Dentre as diversas inovações e repercussões trazidas com o advento do Estatuto do Idoso, Lei n° 10.741/03 [1], na legislação em vigor, destacamos uma que sem dúvidas vai ser objeto de amplo debate e discussão, em razão de seu caráter vanguardista e funcionalmente envolvente.
Estamos nos referindo ao chamado princípio da delação impositiva estatuído pelo art. 6° do referido Estatuto que significa, agora, o fortalecimento incontroverso do princípio da cooperação ou do engajamento social (solidariedade) [2], direcionado à família, a sociedade e ao Estado, no que pertine aos direitos da senilidade, uma vez que, tratando-se do tema em questão, qual seja a normatização da política da terceira idade, não constitui mais faculdade a comunicação à autoridade competente da ocorrência de violação de regras jurídicas, notadamente, é claro, no que tange aos preceitos legais do novel diploma em alusão, ao contrário, agora é dever do cidadão a real e efetiva realização dessa comunicação, com o fito de se coibirem práticas que venham a violar as garantias estabelecidas do idoso.
Delatar, portanto, significa denunciar, apontar o responsável por algo, especificamente por alguma infração ou violação legal.
Já na acepção do regime processual penal, a doutrina classifica como a comunicação de um crime feita pela vítima ou por qualquer do povo [3].
Vale conferir, pois, a norma em destaque, temática da explanação, verbis:
"Art. 6o Todo cidadão tem o dever de comunicar à autoridade competente qualquer forma de violação a esta Lei que tenha testemunhado ou de que tenha conhecimento." (grifo nosso)
Até então, importa lembrar, a legislação pátria não contemplava essa modalidade de delação, a chamada impositiva ou obrigatória, envolvendo extraneus, isto é, pessoas sem vínculo com a Administração Pública ou sem nenhum múnus especial, atribuído pelo Estado, ao contrário, preceituava a faculdade (facultas agendi) de delação, não havendo, portanto, dever de a pessoa comum comunicar à autoridade competente eventual violação a direitos e garantias estabelecidos nem mesmo a eventual ocorrência de crime.
Entrementes, com relação àqueles que possuem ligação com a Administração, servidores numa acepção latu sensu, ou que desempenham certo múnus especial, a legislação, em determinados casos, já preconiza o dever de delatar ou de até mesmo agir, como, por exemplo, o do agente policial que presencia uma infração criminal, o do servidor que presencia irregularidades no serviço público, dentre outras situações legalmente previstas. [4]
Podemos até encontrar na Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) um comando normativo de certa forma assemelhado ao ora em comento, mas que, pela sua redação, não inovou na ordem jurídica no que toca à preceituação do dever específico de comunicação, a que nos reportamos acima, senão vejamos:
"Art. 70. É dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente"
Além do que, o dever a que se refere a legislação do menor, como se pode ver, limitou-se quanto a prevenção de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente, não obrigando, ainda, o indivíduo na chamada cooperação a posteriori, ou seja, no dever legal e específico de delatar à autoridade competente a ocorrência de tais violações.
Vejamos, ademais, o que diz nossa legislação, acerca da previsão de delação como possibilidade e não como dever (obrigação) do indivíduo:
No Código de Processo Penal, temos:
"Art. 5º - Nos crimes de ação pública o inquérito policial será iniciado:
...omissis...
§ 3º - Qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de infração penal em que caiba ação pública poderá, verbalmente ou por escrito, comunicá-la à autoridade policial, e esta, verificada a procedência das informações, mandará instaurar inquérito.
...omissis..." (grifamos)
"Art. 301 - Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito." (grifamos)
No art. lº § 5º da lei 9.613/98, que disciplina a prevenção e repressão à lavagem de dinheiro, nos termos que especifica, temos a chamada delação (facultativa) premiada (espécie de direito premial, como conseqüência da observância anormal, ou seja, mais do que esperada da lei):
"A pena será reduzida de um a dois terços e começará a ser cumprida em regime aberto, podendo o juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la por restritivas de direitos, se o autor, co-autor ou partícipe colaborar espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais e de sua autoria ou à localização dos bens, direitos ou valores objetos do crime".
Na Lei 9.807/99, que trata da organização e a manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas, temos a norma abaixo:
"Art. 14. O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime, na localização da vítima com vida e na recuperação total ou parcial do produto do crime fará jus, no caso de condenação, terá pena reduzida de um a dois terços." (grifamos)
No próprio Código Penal, temos no art. 159, § 4º, verificamos a previsão de delação:
‘Se o crime é cometido em concurso, o concorrente que o denunciar à autoridade, facilitando a libertação do seqüestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços." (Parágrafo acrescentado pela Lei nº 8.072, de 25.7.1990 e alterado pela Lei nº 9.269, de 2.4.1996)
Desta forma, após a ilustração acima, percebe-se que a delação impositiva trazida pela Lei. 10.741/03, além de descortino é sem dúvida uma importante medida legislativa no sentido da efetividade e do respeito de todos aos direitos dos idosos.
Assim sendo, perscrutando a norma instituidora da delação impositiva, verifica-se pelo seu conteúdo, art. 6° do E.I., que a imperatividade em tela foi posta e dirigida, subjetivamente, ao cidadão, entendido este como aquele que tenha capacidade de participar, ao menos em tese, das decisões políticas na sociedade, portanto, numa clássica definição, aquele que seja inscrito como eleitor, a teor, inclusive, do prescreve a Lei 4.717/65, que disciplina a Ação Popular, em seu artigo 1° , parágrafo 3° , vejamos:
"Art. 1° Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos...
§ 3º A prova da cidadania, para ingresso em juízo, será feita com o título eleitoral, ou com documento que a ele corresponda." (grifo nosso)
Qual seria então a razão da lei em apreciação ter direcionado este dever a quem desponte desse status jurídico e não a qualquer pessoa comum do povo? Deveríamos conferir, neste tocante, uma interpretação extensiva, pois, o legislador disse menos do que queria (lex dixit minus quam voluit)? No meu entender, temos uma certeza, a terminologia aí empregada não foi leigamente utilizada, inexistindo, portanto, equívoco quanto ao seu alcance e significado, uma vez que a norma teve o condão de obrigar deontologicamente aquelas pessoas que já são, ao menos formalmente, comprometidas com os destinos da polis, e, portanto, com a vida em comunidade. Resta saber, além dos questionamentos adiante, se tal limitação subjetiva violou o princípio constitucional da isonomia, é outra questão.
Creio, todavia, para afastarmos qualquer eiva nesse sentido, que devemos exercitar uma interpretação conforme [5] para chagarmos à ilação que o alcance legal do termo cidadão, na espécie, tenciona atingir todos aqueles que embora não possuam formalmente sua inscrição como eleitor mas que, em tese, já preencheram os requisitos para tal, ou seja, todos aqueles que materialmente podem vir a investir-se nessa condição, nesse status, abrangendo assim todas as pessoas que possuem capacidade civil [6] e penal, e que, assim, são conscientes e responsáveis pelos seus atos.
Doutra parte, é bom considerar, neste meio tempo, que não se exigem maiores formalidades para se exercitar esse dever-direito de delatar, razão pela qual se conclui que, apesar de tal ônus ter sido dirigido àquele que ostenta a condição de cidadão, a autoridade policial não deve, sobremaneira, menosprezar a delação, facultativamente exercida, por quem, admitamos, não seja cidadão, afinal, a essência e teleologia da norma é a busca pela afirmação da dignidade das pessoas idosas.
Assim sendo, o cidadão terá o dever, portanto, a obrigação de delatar à autoridade competente a ocorrência, como já se disse, de qualquer violação aos termos do Estatuto do Idoso, ou seja, o citado dever não se circunscreve ao malferimento a determinado direito ou garantia do idoso, pois, a lei deu lata abrangência ao regime de proteção pretendido quando veiculou em seu texto a expressão qualquer violação a esta lei.
Ademais, deixa claro o artigo em tela que não é necessário que o cidadão tenha presenciado, portanto, testemunhado a referida violação aos preceitos legais do idoso, bastando, portanto, para exsurgir seu ônus delatório, que tenha tomado conhecimento da respectiva violação, quer por interpositam personam ou mesmo pelos meios de comunicação, o que faz presumir, nestes casos, que outras pessoas (cidadãs) já tenham também incidido no dever de delação.
É sabido, em decorrência do princípio da legalidade, art. 5° , inciso II da C.F., que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo ou alguma coisa senão em virtude de lei, e que esta garantia fundamental é uma característica marcante e decorrente do Estado Democrático de Direito, na medida em que se põem limites a potestade pública, no seu aspecto ingerencial na sociedade, quer quando está atuando (o Estado) quer quando está a exigir atuação (do indivíduo).
Dito isso, podem surgir algumas indagações, tais como: será que o artigo 6° do Estatuto do Idoso é inconstitucional em algum aspecto? Será que basta cumprir o preceito constitucional que manda observar a presença formal de lei, como instrumento vinculador de condutas, para não mais se cogitar na existência de vício material de afronta à constituição? Será que, diante da conjugação das categorias encargos e liberdades, tal norma não criou um ônus desproporcional para o cidadão, a ponto de diminuir, desarrazoadamente, sua liberdade de conduta?
Sem pretender esgotar as possibilidades de respostas, não vislumbro inconstitucionalidade na epigrafada norma, pois, a liberdade do cidadão não resta diminuta com a imposição do referenciado dever de delação, uma vez que a própria concepção de liberdade, num corpo social, tem que ser concebida e bem compreendida como correlata de co-liberdade e, nesse sentido, a sociedade e, por conseguinte, o Estado resolveram por uma co-responsabilidade de todos na fiscalização do cumprimento da legislação do idoso, implicando, com isso, na repartição social desse ônus-encargo (dever), não havendo, com isso, impacto, injustificado, à liberdade conjunta dos destinatários da norma, ou seja, dos cidadãos. [7]
Afinal, qual seria a conseqüência para o descumprimento desse dever de delação, pois, percebe-se que a norma não prescreve nenhuma sanção específica para os casos de inação do cidadão.
Ora, é bem verdade que inexiste sanção específica na norma em referência, mas isso não autoriza a conclusão que, em circunstância alguma, poderá haver resposta estatal pelo descumprimento desse preceito normativo, até porque, em apertada síntese, a sanção, no magistério de Bobbio, nem sempre se encontra topicamente na norma, estando muitas vezes no ordenamento, pois, quando se fala de uma sanção organizada como elemento constitutivo do direito nos referimos não às normas em particular, mas ao ordenamento normativo todo em seu conjunto, razão pela qual dizer que a sanção organizada distingue o ordenamento jurídico de qualquer outro tipo de ordenamento não implica que todas as normas daquele sistema sejam sancionadas, mas somente que o são em sua maioria. Nossa resposta mostra em concreto que um problema mal resolvido no plano singular encontra solução mais satisfatória no plano do ordenamento. [8]
Assim sendo, é possível que, dependendo do caso concreto, haja responsabilização civil em decorrência da não realização do dever de comunicação à autoridade competente, uma vez constatado que a omissão contribuiu determinantemente para o resultado danoso produzido como foi, considerando a evitabilidade que adviria dessa conduta, quanto ao não agravamento ou perpetuação do dano em virtude da violação aos preceitos do idoso.
É possível, ainda, que o cidadão incida, uma vez configurada a presença dos elementos tipológicos, na reprovação inserta no artigo 97 do E.I., verbis:
"Art. 97. Deixar de prestar assistência ao idoso, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, em situação de iminente perigo, ou recusar, retardar ou dificultar sua assistência à saúde, sem justa causa, ou não pedir, nesses casos, o socorro de autoridade pública:
Pena – detenção de 6 (seis) meses a 1 (um) ano e multa.
Parágrafo único. A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte."
Essas são algumas considerações, a partir da norma em questão, feitas de forma não exauriente, acerca do novo disciplinamento jurídico respeitante à delação.
Dito isso, para além dos embates teóricos sobre o E.I., objetivando sua mais perfeita compreensão em decorrência do nosso sistema jurídico-constitucional, de fato, esperamos que a consciência social, não apenas de cumprimento da lei, mas também de solidariedade, torne concreta a observância dos preceitos dos idosos e que a delação impositiva, por conseguinte, seja concebida e vista como um direito de afirmação das garantias da senilidade e não como um jugo ou uma obrigação a mais criada pelo Estado para o cidadão.
Notas
01. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências. "Art. 118. Esta Lei entra em vigor decorridos 90 (noventa) dias da sua publicação, ressalvado o disposto no caput do art. 36, que vigorará a partir de 1º de janeiro de 2004."
02. "CF. Art. 3° , inciso I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;" "Esta é a meta prioritária e fundamental da República Federativa do Brasil. Muito longe de conseguir esse fim, a Constituição de 1988 quis consagrar a liberdade, o ideário da justiça e a solidariedade.". Constituição Federal Anotada. Uadi Lammêgo Bulos. Saraiva. p. 55.
03. Pode ser, no caso, delatio criminis simples ou postulatória, a primeira apenas noticia o fato, a segunda além da notícia do fato há solicitação de persecução penal (obs.: há ainda a chamada delação anônima ou inqualificada, a qual não deve ser, de plano, desconsiderada). In Fernando Capez. Curso de Processo Penal. Saraiva. 6ª. ed. p. 75.
04. "Em regra, trata-se de mera faculdade conferida ao cidadão de colaborar com a atividade repressiva do Estado. Todavia, há algumas pessoas que, em razão do seu cargo ou da sua função, estão obrigadas a noticiar às autoridades a ocorrência de crimes de que tenham notícia no desempenho de suas atividades: LCP, art. 66, I e II; Lei 6.538/78 (dispõe sobre os serviços postais), art. 45; Lei de Falências, arts. 104 e 105. In Fernando Capez. Curso de Processo Penal. Saraiva. 6ª. ed. p. 75.
05. "O fundamento da interpretação conforme é a unidade da ordem jurídica (Zagrabelsky), ou seja, leis que foram promulgadas sob a vigência da Lei fundamental devem ser interpretadas em consonância com a Constituição...(Konrad Hesse). Ademais, encontra fundamento também em um princípio de economia do ordenamento ou de máximo aproveitamento dos atos jurídicos (Jorge Miranda).Pela interpretação conforme à Constituição enfatiza-se a supremacia desta, mas, de outra parte, reconhece-se a legitimidade das leis e de sua origem, de forma que sua anulação só ocorra quando única solução viável, vale dizer, como última ratio para a ocorrência". In André Ramos Tavares. Curso de Direito Constitucional. Saraiva. 2002. p. 225 e 226.
06. Capacidade de fato ou de exercício.
07. "Uma outra manifestação do princípio da igualdade é a que os autores designam por igualdade perante os encargos públicos (égualité devant lês charges publique, Lastengleichheit). J.J. Canotilho. Direito Constitucional. Almedina. 5ª. ed. 1992. p. 580.
08. Norberto Bobbio. Teoria do Ordenamento Jurídico. Editora UNB. 10ª. ed. p. 29.