que celebra acordo com candidatos a pais, desistentes na fase do estágio de convivência, para que subsidiem um ano de psicoterapia para as crianças “devolvidas”[13].

Em síntese, o exercício do direito potestativo de desistir da adoção dentro do estágio de convivência não autoriza o reconhecimento da responsabilidade civil dos desistentes, ressalvadas as situações excepcionais que destacamos.

3.2. Desistência no âmbito da guarda provisória para fim de adoção

A guarda provisória é a etapa que usualmente sucede os estágios de convivência concluídos com êxito, apesar de haver hipóteses de concessão que não passam pela necessidade de prévio estágio.

Uma vez sinalizado pela família adotante, ao Juízo da Infância e da Juventude, o seu interesse em concluir a adoção daquela criança ou adolescente, ser-lhe-á atribuída a guarda para fim de adoção.

Essa guarda muitas vezes é sucessivamente renovada e já atribui aos adotantes amplos deveres parentais para com os adotandos. Quem milita com o instituto da adoção costuma dizer que a guarda provisória funda a relação paterno ou materno-filial, embora ainda não tenha havido a constituição formal do vínculo, que depende da sentença de adoção.  

Ademais, durante a guarda provisória, a convivência entre adotantes e adotados não ocorrerá mais no abrigo, e sim no lar dos adotantes.

Por isso, a desistência da adoção, nesse contexto, se afigura muito mais complexa e dura do que o insucesso do estágio de convivência em sentido estrito, uma vez que rompe uma convivência sociofetiva consolidada, atraindo a incidência das regras de responsabilidade civil, para além da impossibilidade de nova habilitação no cadastro nacional.

Não se ignora que, enquanto não consumada, por sentença, a adoção, a possibilidade jurídica de desistência existe.

Mas é preciso notar que o seu exercício depois de um estágio prolongado de guarda provisória - que, por vezes, dura anos e promove uma total inserção familiar do adotando no seio da família adotante - pode configurar abuso de direito, nos termos do art. 187 do Código Civil.

E note-se que, nesse mencionado dispositivo (art. 187, CC), consagrou-se uma "ilicitude objetiva”, vale dizer, que dispensa a demonstração do dolo ou da culpa para a sua configuração.

Aqui, não há como não invocar a bela máxima cunhada pelo francês Saint-Exupéry,  em “O Pequeno Príncipe”, clássico da literatura infanto-juvenil: "tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”.

A guarda dos que pretendem adotar precisa ser exercida com plena consciência da grande responsabilidade que encerra.

Nesse sentido, já decidiu o Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

“ A condenação por danos morais daqueles que desistiram do processo de adoção, que estava em fase de guarda, de forma abrupta e causando sérios prejuízos à criança, encontra guarida em nosso direito pátrio, precisamente nos art. 186 c/c arts. 187 e 927 do Código Civil. A previsão de revogação da guarda a qualquer tempo, art. 35 do ECA, é medida que visa precipuamente proteger e resguardar os interesses da criança, para livrá-la de eventuais maus tratos ou falta de adaptação com a família, por exemplo, mas não para proteger aqueles maiores e capazes que se propuserem à guarda e depois se arrependeram (TJMG -  Apelação Cível  1.0024.11.049157-8/002, Relator(a): Des.(a) Vanessa Verdolim Hudson Andrade , 1ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 15/04/2014, publicação da súmula em 23/04/2014).

A partir da análise de todo esse panorama, é inexorável a extração da seguinte conclusão: a configuração do abuso do direito de desistir da adoção gera responsabilidade civil e esse abuso estará presente se a desistência se operar depois de constituído, pelo adotante, um vínculo robusto com o adotando, em virtude do prolongamento do período de guarda, ante o amálgama de afeto que passa a vincular os protagonistas da relação.

3.3. Desistência depois do trânsito em julgado da sentença de adoção

Uma vez transitada em julgado a sentença, a adoção se torna irrevogável (ECA, art. 39, § 1o).

Nas palavras de Rodrigo da Cunha Pereira, “não há nenhuma previsão legal de 'desadoção'. Uma vez filho, adotado ou não, será para sempre, pois filhos e pais mesmo depois da morte permanecem vivos dentro da gente”.[14]

As palavras do grande jurista mineiro, e todas as reflexões que tecemos até aqui, já nos permitem antever a resposta ao último problema que nos propusemos a enfrentar: e se os pais, depois de findo o processo de adoção, resolvem “devolver” seu filho (a), como aconteceu no dramático caso narrado na abertura deste texto?

A resposta é simples: inexiste, no ordenamento brasileiro, base jurídica para devolução” de um filho após concretizada sua adoção.

Aliás, a filiação adotiva, diferentemente da biológica, é sempre planejada, programada e buscada com a paciência que o burocrático processo de adoção exige, num contexto de longa expectativa dos envolvidos.

 Há toda uma preparação para que uma pessoa ou um casal possa se habilitar a adotar, envolvendo a participação de uma equipe multidisciplinar, que existe para dar suporte  aos envolvidos e para que os candidatos a pais tenham ciência das variadas e densas dimensões que o processo de acolher - no coração e na vida - um filho exige.

Também não se pode olvidar que o indivíduo adotado é alguém cuja trajetória costuma estar marcada por uma rejeição original, razão pela qual uma vulnerabilidade lhe é imanente e demanda especial proteção por parte do Estado. 

Impende perceber, ainda, que muitos dos casos de rejeição a filhos adotivos parte de um rosário de queixas sobre a dificuldade de trato com o filho, do seu comportamento  “indomável” ou da revelação de características ou problemas de saúde que “surpreendem negativamente" a família adotiva.

Com todas as vênias, esse tipo de argumento nos parece dos mais absurdos, pela simples razão de que a Constituição Federal não permite a diferenciação entre filhos em função da sua origem, e, ademais, filhos biológicos podem apresentar os mesmíssimos problemas ou questões, sem que se cogite de sua potencial devolução.

E a quem se devolveria um filho biológico?

Assim, entendemos que a devolução fática” de filho já adotado caracteriza ilícito civil, capaz de suscitar amplo dever de indenizar, e, potencialmente, também, um ilícito penal (abandono de incapaz, previsto no art. 133 do CP), sem prejuízo de se poder defender, para além da impossibilidade de nova habilitação no cadastro, a mantença da obrigação alimentar, uma vez que os adotantes não podem simplesmente renunciar ao poder familiar e às obrigações civis daí decorrentes.

Aliás, a apresentação, em juízo, de um pleito de desconstituição do vínculo de filiação adotiva pode ensejar o proferimento liminar de sentença de mérito, por improcedência liminar do pedido, à semelhança do que se dá com as hipóteses elencadas no art. 332 do CPC. Tratar-se-ia, nesse caso, de uma hipótese atípica de improcedência liminar do pedido.[15]

Sobre os autores
Pablo Stolze Gagliano

Juiz de Direito. Mestre em Direito Civil pela PUC-SP. Membro da Academia Brasileira de Direito Civil, do Instituto Brasileiro de Direito Contratual e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia. Professor da Universidade Federal da Bahia. Co-autor do Manual de Direito Civil e do Novo Curso de Direito Civil (Ed. Saraiva).

Fernanda Carvalho Leão Barretto

Advogada. Mestre em Família na Sociedade Contemporânea pela UCSAL. Professora da UNIFACS- Universidade Salvador e de diversos cursos de pós-graduação. Conselheira da OAB/BA. Vice-presidente do IBDFAM/BA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GAGLIANO, Pablo Stolze; BARRETTO, Fernanda Carvalho Leão. Responsabilidade civil pela desistência na adoção. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6235, 27 jul. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46411. Acesso em: 22 dez. 2024.

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