5 O NEOCONSTITUCIONALISMO E A TEORIA DA DECISÃO: o reflexo do pós-positivismo na democratização jurisdição constitucional
As mesmas reservas levantadas com relação ao pós-positivismo, como conceituação de algo cuja definição mesma se encontra em construção, devem ser feitas em relação à expressão neoconstitucionalismo. Na verdade talvez seja possível nesse caso consagrar mesmo a existência de vários neoconstitucionalismos. Tal circunstância decerto justifica o acerto em titulo de obra[16] organizada pelo jurista mexicano Miguel Carbonell, ao utilizar a nomenclatura indicada expressamente no plural.
Neste trabalho, decerto assumindo um risco que considera calculado, pretende indicar os rumos pelo qual acredita circundar a conceituação da expressão bem como a sua relação com uma teoria da decisão que se pretenda democrática.
Assim, e na linha do que vem sendo definido até o momento neste trabalho, também o neoconstitucionalismo deve ser conceituado dentro da concepção de constitucionalismo que pretende superar o pensamento positivista[17].
Tal esclarecimento se mostra imprescindível, sob pena de se admitir que sejam defendidos posicionamentos que não superam os principais problemas de um constitucionalismo de matriz positivista, com os mesmos riscos para a democracia e para concretização dos direitos fundamentais a ela inerentes.
Nesse sentido, sugere-se compreender a concepção neoconstitucionalista de uma jurisdição constitucional como pautada ao menos em três requisitos: a) uma teoria das fontes que compreenda a supremacia da Constituição sobre as leis; b) uma teoria da norma que compreenda regras e princípios e que admita intrinsecamente a estes, relações entre direito, moral e política; c) uma teoria da decisão judicial não mais subjulgada ao legislador, mas que atue em uma construtividade não arbitrária, a partir da Constituição e de forma a conciliar a defesa da democracia e dos direitos fundamentais.
Como primeiro requisito, único ainda não tratado neste trabalho, deve-se afirmar ser, o reconhecimento da supremacia da constituição, uma condição de existência mesma de um neoconstitucionalismo.
Deve-se ressaltar, nesse sentido, o que hoje se apresenta quase que de forma pacífica até bem pouco tempo na realidade brasileira considerava-se absurdo.
No Brasil, nesse sentido, mesmo após a constituição de 1988, foi necessária uma luta doutrinária para o reconhecimento de normatividade ao texto constitucional. Tal luta foi travada pelo que a doutrina brasileira denominou constitucionalismo de efetividade, que assim é definido por Daniel Sarmento (2009, p. 24).
Alguns autores, como Luis Roberto Barroso e Clèmerson Merlin Clève, passaram a advogar a tese de que a Constituição, sendo norma jurídica, deveria ser rotineiramente aplicada pelos juízes, o que até então não ocorria. O que hoje parece uma obviedade era quase revolucionário numa época em que nossa cultura jurídica hegemônica não tratava a constituição como norma, mas pouco mais do que um repositório de promessas grandiloquentes, cuja efetivação dependeria quase sempre da boa vontade do legislador e dos governantes de plantão.
Conforme anota Dirley da Cunha Jr. (2012, p.38), inclusive para salientar a supremacia da constituição mesmo em casos de omissão, a constituição “vincula tanto os órgãos do Poder Público como os cidadãos [...] quer imponha uma abstenção (non facere) ou uma atuação (facere) do Estado, ou mesmo de uma pessoa”. A partir de tal supremacia a constituição irradia efeitos por todo o direito infraconstitucional.
Com o neoconstitucionalismo “a constituição deixa de ser considerada um diploma normativo com um valor meramente programático [...] para operar com uma normatividade jurídica com eficácia direta e imediata” (SOARES, 2010, p. 124).
Assim, qualquer espécie de constitucionalismo que de alguma forma negue supremacia ou efetividade às normas constitucionais, deve ser considerado como preso a um panorama já superado, não podendo ser considerado como neoconstitucionalismo.
Tratando do segundo requisito, diante de tudo que já foi sustentado (capítulo 3), o neoconstitucionalismo exige uma teoria da norma que compreenda regras e princípios e que realize uma releitura da relação entre direito e moral. Neste sentido, disserta Ricardo Mauricio Freire Soares (2010, p. 125):
De outro lado, o neoconstitucionalismo pressupõe a positivação jurídica de princípios, pautas axiológicas de conteúdo indubitavelmente ético, daí decorrendo importantes consequências, tais como a necessidade de adotar uma posição de participante para explicar o funcionamento do direito, bem como a necessidade de superar a ideia positivista de uma separação entre o Direito e a Moral.
No entanto, deve-se salientar, não é suficiente uma concepção qualquer de normativismo principiológico. É necessária uma concepção de normatividade de princípios que impeça seu uso como pretexto para arbitrariedades. Em verdade deve-se buscar concepções deste ainda tão intrincado conceito que limitem a discricionariedade judicial (em sentido forte), nos moldes em que foi apresentado acima (item 3.2, acima) por meio da teoria dworkiana dos princípios.
Por fim, em um último requisito que fora longamente tratado acima (capítulo 4, acima), qualquer configuração de uma teoria da decisão que se pretenda adequada ao neoconstitucionalismo, deve atentar-se ao filtro da viragem linguística-ontológica, de modo realizar uma interpretação construtivista e não arbitrária da constituição, a qual supere o paradigma sujeito-objeto e que a atenda a uma compreensão-interpretação-aplicação já visitada pela hermenêutica-filósófica.
Assim é que, tal interpretação, deve realizar-se numa conciliação simultânea entre defesa da democracia (atual e oriunda da tradição) e defesa de uma normatividade com regras e princípios, parâmetros que, em conjunto com a supremacia da Constituição devem limitar o intérprete na luta contra um solipisismo hermenêutico causador da discricionariedade (em sentido forte) judicial.
Eis as bases de um conceito de neoconstitucionalismo que devem guiar uma teoria da decisão constitucional em cortes constitucionais no atual contexto histórico dessa evolução jusfilósofica ainda em construção.
6 CONCLUSÃO
Certos dos seus limites este trabalho buscou compreender, sob as bases da crise de legitimidade da teoria da interpretação do positivismo normativista, o campo de elaboração teórica de uma teoria pós-positivista da teoria da decisão, em especial na atuação de uma corte constitucional.
Assim, se buscou indicar bases justificadoras que entende poder ajudar a evitar equívocos nos rumos do, ainda em construção, pensamento pós-positivista.
Partindo de uma indicada insuficiente teoria da interpretação juspositivista, a admitir forte discricionariedade na atividade judicante, foi possível identificar qual deve ser o foco a ser perseguido por uma teoria pós-positivista do direito.
Verificou-se ainda, a necessidade de reavaliação da teoria das fontes com a exigência de se revisitar as relações entre direito e moral, onde se pode ter acesso as contribuições de Jürgen Habermas de Ronald Dworkin acerca do tema.
Compreendeu-se pelo estudo da evolução da filosofia no último século (em especial no âmbito da linguagem e da hermenêutica), que seu atual momento teórico passa a exigir que qualquer corrente jusfilosófica atualmente em construção seja com ela compatível sob pena de não ser considerada pós-positivista.
Por fim, e também com base em tudo que antes fora defendido, foi possível verificar a relação entre o neoconstitucionalismo e uma teoria da decisão que se pretenda democrática como reflexo do pós-positivismo na atuação de uma jurisdição constitucional.
Decerto que o presente trabalho não logrou um estudo detalhado de fenômenos flagrantemente ainda em construção, mas espera ter indicado seguros filtros teóricos por onde entende deve circundar uma teoria da decisão em uma corte constitucional e que se pretenda democrática.
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