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Teorias clássicas e contemporâneas da Justiça: de Platão a John Rawls

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O problema da justiça tem sido, desde a primeira vez em que foi proposto, um problema eminentemente filosófico. O próprio Direito, enquanto ciência, nunca lhe devotou a atenção devida – chegando, no século XX, ao ponto culminante de negar a própria possibilidade de um conceito racional de justiça (como faz Hans Kelsen). No entanto, a ciência jurídica, nas últimas décadas, tem passado por uma reviravolta marcante nesse sentido.

Atualmente, multiplicam-se os estudos jurídicos sobre o problema da justiça, o qual poucas vezes em sua história recebeu tratamento cientifico e metodológico similar ao que hoje recebe. Ademais, os cientistas do Direito pesquisam, com cada vez mais frequência, maneiras de implementar e concretizar o conceito de justiça através das normas jurídicas gerais e abstratas e das decisões judiciais, sobretudo por meio de um aprofundamento teorético que traga à evidência os valores envolvidos no caso concreto e permita sua ponderação à luz da proporcionalidade.

Essas transformações traduzem uma quebra de paradigmas sem precedentes na história da ciência jurídica (precisamente no sentido epistemológico descrito na introdução). O conflito entre Direito natural e Direito positivo (dentre outros muitos conflitos clássicos) veio encontrar no século XX uma solução finalmente viável: não se trata, como supunham os filósofos e juristas dos séculos passados, de escolher entre um deles e excluir o outro, mas sim de alcançar uma síntese dialética que contemple a ambos.

Nesse cenário, o estudo sistematizado das diferentes teorias da justiça propostas ao longo da História, a exemplo da exposição sumária contida no presente artigo, torna-se uma das disciplinas jurídicas de maior relevância prática para o operador do Direito (e não somente teórica, como se poderia supor). Ora, se hoje se reconhece a possibilidade de uma conceituação racional e objetiva da justiça e se reconhece, igualmente, a possibilidade prática de viabilizar a sua aplicação jurisdicional, a justiça deixa de ser apenas uma questão meramente metafísica ou filosófica e se torna uma preocupação cotidiana dos magistrados, advogados, dentre outros profissionais jurídicos.

No entanto, se a compreensão e definição da justiça, em vista da futura aplicação prática, não é tarefa impossível, não se pode negar o considerável grau de complexidade envolvido nesse mister, o qual requer dos que se dedicam à sua execução elevado preparo intelectual capaz de discernir com acurácia o equilíbrio e a desproporção na ponderação dos valores.

Nesse sentido, o exame crítico da história das concepções de justiça proporciona essa formação intelectual imprescindível ao jurista contemporâneo. Além de permitir o desenvolvimento do espírito crítico, graças ao qual é possível perceber os acertos e os erros de cada concepção de justiça particular, o estudo histórico dessas concepções permite uma visão profunda da influência que as circunstâncias históricas ou culturais predominantes em cada época exercem sobre a conceituação e aplicação da justiça.

O jurista, enquanto indivíduo inserto em um contexto histórico-social determinado (e não concebido, como antes, enquanto um cientista recluso em seu “laboratório”), deve ter a capacidade de dialogar com as circunstâncias concretas quando tiver de escolher a saida mais justa para dada situação, seja para condicionar ou amoldar a aplicação dos preceitos jurídicos àquelas circunstâncias (como entendia Aristóteles), seja para delas abstrair alguns aspectos menos substanciais em prol da aplicação um ideal objetivo e universalmente válido de justiça (como propugnava Kant).

Por esse duplo benefício (o desenvolvimento do espírito crítico e da capacidade de avaliar cada caso concreto da forma devida), o estudo das concepções de justiça pode-se dizer essencial à formação jurídica moderna – sem falar que esse estudo, conforme explanado na Introdução, tem se mostrado imprescindível à reafirmação do Direito enquanto ciência.

Isso permite concluir a justiça não é, como imaginava o positivismo, o elemento irracional do Direito, mas sim o exato oposto: é precisamente o fator que lhe confere racionalidade e cientificidade e que constitui a razão de ser de toda e qualquer norma jurídica, e sem a qual o Direito não passaria de arbítrio e força e seria insuscetível, pois, de qualquer estudo científico sistemático. Sem a justiça, não somente não haveria Direito como tampouco haveria, em última análise, a própria ciência jurídica, motivo pelo qual todo e qualquer avanço desta somente será sólido o bastante se partir do estudo do justo e do injusto (justi atque injusti sciencia) com que os romanos a definiram.

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WHITEHEAD, Alfred North. Process and reality: an essay in cosmology. Nova Iorque: Free Press, 1979.


Notas

1 KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2010.

2 POPPER, Karl. Lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 2013.

3 MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

4 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Tradução de Mário da Gama Kury. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001, p. 119.

5 “The safest characterization of the European philosophical tradition is that it consists of a series of footnotes to Plato” Tradução livre: “A caracterização mais segura da tradição filosófica européia é que ela consiste em uma série de notas de rodapé à obra de Platão". Fonte: WHITEHEAD, Alfred North. Process and reality: an essay in cosmology. Nova Iorque: Free Press, 1979, p. 39.

6 HÖFFE, Ottfried. Justiça política: fundamentação de uma filosofia crítica do Direito e do Estado. Tradução de Ernildo Stein. Petrópolis: Vozes, 1991.

7 KELSEN, Hans. O que é Justiça? A Justiça, o Direito e a Política no espelho da ciência. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

8 PLATÃO. A República. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: Editora da UFPA, 1988.

9 PLATÃO. Górgias. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: Editora da UFPA, 1980.

10 MILL, John Stuart. Utilitarismo. Tradução de F. J. Azevedo Gonçalves. Lisboa: Gradiva, 2005.

11 RANDALL, John Hermann. Aristotle. New York: Columbia University Press, 1962, p. 163.Tradução livre: “Aristóteles vê a ética e a política como partes de uma mesma invesitgação, que difere da ciência e da filosofia precisamente porque tem um objetivo prático – a promoção e a conservação da felicidade humana. O matemático e o físico procuram aprender sobre fatos que eles não podem modificar; o político intenta não apenas entender o homem, mas mudá-lo e educá-lo, e aprender como fazer leis que lhe vão proporcionar bem-estar e evitar que ele se prejudique. Aristóteles, ao contrário do que membros posteriores de sua escola, não fala de uma ramo prático da filosofia, e acharia esta expressão autocontraditória. Na Ética e na Política, ele assume veementemente que não está teorizando sobre o conhecimento prático, mas sim o demonstrando na prática, como se ele e seus alunos estivessem envolvidos em algum empreendimento político. O conhecimento prático (phronesis) e o conhecimento político (politiké) – não importa o termo que usemos, presumindo que signifiquem a mesma coisa – devem ser enxergados não no professor universitário, mas sim no homem sábio ou agente moral”.

12 DÜRING, Ingemar. Aristóteles: exposición e interpretación de su pensamento. México, DF: UNAM, Instituto de Investigaciones FIlosóficas, 1990. Tradução livre: “Tanto para Aristóteles como para nós, atualmente, a pergunta fundamental da ética é: o que é bom e como se sabe que é bom? Uma ação em si e por si não é ética. Chega a ser ética somente ao se apresentar uma situação seletiva e quando a ação provém de uma decisão. Ao tomar esta, temos um objetivo em vista. Se queremos investigar o que é bom para nós, os homens, temos que perguntar primeiro: Qual o objetivo almejado? Basta colocarmos essa questão para percebermos que há um número infinito de objetivos da atividade humana, e que toda a capacidade prática, toda a investigação científica e todo o agir e escolher tendem a um bem”

13 AGOSTINHO. A cidade de Deus. Tradução de João Dias Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006, 3 v.

14 TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica. Vários tradutores. São Paulo: Edições Loyola, 2006, 9 v.

15 No original: Justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuens. Disponível em: <https://droitromain.upmf-grenoble.fr/Corpus/just1.gr.htm#1> Acesso em: 01 mai. 2014.

16 Neste ponto, releva notar que o jurista austríaco Hans Kelsen (1881 - 1973), na obra Teoria Pura do Direito, dá mostras de sua inconfundível influência neokantiana, ao se servir do binômio ser e dever-ser, formulado por Kant, para fundamentar a teoria da norma hipotética fundamental (Grundnorm). Se toda norma, enquanto enunciado de dever-ser, deriva forçosamente de outra norma (i.e., de outro enunciado de dever-ser) – pois do caso contrário, ter-se-ia um sollen derivando de um sein, coisa que Kant e Kelsen consideram logicamente impossível, também as normas jurídicas deveriam provir de uma norma fundamental. Como o conteúdo desta se revelasse indefinível, como o próprio Kelsen, aliás, veio a admitir posteriormente, parte das correntes jusfilosóficas passaram a enjeitar a aplicabilidade do binômio kantiano ao âmbito jurídico, no qual – argumentavam – a correlação entre ser e dever-ser seria possível. Afinal, já dizia o brocardo latino: “o direito provém dos fatos” (ex factis jus oritur). Sobre essa questão, conferir: VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria Pura do Direito: repasse crítico de seus principais fundamentos. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

17 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa, Portugal: Edições 70, 2007.

18 NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e Utopia. Tradução de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1974.

19 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

20 RAWLS, John. Op. cit., p. 654.

Sobre os autores
Fernanda Sousa Vasconcelos

Mestranda em Direito na área de concentração Ordem Jurídica Constitucional pela Universidade Federal do Ceará - UFC, onde graduou-se em Direito Bacharelado com Magna Cum Laude. Atualmente é servidora pública estadual do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará.

Raphael Ayres de Moura Chaves

Possui graduação em Direito pela Universidade de Fortaleza(2003). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Privado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VASCONCELOS, Fernanda Sousa; CHAVES, Raphael Ayres Moura. Teorias clássicas e contemporâneas da Justiça: de Platão a John Rawls. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4638, 13 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46469. Acesso em: 22 nov. 2024.

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