CONSIDERAÇÕES FINAIS
O problema da justiça tem sido, desde a primeira vez em que foi proposto, um problema eminentemente filosófico. O próprio Direito, enquanto ciência, nunca lhe devotou a atenção devida – chegando, no século XX, ao ponto culminante de negar a própria possibilidade de um conceito racional de justiça (como faz Hans Kelsen). No entanto, a ciência jurídica, nas últimas décadas, tem passado por uma reviravolta marcante nesse sentido.
Atualmente, multiplicam-se os estudos jurídicos sobre o problema da justiça, o qual poucas vezes em sua história recebeu tratamento cientifico e metodológico similar ao que hoje recebe. Ademais, os cientistas do Direito pesquisam, com cada vez mais frequência, maneiras de implementar e concretizar o conceito de justiça através das normas jurídicas gerais e abstratas e das decisões judiciais, sobretudo por meio de um aprofundamento teorético que traga à evidência os valores envolvidos no caso concreto e permita sua ponderação à luz da proporcionalidade.
Essas transformações traduzem uma quebra de paradigmas sem precedentes na história da ciência jurídica (precisamente no sentido epistemológico descrito na introdução). O conflito entre Direito natural e Direito positivo (dentre outros muitos conflitos clássicos) veio encontrar no século XX uma solução finalmente viável: não se trata, como supunham os filósofos e juristas dos séculos passados, de escolher entre um deles e excluir o outro, mas sim de alcançar uma síntese dialética que contemple a ambos.
Nesse cenário, o estudo sistematizado das diferentes teorias da justiça propostas ao longo da História, a exemplo da exposição sumária contida no presente artigo, torna-se uma das disciplinas jurídicas de maior relevância prática para o operador do Direito (e não somente teórica, como se poderia supor). Ora, se hoje se reconhece a possibilidade de uma conceituação racional e objetiva da justiça e se reconhece, igualmente, a possibilidade prática de viabilizar a sua aplicação jurisdicional, a justiça deixa de ser apenas uma questão meramente metafísica ou filosófica e se torna uma preocupação cotidiana dos magistrados, advogados, dentre outros profissionais jurídicos.
No entanto, se a compreensão e definição da justiça, em vista da futura aplicação prática, não é tarefa impossível, não se pode negar o considerável grau de complexidade envolvido nesse mister, o qual requer dos que se dedicam à sua execução elevado preparo intelectual capaz de discernir com acurácia o equilíbrio e a desproporção na ponderação dos valores.
Nesse sentido, o exame crítico da história das concepções de justiça proporciona essa formação intelectual imprescindível ao jurista contemporâneo. Além de permitir o desenvolvimento do espírito crítico, graças ao qual é possível perceber os acertos e os erros de cada concepção de justiça particular, o estudo histórico dessas concepções permite uma visão profunda da influência que as circunstâncias históricas ou culturais predominantes em cada época exercem sobre a conceituação e aplicação da justiça.
O jurista, enquanto indivíduo inserto em um contexto histórico-social determinado (e não concebido, como antes, enquanto um cientista recluso em seu “laboratório”), deve ter a capacidade de dialogar com as circunstâncias concretas quando tiver de escolher a saida mais justa para dada situação, seja para condicionar ou amoldar a aplicação dos preceitos jurídicos àquelas circunstâncias (como entendia Aristóteles), seja para delas abstrair alguns aspectos menos substanciais em prol da aplicação um ideal objetivo e universalmente válido de justiça (como propugnava Kant).
Por esse duplo benefício (o desenvolvimento do espírito crítico e da capacidade de avaliar cada caso concreto da forma devida), o estudo das concepções de justiça pode-se dizer essencial à formação jurídica moderna – sem falar que esse estudo, conforme explanado na Introdução, tem se mostrado imprescindível à reafirmação do Direito enquanto ciência.
Isso permite concluir a justiça não é, como imaginava o positivismo, o elemento irracional do Direito, mas sim o exato oposto: é precisamente o fator que lhe confere racionalidade e cientificidade e que constitui a razão de ser de toda e qualquer norma jurídica, e sem a qual o Direito não passaria de arbítrio e força e seria insuscetível, pois, de qualquer estudo científico sistemático. Sem a justiça, não somente não haveria Direito como tampouco haveria, em última análise, a própria ciência jurídica, motivo pelo qual todo e qualquer avanço desta somente será sólido o bastante se partir do estudo do justo e do injusto (justi atque injusti sciencia) com que os romanos a definiram.
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Notas
1 KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2010.
2 POPPER, Karl. Lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 2013.
3 MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
4 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Tradução de Mário da Gama Kury. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001, p. 119.
5 “The safest characterization of the European philosophical tradition is that it consists of a series of footnotes to Plato” Tradução livre: “A caracterização mais segura da tradição filosófica européia é que ela consiste em uma série de notas de rodapé à obra de Platão". Fonte: WHITEHEAD, Alfred North. Process and reality: an essay in cosmology. Nova Iorque: Free Press, 1979, p. 39.
6 HÖFFE, Ottfried. Justiça política: fundamentação de uma filosofia crítica do Direito e do Estado. Tradução de Ernildo Stein. Petrópolis: Vozes, 1991.
7 KELSEN, Hans. O que é Justiça? A Justiça, o Direito e a Política no espelho da ciência. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
8 PLATÃO. A República. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: Editora da UFPA, 1988.
9 PLATÃO. Górgias. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: Editora da UFPA, 1980.
10 MILL, John Stuart. Utilitarismo. Tradução de F. J. Azevedo Gonçalves. Lisboa: Gradiva, 2005.
11 RANDALL, John Hermann. Aristotle. New York: Columbia University Press, 1962, p. 163.Tradução livre: “Aristóteles vê a ética e a política como partes de uma mesma invesitgação, que difere da ciência e da filosofia precisamente porque tem um objetivo prático – a promoção e a conservação da felicidade humana. O matemático e o físico procuram aprender sobre fatos que eles não podem modificar; o político intenta não apenas entender o homem, mas mudá-lo e educá-lo, e aprender como fazer leis que lhe vão proporcionar bem-estar e evitar que ele se prejudique. Aristóteles, ao contrário do que membros posteriores de sua escola, não fala de uma ramo prático da filosofia, e acharia esta expressão autocontraditória. Na Ética e na Política, ele assume veementemente que não está teorizando sobre o conhecimento prático, mas sim o demonstrando na prática, como se ele e seus alunos estivessem envolvidos em algum empreendimento político. O conhecimento prático (phronesis) e o conhecimento político (politiké) – não importa o termo que usemos, presumindo que signifiquem a mesma coisa – devem ser enxergados não no professor universitário, mas sim no homem sábio ou agente moral”.
12 DÜRING, Ingemar. Aristóteles: exposición e interpretación de su pensamento. México, DF: UNAM, Instituto de Investigaciones FIlosóficas, 1990. Tradução livre: “Tanto para Aristóteles como para nós, atualmente, a pergunta fundamental da ética é: o que é bom e como se sabe que é bom? Uma ação em si e por si não é ética. Chega a ser ética somente ao se apresentar uma situação seletiva e quando a ação provém de uma decisão. Ao tomar esta, temos um objetivo em vista. Se queremos investigar o que é bom para nós, os homens, temos que perguntar primeiro: Qual o objetivo almejado? Basta colocarmos essa questão para percebermos que há um número infinito de objetivos da atividade humana, e que toda a capacidade prática, toda a investigação científica e todo o agir e escolher tendem a um bem”
13 AGOSTINHO. A cidade de Deus. Tradução de João Dias Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006, 3 v.
14 TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica. Vários tradutores. São Paulo: Edições Loyola, 2006, 9 v.
15 No original: Justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuens. Disponível em: <https://droitromain.upmf-grenoble.fr/Corpus/just1.gr.htm#1> Acesso em: 01 mai. 2014.
16 Neste ponto, releva notar que o jurista austríaco Hans Kelsen (1881 - 1973), na obra Teoria Pura do Direito, dá mostras de sua inconfundível influência neokantiana, ao se servir do binômio ser e dever-ser, formulado por Kant, para fundamentar a teoria da norma hipotética fundamental (Grundnorm). Se toda norma, enquanto enunciado de dever-ser, deriva forçosamente de outra norma (i.e., de outro enunciado de dever-ser) – pois do caso contrário, ter-se-ia um sollen derivando de um sein, coisa que Kant e Kelsen consideram logicamente impossível, também as normas jurídicas deveriam provir de uma norma fundamental. Como o conteúdo desta se revelasse indefinível, como o próprio Kelsen, aliás, veio a admitir posteriormente, parte das correntes jusfilosóficas passaram a enjeitar a aplicabilidade do binômio kantiano ao âmbito jurídico, no qual – argumentavam – a correlação entre ser e dever-ser seria possível. Afinal, já dizia o brocardo latino: “o direito provém dos fatos” (ex factis jus oritur). Sobre essa questão, conferir: VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria Pura do Direito: repasse crítico de seus principais fundamentos. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
17 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa, Portugal: Edições 70, 2007.
18 NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e Utopia. Tradução de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1974.
19 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
20 RAWLS, John. Op. cit., p. 654.