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Territorialidade e territorialização na elaboração de laudos antropológicos

Agenda 25/03/2016 às 20:45

Busca-se neste artigo definir os conceitos de territorialidade e territorialização e sua aplicação no processo de elaboração de Laudos Antropológicos para a regularização fundiária quilombola.

Territorialidade e Territorialização

Na busca pela legitimação da identidade negra, as comunidades quilombolas constroem seu território associando memória e identidade, buscando reforçar vínculos históricos que ressaltem sua especificidade enquanto grupo (FERREIRA, 2008). Neste sentido, a construção da territorialidade não pode ser entendida dissociada do seu caráter político, conformando um processo de territorialização (OLIVEIRA, 1993).

Na literatura antropológica, os conceitos de território e territorialização se diferenciam pelo caráter sócio-político presentes nos conceitos. O território está vinculado à terra enquanto meio de reprodução social do grupo. Desta maneira, elementos como formas de ocupação, reprodução, expropriação, características do solo, contornos e limites, ou seja, os caracteres físicos definem o vínculo direto entre comunidade e área ocupada, conformando sua identidade. No processo de territorialização, verifica-se que:

A população toma como estratégia política o fato de se representarem como uma comunidade etnicamente diferenciada dentro do Estado-nação e um conjunto de indivíduos inseridos em um grupo geograficamente delimitado e legitimado por uma ancestralidade encontrada na memória social, em busca por direitos étnicos renegados no passado. A construção dessa territorialização se dá, portanto, nessas diversas formas de organização e reorganização sócio-culturais dos membros desse grupo, tomando-as enquanto mecanismos políticos de luta pelo território. (FERREIRA, 2008, p. 121)

Ou seja, no processo de territorialização ocorre a busca pela garantia do território. É um processo mais amplo, conforme se pode também evidenciar em Leite (2000, p. 344-345):

Quer dizer: a terra, base geográfica, está posta como condição de fixação, mas não como condição exclusiva para a existência do grupo. A terra é o que propicia condições de permanência, de continuidade das referências simbólicas importantes à consolidação do imaginário coletivo, e os grupos chegam por vezes a projetar nela sua existência, mas, inclusive, não têm com ela uma dependência exclusiva. Tanto é assim que temos hoje inúmeros exemplos de grupos que perderam a terra e insistem em manter-se como grupo, como o caso do Paiol de Telha, no Paraná. Trata-se, portanto, de um direito remetido à organização social, diretamente relacionado à herança, baseada no parentesco; à história, baseada na reciprocidade e na memória coletiva; e ao fenótipo, como um princípio gerador de identificação, onde o casamento preferencial atua como um valor operativo no interior do grupo.

O reconhecimento do direito à terra (território) aos remanescentes das comunidades quilombolas mediante o Art. 68/CF reflete o processo de conscientização do caráter pluriétnico do Estado brasileiro, garantindo a reparação histórica pleiteada pelas comunidades agora consideradas como grupo étnico-racial. Esse reconhecimento contempla não somente a luta pelo território como deixa claro o movimento de territorialização quando, no Decreto que regulamenta o artigo constitucional, afirma que “Para a medição e demarcação das terras, serão levados em consideração critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades dos quilombos (...)” (Art. 2°, § 3°, Decreto Nº 4.887/2003)

Aplicação dos conceitos de territorialidade e territorialização no Laudo Antropológico

Uma comunidade, segundo Firth (1974), se caracteriza por um conjunto de indivíduos que possuem vínculos em comum e convivem de forma que os objetivos de um membro se encontram com os objetivos dos demais integrantes do grupo, o que gera uma rede de ações conjuntas e orientadas para o coletivo. Estas relações recíprocas, ainda segundo o autor, ocorrem num espaço compartilhado que agrega e reforça os laços de comunhão pelo contato cotidiano. No caso das comunidades quilombolas esse espaço se constitui como uma de “territorialidade específica” como resultado “dos diferentes processos sociais de territorialização, delimitando dinamicamente terras de pertencimento coletivo que convergem para um território” (ALMEIDA, 2011). O Relatório Antropológico busca então identificar os processos sociais de territorialização para, ao final do estudo, propor um território.

Desta maneira, dois movimentos se fazem necessários: a) identificar o território levando em considerações os critérios de territorialidade; b) associar essa identificação com os elementos que estão vinculados ao processo de territorialização, ou seja, estudar a comunidade enquanto um grupo que busca reconhecimento de seu direito. A territorialização possui um caráter subjetivo; elementos como memória, processos históricos, mitos de origem, critérios de pertencimento, entre outros, buscam construir um território que possui valor simbólico de reafirmação do grupo enquanto portador de uma identidade que almeja ser preservada e reproduzida. Neste momento, a comunidade deve ser escutada; seus anseios devem ser levados em consideração e sua reivindicação é o evento desencadeante do processo de regularização fundiária.

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Contudo, a definição do território obedece a parâmetros majoritariamente objetivos, que se materializam nos métodos e técnicas do trabalho antropológico, normatizados pela legislação em vigor. É o que especifica Luís R. Cardoso de Oliveira (2007, p. 15) quando numa reflexão sobre Laudos Antropológicos: 

A observação desses princípios não significa que os antropólogos tomam acriticamente o que dizem os sujeitos da
pesquisa ou dos laudos periciais. Nossos laudos e monografias procuram reproduzir apenas o que somos capazes de
fundamentar à luz das teorias e dos instrumentos de produção de verdade de nossa disciplina. Como tem sido argumentado por vários colegas, no que concerne aos laudos periciais sobre território, o objetivo é compreender a relação do grupo em tela com a área que ocupa, assim como expressa em sua organiza-
ção social, em sua visão de mundo e em
suas praticas culturais.

A Instrução Normativa N° 57/INCRA/2009, ao definir os parâmetros de elaboração do Relatório Antropológico, elenca como elementos necessários a constituição do mesmo o histórico da ocupação e a organização social. Assim, por esses meios, se verifica o quadro no qual se localiza a comunidade com o território pleiteado, buscando evidências que afirmem ou contrariem a proposta inicial da comunidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, A. W. B. de. Quilombos e as novas etnias. Manaus: UEA Edições, 2011.

BRASIL. Decreto n° 4.887, 2003.

CARDOSO DE OLIVEIRA, L. R. Antropologia e Laudos Periciais. Correio Braziliense, Brasília: 2007.

FERREIRA, F. M. G. Serrote do gado brabo: identidade, territorialidade e migrações em uma comunidade remanescente de quilombos. Dissertação (mestrado), Universidade Federal de Pernambuco, CFCH, 2008

FIRTH, R. Elementos de organização social. Rio de Janeiro: Zahar, 1974.

INCRA. Instrução Normativa n° 57, 2009.

LEITE, I. B. Os quilombos no Brasil: questões conceituais e normativas. Etnográfica, Vol. IV(2), 2000.

OLIVEIRA, J. F. P. de. “A viagem da volta: reelaboração cultural e horizonte dos povos políticos do nordeste”. In: Atlas das Terras Políticas do Nordeste. Rio de Janeiro: Museu Nacional, 1993.

Sobre o autor
Leone de Araújo Rocha

Graduado em Ciências Sociais, Bacharelado e Licenciatura, pela Universidade Federal do Amapá (2010). Especialista em Ciência Política pelo Instituto Brasileiro de Pesquisa e Extensão (2012). Mestrado Profissional em Estudos de Fronteira também pela Universidade Federal do Amapá (2020). Foi professor efetivo de Sociologia do Governo do Estado do Amapá (2013-2019). Atualmente é Antropólogo do INCRA-AP onde atua no serviço de regularização fundiária quilombola. Áreas de interesse: Antropologia do Direito, Estudos de Fronteira, Comunidades Quilombolas e Antropologia Econômica.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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