Com a colaboração de Aline Bayerl Coelho - advogada especializada em Relações de Consumo da Carpe Diem Justitia Assessoria e Consultoria Jurídica, pós-graduanda em Direito Processual pela PUC-BH (abayerl@uai.com.br)
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Da Idéia de Estado e os Interesses subjacentes: evolução – 3. Princípio da Demanda nas Ações Coletivas do Estado Social – 4. Síntese Conclusiva – 5. Bibliografia.
1. INTRODUÇÃO
Mesmo que se tenha uma visão totalmente vinculada à tradição liberal-burguesa do Direito, existem momentos em que torna-se inegável que o ordenamento jurídico, mormente a Constituição, caminha em sentido contrário. Não se diga que haja uma direção voltada ao marxismo ou outras doutrinas variantes. Contudo, visível se mostra a socialização do direito, precipuamente do Direito Privado. (1)
Nesse contexto, não podemos olvidar que, uma vez que o direito material se insinua em uma determinada direção – a sua socialização com vistas à defesa de pessoas vulneráveis de forma geral, com sérias restrições aos dogmas da liberdade contratual e da autonomia da vontade – o direito processual, de seu turno, não poderá divergir, afastando-se de tal desiderato.
Assim, correto afirmar que o processo, como instrumento de efetivação do direito material previsto em lei com principiologia na Constituição, não deverá continuar na visão liberal, inaugurada pela Revolução Francesa no século XVIII, onde somente o titular do direito subjetivo violado terá o direito ao exercício da ação. (2)
De efeito, uma nova interpretação do direito processual – no afã de adequar a ciência instrumental a esse giro paradigmático – passa, necessariamente, por um novo preenchimento axiológico de seus princípios e institutos, mormente aqueles que traduzem claramente a ideologia adotada pelo ordenamento jurídico, ainda impregnado pelas idéias liberais.
Daí o presente estudo ter por escopo demonstrar que – em particular na ciência processual – o princípio da demanda nas ações coletivas está carecendo de um novo contorno valorativo, a redundar em novas concepções antes jamais pensadas em termos de direito alicerçado na ideologia liberal-burguesa.
Com efeito, a nova visão que se tentará dar a tal princípio ensejará conseqüências outras no âmbito do processo, aqui denominado, coletivo.
Para tanto, é necessário, primeiramente, consignar que o País vive hoje um Estado Social do Direito, inaugurado em 1988, que exigirá parcial afastamento dos dogmas liberais franceses para visualizarmos a Sociedade como detentora e titular de direitos antes impensados na esfera privada, o que acarretará, por via de conseqüência, o repensar, também, o processo, sob a ótica do princípio da demanda, como se tentará expor na seqüência.
2. DA IDÉIA DE ESTADO E OS INTERESSES SUBJACENTES: EVOLUÇÃO
Frise-se, de início, que, por mais paradoxal que possa a vir a ser, não vivemos, absolutamente, no Estado tal qual ele é, porém sobre a idéia de Estado, onde reside o objetivo indisfarçável de convivência pacífica em sociedade de classes sócio-econômicas diversas.
A filosofia do Idealismo – que vem desde da Grécia com Platão – entendeu os objetos conhecidos como mera representação de uma idéia perfeita daquela mesma representação, conquanto inalcançável pelo intelecto humano.
Com o Estado ocorre fenômeno idêntico. Já que inconcebível a coexistência de classes díspares, como afirmado, sob o aspecto social, econômico, financeiro, cultural, etc., imaginou-se um Estado ideal onde coexistem variegadas espécies de personalidades humanas, sem que, contudo, se auto destruíssem, porquanto incutiram nas mentes dos seus súditos determinadas noções impossíveis de se definir, que, ao mesmo passo, representariam o Estado em seus objetivos, fins e conseqüências, como, e. g., o interesse público, a ordem social, a ordem jurídica e outras expressões que, nem mesmo com muito esforço, chegar-se-á a definições concretamente aceitáveis, porquanto tais objetos só existem no mundo das idéias, idéias estas que, como dito, são incutidas na mente dos indivíduos sem que se pergunte o que é, sem que se questione para que servem, porque se assim não fosse, se assim não nos convencêssemos, a vida em comunidade tornar-se-ia insuportável, até mesmo inconcebível.
Anote-se, ainda, que a metodologia adotada parece (somente aparência) perfeita, qual seja, a lógica formal. Não obstante, faz-se mister, para atingirmos a essência dos institutos e princípios jurídicos e não a mera existência, um repensar crítico sobre esta espécie de lógica, evoluindo, consequentemente, para a lógica dialética.
Daí afirmar o Prof. Michel Miaille que:
Para que, no sistema capitalista onde os homens estão profundamente divididos em classes antagónicas, (sic) uma vida social ainda assim seja possível, é necessário que exista uma estrutura política, cuja função primeira será ordenar a desordem, reconciliar aparentemente indivíduos que tudo separa, velar pela salvação pública. Esta instituição, sabemo-lo, é o Estado... Ora, e é o que muitos esquecem às vezes, esta existência da ideia (sic) de Estado é importante para o próprio funcionamento das estruturas estatais. Se cada um de nós não estiver intimamente convencido da necessidade de um Estado, quer dizer, do valor desta (aparente) função de apaziguamento e de regulamentação pacífica dos conflitos, se cada um de nós não acreditar que existe um bem comum, distinto e superior aos nossos interesses particulares, torna-se difícil fazer funcionar o Estado, isto é, concretamente a administração, os tribunais, o exército e, de uma maneira geral, todas as instâncias a ele ligadas. Assim se impõem, na prática e nas consciências, noções tais como: interesse geral, direitos e deveres do cidadão, soberania, razão do Estado, vontade da administração e outras tantas ‘expressões’ sem as quais, afinal, o funcionamento da instituição estatal estaria comprometido. (3)
De efeito, resta evidente que a idéia de Estado produzida pelas sociedades capitalista tem por fim uma aparente acomodação de classes sociais distintas, ou seja, de interesses – muitas vezes não conscientes no seio dessas classes – diversos e divergentes, no universo complexo que é a Sociedade.
Em razão dessa divergência e diversidade, vislumbra-se interesses que o aspecto histórico distingue, variando a primazia de uns sobre outros, de acordo com a ideologia dominante da época.
Assim, temos inaugurada em 1789 a era da primazia do interesse individual – plasmado no princípio da autonomia da vontade e da liberdade contratual –sobrepondo-se ao interesse público (4), com a atrofia do Estado em benefício do indivíduo como centro de toda liberdade e razão até então impensadas.
Em escólio, Jorge A. Frias traduz as relações sociais então preponderantes:
El individualismo liberal enraiza en la filosofía kantiana, en que todo se reduce a dos términos: la libertad, objeto proprio del derecho y la razón su creadora. Concibe al hombre como un fin en sí, libre respecto de los otros, pero convertido en su proprio esclavo; autor de la ley y servidor de la misma, legislador y juez, soberano y súbdito en la república de los seres razonables y libres. En última síntesis, todo se reduce a la autonomia de la vonluntad humana... (5)
A autonomia da vontade preconizada pelo Autor, juntamente com a razão humana, era, ao apagar das luzes do século XVIII, início e fim da sociedade perfeita, em que o mercado livre (isto é, sem ingerência do Estado) se encarregaria de aparar as desigualdades eventualmente existentes.
A importância depositada no interesse individual (consubstanciado aqui na autonomia da vontade e na liberdade contratual) exagerou-se a ponto do Código Civil Napoleônico de 1804 dificultar sanções a figuras como a lesão contratual, usura e o abuso do direito.
Para la filosofía del Código de Napoleón el hombre nace armado de derechos absolutos, sagrados, imprescriptibles e ilimitados, por lo menos en principio, de donde la fidelidad al sistema dificulta la aplicación de sanciones para la lesión, la usura, o el uso abusivo del derecho, que felizmente se impusieron luego por la función creadora de la jurisprudencia, un poco al margem de los textos (6)
Não se diga, porém, que a noção de individualismo teria nascido por acaso. Definitivamente, não.
De efeito, a ideologia preponderante à época possuía seus escopos que restavam dissimulados ante a pregação do direito de liberdade e da razão como únicos direitos inatos ao homem.
Inequivocamente, tal ideologia tinha por fim o desmantelamento dos grupos, criando-se, a partir de então, o atomismo, conseqüência determinante na mudança dos meios de produção, que, de seu turno, será influenciado por outras instâncias da superestrutura – notadamente as ideológica e jurídica – inaugurando um novo sistema sócio-econômico: o liberal-burguês.
Reciprocamente, declarar que todos os homens são sujeitos de direito livres e iguais não constitui um progresso em si. Significa tão-somente que o modo de produção da vida social mudou. A ‘atomização’ da sociedade pelo desfazer dos grupos que a estruturavam não é pois um efeito evidente do viver melhor ou de uma melhor consciência, exprime apenas um outro estádio (sic) das transformações sociais. Constatá-lo-íamos facilmente nos caos que nos apresentam actualmente os países do terceiro mundo: a introdução da dominação capitalista sob a forma colonial e neocolonial produziu aí este efeito do desfazer do grupo social numa multiplicidade de indivíduos isolados a partir daí... Alguns estudos interessantes deste ponto de vista mostram como a pouco e pouco os indivíduos se tornam mais ‘autónomos’ nas suas práticas e nas suas representações ideológicas. (7)
Em conclusão, assevera, ainda, o Prof. Miaille:
Fica-se, pois, com a noção de que a categoria jurídica de sujeito de direito não é uma categoria racional em si: ela surge num momento relativamente preciso da história e desenvolve-se como uma das condições da hegemonia de um novo modo de produção... Pela categoria de sujeito de direito, ele mostra-se como parte do sistema social global que triunfa nesse momento: o capitalismo. É preciso, pois, recusar todo o ponto de vista idealista que tenderia a confundir esta categoria com aquilo que ela é suposta representar (a liberdade real dos indivíduos). É preciso tomá-la por aquilo que ela é: uma noção histórica. (8)
De efeito, divisa-se, como acima afirmamos, que a idéia de liberdade tem por escopo a dissociação dos grupos como forma de isolamento humano a facilitar, no mercado de trocas, a compra da força de trabalho no novo sistema então instaurado: o capitalismo.
Por via de conseqüência, a instância jurídica, no particular, tem relevância demasiada, visto criar a figura do sujeito de direito, imprescindível para a configuração concomitante do interesse individual, o qual chega aos códigos liberais via autonomia da vontade e liberdade contratual – no que toca ao direito material; e via princípio da demanda, antigo princípio dispositivo – no que concerne ao direito processual.
Entretanto, a crise dos fundamentos do individualismo pôde ser sentida desde os tempos da Revolução francesa até os nossos dias (9), sendo que, principalmente a partir do século XIX, o interesse individual começa a ser limitado pelo intervencionismo estatal.
De efeito, já no limiar do século XX, procedeu-se a uma certa ruptura com a idéia de liberdade quase total – em razão da desigualdade inevitável que o sistema liberal engendra – com a profunda ingerência do Estado na proteção dos vulneráveis. Vislumbra-se, aqui, uma evidente preocupação da inércia estatal de outrora que, em parte, ensejou as desigualdades atualmente experimentadas. Inaugura-se, de certa forma, a preponderância do interesse público sobre o interesse individual.
Interessa ao objeto do nosso trabalho como tal fenômeno desenvolveu-se no campo da ciência jurídica.
Não obstante, podemos, mesmo que perfunctoriamente, cogitar de outros aspectos, mormente o social, cuja importância releva ser mencionada como constituinte da nova mentalidade de Estado advinda da mitigação de dogmas liberais burgueses.
Com efeito, no campo social surgem grupos intermediários de expressão na defesa de interesses de mesma qualidade, ou seja, aqueles situados entre o indivíduo e o Estado, tais como, os sindicatos e as associações.
É o ressurgimento, mutatis mutandis, em âmbito social, dos grupos de indivíduos que a Revolução francesa, ao argumento da instauração de um sistema de liberdade, como vimos, atomizou, e que, segundo Frias, citando Gurvitch, advém do todo social subjacente: El derecho social – según Gurvitch – es un derecho autónomo de comunión, que integra de una manera objetiva cada totalidad activa real, (y) que encarna un valor positivo extra-temporal. (10)
Assim, em um real movimento de fluxo e influxo, as comunidades (isto é, os grupos sociais) realizam seus direitos, mesmo que à revelia do Estado legislador. (11)
Por via de conseqüência, instaurar-se-á um direito fulcrado nos movimentos sociais subjacentes, é dizer, nos movimentos dos grupos sociais que, como fenômenos sociais, estão alheios ao direito legislado do Estado.
El derecho social se dirige, en su capa organizada, a sujetos jurídicos específicos – personas colectivas complejas – tan diferentes de los sujetos individuales aislados como de las personas morales – unidades simples – que absorben la multiplicidade de sus miembros en la voluntad única de la cooperación o del estabelecimiento. (12)
Tal preponderância irá levar o Estado a uma socialização, é dizer, a uma preocupação com o aspecto social do direito, cada vez mais profunda, surgindo, consequentemente, a socialização do jurismo.
Como de fácil constatação, tal preponderância é sentida em vários ramos do direito privado, mormente no que toca aos vulneráveis, v. g., consumidores, locatários, trabalhadores, etc.
Assim, ante o extremismo do sistema liberal, flui-se para o meio termo como lugar ideal de convivência humana em sociedade. Em conseqüência, surge, no bojo dos direitos fundamentais de terceira geração, um tertius genus, um terceiro interesse, antes inimaginável, qual seja, o interesse social. (13)
Vislumbrada a fraqueza de fundamento do Estado liberal, bem como a prepotência estatal nos modelos socialista-marxistas, propugnou-se elevar o interesse social (14) sobre os interesses individual e público, ainda como ideal de se perseguir a pacífica convivência em conjunto de interesses díspares.
Frise-se, ademais, que a aparição dos interesses sociais – longe de ser a extinção dos demais interesses – configura a emersão dos direitos sociais inorganizados (15) como tentativa de estabelecer-se um direito organizado com fulcro na natural e espontânea cooperação informal dos indivíduos em sociedade.
No direito brasileiro, em particular, vislumbra-se a socialização do direito privado em várias vertentes. A primeira, de caráter constitucional, fez com que a onda socializante inserisse no texto da Constituição de 1988 o aspecto da função social em institutos que na época da Revolução francesa eram considerados flagrantes características do sistema que se inaugurava, v. g., a propriedade. Surgindo como direito absoluto e intocável pelo liberalismo burguês, no Estado Social o exercício deste direito de propriedade está restrito, sendo sua realização condicionada à função social (art. 5º, XXIII, CF/88).
Ainda em sede constitucional, o art. 170 do mesmo diploma elenca diversos princípios que a ordem econômica brasileira deve respeitar. De efeito, divisa-se certos limites impostos à iniciativa privada pela defesa do consumidor, ainda pela função social da propriedade, a busca do pleno emprego, etc.
Infere-se daí a inauguração de um Estado Social levado a efeito pela Constituição de 1988.
Em seara legislativa comum, lado outro, a criação de legislações especiais que dão tratamento diferenciado, ora em razão das pessoas inseridas nas relações jurídicas (Código de Defesa do Consumidor), ora em virtude do objeto sobre o qual incide a relação jurídica (Lei de Locação Urbana), fez o Estado distanciar-se do liberalismo burguês esposado pelo revogado Código Civil de 1916.
E, por último, ainda tecendo comentários sobre legislação ordinária, vem à lume um novo tratamento legal para o contrato – antes considerado, tal qual o direito de propriedade, um instituto intocável até mesmo pelo legislador, onde preponderava de forma absoluta a autonomia da vontade e a liberdade contratual – sede em que o intérprete deverá levar em conta, da mesma forma que para a propriedade, sua função social. (16)
Daí ter asseverado o Prof. Miguel Reale que:
É constante o objetivo do novo Código no sentido de superar o manifesto caráter individualista da Lei vigente, feita para um País ainda eminentemente agrícola...
Daí o predomínio do social sobre o individual. (17)
As mais recentes leis em vigor no Brasil agasalham, indubitavelmente, o predomínio do interesse social sobre o interesse individual e público, na esteira daquilo que se espera de uma Sociedade cuja convivência humana seja viável.
3. PRINCÍPIO DA DEMANDA NAS AÇÕES COLETIVAS DO ESTADO SOCIAL
Nas linhas anteriores, tentamos traçar, de forma perfunctória, o desenvolvimento do Direito Privado, notadamente o Direito Civil, no que tange à sua socialização, haja vista a intervenção, a cada momento maior, do Estado, através de sua função legiferante, em domínios antes reservados à vontade das partes contratantes, como tradução da liberdade, primeiro princípio da ideologia liberal-burguesa.
Sem embargo, o Direito Processual, desde o instante que ganhou autonomia como ciência, foi conceituado como instrumento para a realização do direito material. (18)
Da assertiva extrai-se a ilação de que, uma vez que o Direito Processual se justifica como instrumento a serviço da realização fática do Direito material, havendo mutação ideológica deste – chegando mesmo às raias da legislação – deverá haver o mesmo giro na interpretação dos institutos do Direito instrumental, para que haja adequação necessária entre os fins (direito material) e os meios (direito processual).
Mesmo porque, como afirma Mauro Cappelletti:
É uma realidade que o direito processual, e também a própria técnica do processo, não é nunca algo arbitrário, mas algo que traz sua própria medida de exigências práticas e culturais de um determinado tempo. O direito processual, resumindo, pode ser considerado, em certo sentido, se nos permitir a metáfora, um espelho no qual, com extrema fidelidade, se refletem os movimentos do pensamento, da filosofia e da economia de um determinado período histórico. (19)
Faz-se mister, pois, uma re-análise dos princípios e uma nova interpretação dos institutos da Ciência processual, com o escopo de se proceder a adaptação antes mencionada, ou seja, o desenvolvimento dos princípios processuais ao Estado Social.
Entretanto, limitar-nos-emos, neste trabalho, à análise do princípio da demanda e seu desenvolvimento no Estado Social, procedendo-se à uma re-análise das conseqüências que advirão para a processualística nesta maneira de pensar.
Frise-se, de início, que, o que hoje é denominado princípio da demanda, no passado vislumbrou-se o princípio dispositivo.
Com efeito, Celso Agrícola Barbi anota que: Entendeu-se, durante muito tempo, que essa regra era uma conseqüência do princípio dispositivo, mas estudos mais modernos demonstram que não há identidade entre aquele princípio e o da demanda, ou da iniciativa da parte. (20)
Dentre os diversos princípios que norteiam o Direito Processual, o princípio da demanda é, dentre outros, o que caracterizou com maior ênfase o Estado liberal-burguês de fins do século XVIII, haja vista que, uma vez disponível o direito material, disponível seria, também, o direito de demandar. Significa o princípio da demanda que a invocação da tutela jurisdicional é um direito estritamente individual e que a defesa dos interesses próprios fica à livre iniciativa do seu titular. (21)
Isto devido à existência, no países de direito Ocidental, como o nosso, da bipartição do ordenamento em Direito Privado e Direito Público, fato não ocorrente nos antigos países da família socialista.
Sem embargo, o princípio sob comento dá ensejo a desdobramentos principiológicos outros que, em um Estado Social, deverá ser repensado em todas as suas conseqüências: Do princípio da demanda decorrem outras conseqüências, como a de que o juiz não pode decidir além do que foi pedido pelo autor, nem considerar questões não apresentadas pelas partes, para as quais a lei exige iniciativa,... (22)
Sobre estes pontos, passaremos a incidir.
3.1. NEMO IUDEX SINE ACTORE
Com efeito, o princípio da demanda tem como conseqüência o fato de o juiz não poder, por regra fundamental, instaurar um processo ex officio.
Trata-se este de um efeito de maior tradução das diferenças existentes entre os processos de todo o mundo, consideradas as diversas famílias existentes ainda hoje.
De efeito, em uma ação individual, tal princípio restará incólume, haja vista ser, nos sistemas liberais ocidentais, privativo daquele que se achar violado em seu direito provocar o poder jurisdicional do Estado, a fim de que aquele seja restabelecido por força do poder estatal.
No que toca às ações coletivas – frise-se que estas podem ser propostas também por parte pública (Ministério Público), assim como por entes intermediários (Associações, Sindicatos, etc.) – entendemos que tal norte, assim como concebido, não merece reparos. Isto porque, no nosso sistema processual, nos parece inconcebível agentes do poder jurisdicional do Estado instaurar demandas que irão julgar. Daí por que a solução brasileira da legitimidade concorrente (23), a nosso sentir, satisfaz parcialmente a contento a preocupação que, a princípio, poderia existir de tais interesses coletivos ficarem relegados ao limbo jurídico, conquanto, na maior parte do mundo, os organismos estatais – da mesma forma os entes intermediários – ainda não estejam completamente adaptados à nova realidade social do Direito.
Entretanto, insta ressaltar que a solução pátria para as ações coletivas traduz-se, a nosso ver, ainda tímida, visto que a interpretação sobre a legitimidade dos organismos intermediários é fechada, ou seja, numerus clausus, não admitindo a propositura da demanda coletiva senão por aqueles estampados em lei.
De efeito, a adoção pelo direito norte-americano de uma legitimidade aberta no tocante à class action seria mais adequada também ao direito processual pátrio.
Isto porquanto, naquele país do hemisfério norte qualquer indivíduo poderá propor uma ação coletiva, prescindindo da existência, no pólo ativo da relação jurídica processual, de um organismo, público ou privado, desde que represente adequadamente o interesse coletivo.
Daí afirmar a Profª. Ada Pellegrini Grinover que são requisitos para a propositura de ações coletivas, dentre outros: um ou mais membros de uma classe podem processar ou ser processados como partes, representando a todos. (24)
Assim, de lege ferenda, a modificação legislativa no Brasil faz-se necessária, visto que a legitimidade aberta nas ações coletivas poderá fazer com que seja concretizado o princípio do acesso à Justiça, bem como aliviará o Poder Judiciário de diversas demandas repetitivas.
É verdade que nos países da chamada família socialista um simples crédito não pago poderia ser demandado por organismos públicos, eis que este crédito, dentro naquele raciocínio socialista, não pertence tão-somente ao seu titular, havendo interesse do Estado na composição daquele direito não realizado por desídia do devedor.
Vislumbra-se, sem mais, nestes países, a intolerância estatal com a vontade da população de se dirigir dentro daquilo que acredita ser de seu interesse.
A outro giro, se o juiz não pode instaurar uma demanda de ofício, impedido estará, outrossim, por força do princípio sub examen, de analisar argumentações não contidas na resposta da parte Ré da demanda.
De efeito, vige o princípio da demanda também em relação às exposições do Réu nas ações individuais, sendo certo que, por conseqüência, via de regra, a parte em face da qual foi proposta a demanda deverá expor suas razões expressamente, estando impedido o magistrado de deduzir conclusões alheias àquilo a que foi argumentado e provado.
Neste particular, é de se notar que hodiernamente sofre clara mitigação a disposição que tem o Réu sobre os seus interesses. Isto porquanto, existem matérias, que por se tratarem de interesse do Estado, que o juiz poderá, mesmo sem alegação formal do Réu, se pronunciar de ofício, sendo o exemplo da decadência do direito o mais eloqüente.
Em sede de ações coletivas, não há variação, em particular, no cotejo com ações individuais. Se nestas o Réu divisa limitada disposição sobre seu interesse por razões ligadas à natureza do instituto, naquelas não vislumbramos motivos que enseje diferença de tratamento, salvo para um alargamento do poder de disposição do Réu sobre seus interesses.
Tal se dá pelo fato, como explanado acima, de que a socialização do direito material visa, dentre outras coisas, a proteção do débil, do vulnerável. Nesta linha de raciocínio, o direito processual deverá buscar os mesmos objetivos, sendo certo que, para tanto, não poderá deferir tutela protetiva aos econômico e socialmente mais fortes, sob pena de violação do princípio da igualdade. Daí a razão de dever ser, nas ações coletivas lato sensu, concedida maior liberdade ao Réu, vinculando o juiz tão-somente ao expressamente alegado e provado por este, haja vista sua condição econômico-financeiro de relevo, em uma tentativa de real concreção do princípio da igualdade material.
3.2. NE EAT JUDEX ULTRA PETITA PARTIUM
Por derivação ainda do princípio em estudo, é tradicional a máxima segundo a qual o juiz deve decidir nos limites exatos daquilo que foi pedido, ou seja, está limitado à apreciação daquilo que foi trazido em juízo pelas partes. (25)
Insta ressaltar que, no que concerne às ações individuais, torna-se cristalina a presença da ideologia liberal burguesa neste óbice à atividade judicial, visto que, uma vez que o indivíduo é livre para demandar o que quiser e quanto quiser, a atividade jurisdicional ficará limitada qualitativa e quantitativamente ao pedido.
Sem sombra de dúvida, tal raciocínio tem suas bases, como dito, no sistema liberal burguês onde a liberdade sobrepunha-se sobre os demais valores, precipuamente sobre o da igualdade.
Não é outra a conclusão de Celso Agrícola Barbi:
A lide, mesmo no sentido sociológico com que a configura Carnelutti, apresenta-se no processo em limites fixados pela parte. Isto é, mesmo que a lide, como entidade sociológica, fora do processo, tenha determinada extensão, ela pode ser apresentada apenas parcialmente no processo. E é nesses limites em que ela foi trazida ao juiz que este deve exercer a sua atividade.
Em outras palavras, o conflito de interesses que surgir entre duas pessoas será decidido pelo juiz não totalmente, mas apenas nos limites em que elas o levarem ao processo. Usando a fórmula antiga, significa o artigo que o juiz não deve julgar além do pedido das partes: ne eat judex ultra petita partium.
Esse brocardo se aplica com maior rigor, quando se tratar dos limites postos pelo pedido do autor, os quais nunca podem ser ultrapassados. E, do mesmo modo que não deve decidir mais do que o autor pediu, o juiz também não lhe pode conceder coisa diferente da que foi pedida, isto é, não pode decidir fora do pedido. (26)
Em outras palavras, é possível inferir da lição que, a despeito de sociologicamente o conflito de interesses ter âmbito bem mais lato, o juiz ficará adstrito à dimensão apresentada pelas partes, mormente pelo autor.
Da mesma forma, Piero Calamandrei:
Outro aspecto desta contraposição entre a iniciativa de parte e a iniciativa oficial se refere à delimitação do thema decidendum, e à procura dos meios de – Princípio dispositivo e princípio inquisitório – investigação necessários para a decisão do mérito: a este respeito se fala, com maior propriedade, de princípio dispositivo, quando a determinação do tema da causa e a coleta do material de decisão se deixam ao poder de disposição das partes,... (27)
Diferentemente do que ocorria na Rússia socialista, segundo René David, citado por Cappelletti:
Os tribunais civis requeridos pelas partes ou pelo Ministério Público não se limitam a ouvir os argumentos das partes e a decidir sobre suas demandas; conhecem o conjunto do negócio, que se esforçam em esclarecer em benefício das partes, e podem, inclusive, se for o caso, decidir ultra petita. (28)
Entretanto, com o advento do Estado Social – meio termo entre a desigualdade liberal-burguesa e o totalitarismo socialista-marxista, onde, aceitando-se o modo de produção capitalista, releva de importância os interesses sociais em detrimento do individual e do público – forçoso admitir que, hodiernamente, somente poderão incidir tais limites no seio das ações individuais, e mesmo assim, se se tratar, no bojo destas, da proteção de interesses ou direitos da mesma espécie, ou seja, individuais e disponíveis.
Isto porque, ao limitar o campo de conhecimento do juiz àquilo que efetivamente foi trazido ao processo pelas partes, a Lei Processual geral pátria (CPC), como de resto, as do mundo ocidental, deverá ser interpretada de modo que somente seja aplicada, no particular, aos casos de proteção de direitos individuais, ou seja, direitos que, além de ter como titular um indivíduo, somente a este interesse o exercício da função jurisdicional.
Ao revés, tratando-se de demandas coletivas lato sensu (29), onde o interesse objeto do conflito toca à sociedade, como um todo indivisível, a um grupo determinável ou determinado de pessoas de forma indivisível ou a interesses divisíveis que pela relevância social interessa a boa parte da sociedade, o juiz não poderá ficar limitado a partes do conflito, notadamente aquelas trazidas a juízo.
Porquanto, como vimos na primeira parte do trabalho, os interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos – em uma palavra: os interesses meta e transindividuais – referem-se, desenganadamente, ao ressurgimento dos grupos sociais intermediários, acentuado por Frias, antes dizimados pelo método da atomização à época da Revolução francesa.
Daí por que ser, hodiernamente, o direito processual clássico, estampado no CPC pátrio, via estreita para a realização dos interesses sociais, sucumbindo à parcial visão, por parte do Juiz, do conflito de interesses existente.
No Estado Social urge a aparição de um processo civil democrático no sentido de que as preocupações sociais levadas a juízo deixem de ser somente mais um litígio entre estranhos que possua um mero espectador da disputa, aguardando para, de forma lógico-dedutivista, dizer quem tem razão. (30)
Se tais assertivas são corretas já para as ações de cunho individual, com maior razão poderá se afirmar das ações coletivas.
Dessa forma, vislumbramos que o limite imposto à atividade de conhecimento judicial nas ações individuais – por força da natureza do direito material (disponível) – dará ensejo à uma revisão de tais conceitos no concernente às ações coletivas. Isto porque, se certo é que a natureza de disponibilidade do direito material implicará em limites ao conhecimento judicial exatamente porque o juiz não pode se imiscuir na vida privada – considerado o indivíduo como entidade absoluta – a aparição de novos direitos – desta feita, sociais – cuja titularidade se espraia por toda uma comunidade, sendo de difícil ou quase impossível a sua individuação, com âmbito de abrangência alargado, cuja importância para o convívio social extrapola e muito o mundo individual, tornará aqueles limites judiciais inexistentes – o que seria ideal – ou, quando menos, mitigado à razão da importância e densidade da res in iudicium deducta.
Destarte, o espectro de conhecimento judicial em sede de ações coletivas deverá ser ilimitado, tendo por escopo o domínio intelectual de todos os aspectos envolvidos na demanda, mormente aqueles deduzidos da causa não expostos pelas partes, à símile do que ocorre nos países da família socialista.
René David, citado por Mauro Cappelletti, atine que:
os tribunais civis requeridos pelas partes ou pelo Ministério Público não se limitam a ouvir os argumentos das partes e a decidir sobre suas demandas; conhecem o conjunto do negócio, que se esforçam em esclarecer em benefício das partes, e podem, inclusive, se for o caso, decidir ultra petita. (31)
Como dito, impõe-se um redimensionamento aos limites impostos às atividades de conhecimento judiciais em virtude da natureza do direito material subjacente, nas ações de massa.
Asseveramos, portanto, que, uma vez surgido dos grupos sociais subjacentes ao poder oficial um novo direito, com a mitigação da importância do indivíduo como pólo de concentração de todos interesses; ampliada que seja a preocupação estatal em proteger interesses dos débeis com franquia legal de instrumentos jurídicos protetivos; a recuperação desses interesses antes direcionados ao limbo jurídico, é mister a sua categorização em demandas coletivas para que, havendo relevância social, seja aberta ao juiz maior possibilidade de conhecimento das relações jurídicas conflituosas, mesmo aquelas não trazidas pelas partes, mas deduzidas das circunstâncias fáticas e jurídicas, impondo-se tal conduta como um dever jurídico ao magistrado.
Via de conseqüência, a importância social do objeto litigioso trazido a juízo deverá suplantar o poder das partes de discutirem tão-somente o que lhes interessa, visto que, em razão de tal importância, a res in iudicium deducta extrapola os limites de propriedade dos contendores, espraiando-se por toda sociedade, impondo-se, dessarte, o privilegiamento do interesse social na demanda em detrimento aos interesses egoísticos dos sujeitos da relação jurídica processual, tendo tal raciocínio por corolário a possibilidade dada ao Juiz de prolatar decisões cujo alcance fique além do controvertido pelas partes, ou seja, o julgamento ultra-petita.