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Empresa Agrária na Legislação Brasileira

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Agenda 27/03/2016 às 19:32

Este artigo tem o escopo de analisar os requisitos para a conformação da empresa agrária na legislação brasileira.

EMPRESA AGRÁRIA NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

 

Frederico Garcia Pinheiro[1]

 

Sumário: 1 – Introdução. 2 – Teorias clássicas sobre a atividade agrária. 3 – Atividade agrária na legislação brasileira. 4 – Empresa agrária: a “atividade rural” como principal profissão. 5 – Empresa agrária, agronegócio e agroindústria. 6 – Empresa agrária e a empresa rural no Estatuto da Terra. 7 – Conclusão. 8 – Bibliografia.

 

Resumo: Este artigo tem o escopo de analisar os requisitos para a conformação da empresa agrária na legislação brasileira.

 

Palavras-chave: Atividade agrária. Empresa agrária. Atividade rural. Empresa rural. Agronegócio. Agroindústria,

 

1. INTRODUÇÃO

 

              Seguindo as lições de Waldírio Bulgarelli, expostas na clássica obra Teoria Jurídica da Empresa: análise crítica da empresarialidade, publicada em 1985, e que continuam atuais, a acepção funcional da empresa é aquela que melhor se relaciona com as demais categorias jurídicas que envolvem e integram o fenômeno denominado empresarialidade.

              Considerada como uma especial atividade (econômica, organizada, profissional e destinada à produção ou circulação de bens ou serviços para o mercado), a empresa não será confundida com o sujeito que a exerce (o empresário), nem com os bens organizados para instrumentalizar o seu exercício (o estabelecimento). Essa foi a idéia adotada pelo atual Código Civil brasileiro (Lei 10.406/2002), facilmente detectada pela análise conjunta dos seus arts. 966 e 1.142.

              Empresa-atividade, empresário e estabelecimento têm conceitos jurídicos e funções jurídicas específicas e não devem ser confundidos entre si, sob pena de haver prejuízo para a segurança jurídico-metodológica.

              Nessa toada, é possível afirmar que a empresarialidade agrária engloba três fenômenos jurídicos inter-relacionados: a empresa agrária, o empresário agrário e o estabelecimento agrário. Todos eles têm em comum o fato de vincularem-se ao exercício de alguma atividade agrária, principalmente porque a empresa agrária é uma atividade agrária propriamente dita que preenche outros pressupostos.[2]

              Os arts. 971 e 984 do atual Código Civil brasileiro trataram de modo distinto a empresarialidade agrária, razão pela qual se faz mister aferir quais os contornos e limites da atividade que qualifica a empresa agrária e, conseqüentemente, o empresário e o estabelecimento agrários – eis o foco de estudo do presente artigo.

 

2. Teorias clássicas sobre a atividade agrária

 

              Apesar de a definição normativa ser dependente das disposições de dado ordenamento jurídico, existem três principais teorias clássicas que buscam justificar, em abstrato e genericamente, quais são as atividades que, diante de suas peculiaridades, devem ser classificadas como atividades agrárias. Ao longo do desenvolvimento do Direito Agrário surgiram diversas teorias sobre a delimitação das atividades agrárias, porém as teorias clássicas são as três que ganharam maior repercussão doutrinária e que serão doravante apresentadas.

              Primeiramente, o argentino Rodolfo Ricardo Carrera desenvolveu a teoria agrobiológica como critério identificador da atividade agrária. Para tanto, contou com o auxílio do engenheiro agrônomo Andrés Ringuelet, para realizar “uma feliz simbiose do agronômico com o jurídico”,[3] bem como do economista mexicano Gilberto Fabila. Dessa forma, Rodolfo Ricardo Carrera[4] considerou imprescindível o estudo e a utilização de critérios extrajurídicos para definir a atividade agrária, pois são “as leis biológicas, agronômicas e da economia agrária que dão a esta atividade características específicas, e ao Direito Agrário a razão de sua existência como disciplina jurídica autônoma”.[5]

              De acordo com a teoria agrobiológica, em síntese, o elemento diferenciador contido na atividade agrária é, principalmente, a submissão de tal atividade ao processo agrobiológico,[6] iniciado pelo trabalho humano e incidente sobre a terra. Nesse sentido, Rodolfo Ricardo Carrera expôs sua inovadora teoria:

 

O elemento constitutivo essencial do Direito Agrário, temos dito, é a atividade agrária que, segundo Fabila, é uma indústria genética perfeitamente diferenciada das outras indústrias de extração, de transformação ou de serviço. É indispensável, conseqüentemente, para definir o Direito Agrário, caracterizar essa indústria genética que lhe dá origem; assim, temos estabelecido que nesta atividade concorrem sempre, para lhe dar características próprias, fatores que não aparecem nas outras atividades e que são, precisamente, os que lhe dão especificidade. Esses fatores constitutivos são primordialmente dois, que em termos gerais podem ser compreendidos nos valores de natureza e vida, e que na nossa matéria correspondem à terra e ao processo agrobiológico. Ao lado desses elementos, concorrem uma séria de outros fatores e etapas de desenvolvimento e, até mesmo, leis biológicas que também caracterizam e definem a atividade agrária; eles são o clima, com suas variantes de chuva, seca, granizo, inundação, irrigação, estações etc., e os próprios da agricultura, como claridade, sombra, germinação, crescimento e maduração, com os próprios da pecuária, fecundação, nascimento, cria, em todos os quais devem computar-se prazos e períodos biológicos.[7]

 

              Partindo das lições cunhadas por Rodolfo Ricardo Carrera, baseadas em dados extra-jurídicos, o italiano Antonio Carrozza, posteriormente, desenvolveu estudos jurídicos e extra-jurídicos que resultaram na adição de mais uma característica imprescindível à atividade agrária: sujeição aos naturais riscos técnico-econômicos da agropecuária. Dessa forma, Antonio Carrozza deu origem à teoria agrobiológica da agrariedade ou, simplesmente, teoria da agrariedade,[8] como se tem preferido denominar na doutrina, e que pode ser assim resumida, in verbis:

 

A atividade produtiva agrícola consistente no desenvolvimento de um ciclo biológico, vegetal ou animal, ligado direta ou indiretamente ao desfrute das forças e dos recursos naturais e que se resolve economicamente na obtenção de frutos, vegetais ou animais, destinados ao consumo direto como tais, ou submetidos a uma ou múltiplas transformações.[9]

 

              Em outras palavras, Antonio Carrozza definiu a atividade agrária como sendo aquela que, de um lado, tem de se curvar ao ciclo natural do processo agrobiológico e, de outro, conseqüentemente, também está sujeita aos naturais riscos técnico-econômicos decorrentes, que não podem ser totalmente previstos e controlados mediante a intervenção humana,[10] em que pese esta ser imprescindível para que tenha início o referido processo agrobiológico.[11] Outrossim, a submissão a riscos econômicos específicos decorre do direcionamento da produção agrária para o mercado consumidor em geral.

              A teoria da agrariedade de Antonio Carrozza também difere da teoria agrobiológica de Rodolfo Ricardo Carrera porque não exige a imprescindibilidade da terra, como meio para que se desenvolva o processo agrobiológico – evolução evidente. Pela teoria da agrariedade, é reconhecida como atividade agrária qualquer meio de reprodução animal ou vegetal, mesmo que desenvolvido em ambiente artificial ou sem necessidade de dependência de determinada porção de terra produtiva, por exemplo, como ocorre na piscicultura, na hidroponia, na aeroponia, na criação de embriões in vitro, bem como em diversas formas de criação intensiva de animais de pequeno porte.[12]

              Por seu turno, o argentino Antonino C. Vivanco desenvolveu estudos visando sistematizar as atividades não-agrárias que deveriam se agregar às atividades materialmente agrárias, quando houvesse ligação inevitável entre elas. Dessa forma, com a teoria da acessoriedade, o âmbito de atividades agrárias pôde ser cientificamente alargado, de modo a englobar atividades acessórias que, se exercidas autonomamente, não seriam agrárias.

              Antonino C. Vivanco inicia sua teoria reconhecendo que o exercício da atividade agrária faz aparecer duas ordens de relações jurídicas: relações entre o homem e a reprodução agrobiológica, bem como relações entre os homens que atuam paralelamente à referida reprodução agrobiológica. Destaque-se que Antonino C. Vivanco, provavelmente influenciado pela doutrina do seu contemporâneo e também argentino Rodolfo Ricardo Carrera, dá a entender que a terra seria imprescindível para a existência do processo de reprodução agrobiológica, senão veja-se:

 

A atividade agrária constitui uma forma de atividade humana destinada a viabilizar a produção da natureza orgânica, de vegetais e animais, com o fim de aproveitar seus frutos e produtos. Dita atividade gera relações entre o homem e a terra, bem como entre os mesmos homens que atuam em qualquer produção agrocupecuária. O primeiro tipo de relação implica no trabalho da terra (latu sensu); o segundo envolve a co-participação ativa daqueles que atuam em trabalhos vinculados com a produção agropecuária, em qualquer de suas forma ou modalidades.[13]

 

              Assim, reconhece Antonino C. Vivanco que as relações que emergem da atividade agrária são de ordem econômica e social, as primeiras com vistas à produtividade agrária, as segundas levam em conta o tratamento especial da pessoa que se dedica ao exercício da atividade agrária no meio rural, haja vista a sua peculiar circunstância.[14]

              Analisando as diversas relações jurídicas que nascem da atividade agrária, Antonino C. Vivanco apresenta alguns critérios para estabelecer os limites entre o que seja atividade agrária em contraposição com as atividades industriais e comerciais. Porém, após refutar os critérios da necessidade, da prevalência, da autonomia, da normalidade e da ruralidade, Antonino C. Vivanco opta por eleger o critério da acessoriedade como o mais adequado para o mister de definição dos limites da atividade agrária, in verbis:

 

Para definir com precisão o limite entre a atividade agrária e a atividade industrial e comercial, é preciso adotar algum dos critérios enumerados. O mais claro e concludente resulta no da acessoriedade. Com efeito, a atividade agrária produtiva deve ser a que desempenha o papel principal dentro do âmbito agrário, enquanto as atividades transformadoras e comerciais constituem o acessório ou complemento daquela. Quando deixam de sê-lo e passam a desempenhar o papel fundamental, deixam de ser agrárias, para transformar-se em industriais ou comerciais.[15]

 

              Aduz Antonino C. Vivanco que a submissão de atividades industriais e comerciais à regulamentação do Direito Agrário, em virtude da conexão de acessoriedade daquelas para com as atividades agrárias principais, tem grande importância, haja vista que o produtor agrário é extremamente dependente de um mercado com peculiaridades e tendências deveras imprevisíveis e mutantes.

              Sendo assim, Antonino C. Vivanco justifica a necessidade de submissão de atividades industriais e comerciais acessórias ao mesmo regulamento da atividade agrária principal, visando propiciar uma regulação harmônica e coordenada em todo o processo agropecuário, in verbis:

 

O assunto assume uma grande importância quando se observa que a comercialização e sua regulação jurídica (pública ou privada) exerce uma influência notável na atividade produtiva. De modo análogo sucede com a atividade transformadora. Isso se deve ao fato de o produtor cultivar os vegetais ou criar os animais cujos frutos lhe asseguram um ganho junto ao mercado, de maneira que quando, por algum motivo, se perturba a comercialização, os efeitos se deixam sentir de imediato na órbita produtiva. Se um produto agropecuário deixa de interessar às indústrias transformadoras, a demanda do produto reduz e seu preço abaixa. Isso desestimula o agricultor ou o pecuarista. É por esse motivo que a regulação jurídica da atividade agrária deve incluir em seu conteúdo as atividades conexas com o cultivo da terra, a fim de lograr uma regulação harmônica e coordenada, segundo princípios próprios e aplicáveis a todo o processo agropecuário (produtivo, transformador e comercial).[16]

 

              Diante das três teorias clássicas acerca da atividade agrária, pode-se concluir que o melhor é compatibilizá-las. Assim sendo, teorica e abstratamente, atividade agrária seria aquela atividade de cultivo de vegetais ou criação de animais, dependente diretamente do ciclo biológico, iniciado por força da intervenção humana, mas cujos resultados não são totalmente controlados pelo homem; outrossim, também se inclui no conceito de atividade agrária todas as demais atividades que, desempenhadas pelo mesmo sujeito, são acessórias e vinculadas à atividade materialmente agrária (atividade principal).

              Contudo, na prática, o que prevalece é a definição normativa de atividade agrária, servindo as teorias clássicas como norte teórico prévio (antes da edição dos dispositivos normativos) e norte interpretativo (após a vigência dos dispositivos normativos), mormente porque “normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos”.[17] Destarte, mister se faz analisar o ordenamento jurídico brasileiro para aferir quais atividades são consideradas como atividades agrárias e recebem, assim, tratamento jurídico especial, na maioria das vezes advindo da submissão ao regime jurídico do Direito Agrário.

 

3. Atividade agrária na legislação brasileira

 

              No direito brasileiro há menção indireta às atividades agrárias na definição legal de imóvel rural (ou melhor: imóvel agrário[18]), contida no inc. I do art. 4º do Estatuto da Terra (Lei 4.504/64),[19] cuja redação foi levemente retocada e melhorada no inc. I do art. 4º, mas da Lei 8.629/93.[20] Segundo os referidos dispositivos legais, para que determinado imóvel seja considerado um imóvel agrário, independentemente de sua localização,[21] necessário se faz que nele sejam exercidas, pelo menos potencialmente, as seguintes atividades agrárias: agricultura, pecuária, extrativismo vegetal e agroindústria. Independentemente da sua localização, é considerado imóvel rural aquele que tem vocação para servir de suporte ao desempenho de alguma atividade agrária.

              Destaque-se que, para fins de incidência do Imposto Territorial Rural – ITR, o §2º do art. 1º da Lei 9.393/96, na esteira da idéia contida no art. 29 do Código Tributário Nacional – CTN (Lei 5.172/66), adota definição distinta de imóvel rural, que não leva em conta a atividade que nele é exercida, mas sim a sua localização. Entretanto, a jurisprudência tem admitido, excepcionalmente, a incidência de ITR quando o imóvel, ainda que localizado em zona urbana, for destinado à exploração de alguma atividade agrária.[22]

              Voltando à análise do conceito de imóvel rural (ou imóvel agrário) do Estatuto da Terra, praticamente repetido na Lei 8.629/93, perceba-se que nele foram elencadas, além das atividades materialmente agrárias, ligadas à agricultura e pecuária,[23] também o extrativismo vegetal e a atividade agro-industrial.

              Quanto ao extrativismo vegetal, mister se faz destacar que somente é considerado atividade agrária por força de previsão expressa em lei, haja vista que inexiste necessária intervenção humana no ciclo biológico que resulta nos produtos vegetais extraídos. Essa observação, contudo, não se faz necessária quando se trata de silvicultura, isto é, plantio e cultivo de espécies nativas para fins de extração e comercialização futura de produtos por elas gerados.[24]

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              Outrossim, no que tange à atividade agro-industrial, há que se tomar cuidado com eventual interpretação literal que leve ao absurdo de se considerar como atividade agrária toda e qualquer atividade industrial que esteja ligada ou exista em função do setor primário da economia.

              Com efeito, os dispositivos legais sub examinem, apesar de fazerem menção genérica à atividade agroindustrial, tiveram o escopo estrito de que tal atividade fosse considerada atividade agrária tão-somente quando desempenhada acessoriamente com relação a alguma outra atividade agrária principal prevista nos mesmos dispositivos legais (agricultura, pecuária ou extrativismo vegetal) e desde que o mesmo sujeito fosse encarregado de exercer ambas atividades (principal e acessória).[25] Teleologicamente, essa é a interpretação restritiva que deve ser conferida, de modo a apenas qualificar como atividade agrária as explorações agroindustriais que sejam acessórias, mormente porque a interpretação jurídica não pode conduzir a conclusões absurdas,[26] como seria o caso de reputar agrária qualquer atividade industrial simplesmente por utilizar matéria-prima de origem vegetal ou animal.

              Dessa forma, “a atividade agroindustrial só será agrária na preponderância da atividade agrária sobre a industrial, de transformação dos produtos, dentro da unidade produtora”,[27] aplicando-se aqui interpretação baseada na clássica teoria da acessoriedade, cujo estudo foi desenvolvido pelo argentino Antonino C. Vivanco.

              Contudo, como se disse, o Estatuto da Terra (Lei 4.504/64) e a Lei 8.629/93 buscaram conceituar legalmente o imóvel agrário e, assim, mencionaram algumas atividades agrárias apenas indiretamente.

              Também elencando atividades agrárias de forma indireta, há o art. 3º da Lei 11.326/2006,[28] que conceituou o agricultor familiar e empreendedor familiar rural, beneficiários de políticas públicas reguladas por aquele diploma legal. O agricultor familiar e o empreendedor familiar rural são pessoas economicamente hipossuficientes e que desempenham atividades agrárias por conta própria, isto é, sem subordinação. Para aferir a referida hipossuficiência econômica, o art. 3º da Lei 11.326/2006 apresenta diversos requisitos e, dentre eles, elenca taxativamente determinadas atividades.

              Por seu turno, relacionando atividades agrárias de forma direta, há o art. 2º da Lei 8.023/90 e o art. 1º da Lei 8.171/91.[29] Esse último dispositivo legal, porém, conceituou a atividade agrária (chamada de atividade agrícola) tão somente para os fins da própria Lei 8.171/91, isto é, com serventia exclusiva para questões envolvendo política agrícola.

              Já a conceituação de atividade agrária do art. 2º da Lei 8.023/90 (nominada de atividade rural) é genérica, sendo aplicável a diversas outras situações, além de servir para fins de aferição do âmbito de incidência do regime diferenciado de apuração e pagamento do imposto de renda com relação às atividades agrárias principais – objeto tributário geral da Lei 8.023/90.

              Perceba-se que o legislador não restringiu a amplitude do conceito de atividade agrária contido no art. 2º da Lei 8.023/90, pois nele não há menção no sentido de que suas definições são exclusivas para fins tributários ou para os efeitos desta lei – esta última, a forma de restrição contida, por exemplo, no art. 4º, inc. I, do Estatuto da Terra, no art. 4º, inc. I, da Lei 8.629/93, no art. 1º da Lei 8.171/91, bem como no art. 3º da Lei 11.326/2006.

              Nesse sentido, pode-se afirmar que o art. 2º da Lei 8.023/90, com redação que lhe foi dada pela Lei 9.250/95, é o único dispositivo legal no direito brasileiro que apresenta, de maneira direta e genérica, um amplo rol de atividades agrárias, apesar de mencionar a censurável expressão atividade rural, em vez de atividade agrária, senão veja-se:

Art. 2º Considera-se atividade rural:

I - a agricultura;

II - a pecuária;

III - a extração e a exploração vegetal e animal;

IV - a exploração da apicultura, avicultura, cunicultura, suinocultura, sericicultura, piscicultura e outras culturas animais;

V - a transformação de produtos decorrentes da atividade rural, sem que sejam alteradas a composição e as características do produto in natura, feita pelo próprio agricultor ou criador, com equipamentos e utensílios usualmente empregados nas atividades rurais, utilizando exclusivamente matéria-prima produzida na área rural explorada, tais como a pasteurização e o acondicionamento do leite, assim como o mel e o suco de laranja, acondicionados em embalagem de apresentação.

Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica à mera intermediação de animais e de produtos agrícolas.

 

              Analisando o art. 2º da Lei 8.023/90, infere-se que há discriminação minuciosa do rol das atividades agrárias principais, ligadas ao setor primário da economia, mas não se previu a agroindústria (setor secundário da economia[30]) ou outras atividades agrárias acessórias, relacionada com o transporte e o comércio (setor terciário da economia[31]).

              Destaque-se que, quanto às atividades agrárias principais, o art. 2º da Lei 8.023/90 não se ateve somente àquelas que dependem de um imóvel com vocação agrária, que seja fornecedor de terra fértil, para serem exercidas. Houve previsão também das atividades de extrativismo animal, a exemplo da caça e da pesca (inc. III) e, ainda, de toda e qualquer espécie de criação e cultura de animais (inc. IV), como a apicultura, a avicultura, a cunicultura, a suinocultura, a sericultura, a piscicultura etc.

              Nitidamente, o art. 2º da Lei 8.023/90 tomou por base a teoria da agrariedade do italiano Antonio Carrozza, considerando como atividade agrária a produção que depende de um ciclo biológico levado a cabo pela intervenção humana, intervenção esta que, contudo, não é capaz de extirpar completamente o correlato risco natural. Ocorre que referido dispositivo legal foi além, pois admitiu que atividades extrativas, para cujo início do ciclo biológico a intervenção humana não é necessária, também fossem consideradas atividades agrárias por força de lei.

              Essa opção legislativa é louvável, haja vista que no Brasil, país de dimensões continentais, ainda há vasta cobertura vegetal natural (ao contrário da realidade verificada, por exemplo, nos países da Europa) e, socialmente, há várias famílias que tiram da extração, vegetal e animal, o seu sustento. O extrativismo vegetal e animal não é uma atividade materialmente agrária, uma vez que a intervenção humana no ciclo biológico produtivo não se faz necessária. No entanto, é uma atividade agrária por força de equiparação legal, baseada nos fatos sociais indicados. Nesse sentido, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka defende que, no Brasil, o extrativismo é uma atividade agrária principal (e não meramente acessória), ipsis litteris:

 

O extrativismo é a atividade desempenhada pelo rurícola ou extrator, consistente na simples coleta, recolhida, extração ou captura de produtos do reino animal e vegetal, espontaneamente gerados e em cujo ciclo biológico não houve intervenção humana.

[...]

Apesar de não haver uma interferência direta do homem nos momentos antecedentes à germinação ou ao nascimento, nem mesmo nos momentos subseqüentes de todo o ciclo biológico de maturação do produto ou do animal, a mera atividade de extração ou captura há de ser considerada agrária, já que se trata, de qualquer forma, de uma produção da terra, do agro de caráter indiscutivelmente rural. Em termos de Brasil, dada a sua densa cobertura florestal e, nela, a imensa gama de produtos de natureza extrativa, o exame do extrativismo ganha importância e proporção, justificando-se pelo lugar que ocupou, e ainda hoje ocupa, apesar do visível declínio, na economia nacional.[32]

 

              Mister ressaltar, ademais, a opinião de Raymundo Laranjeira, externada na conferência O Extrativismo como Atividade Agrária: sua ponte entre a tradição e a modernidade, proferida em 06/10/1992, no II Congresso Mundial de Direito Agrário, em Guanacaste – Costa Rica (não publicada), no sentido de que a inclusão legal do extrativismo, mormente do vegetal, como atividade agrária principal, somente se faz coerente nas regiões onde há vasta cobertura vegetal natural que, dada a sua concentração, admita o referido extrativismo, sem sérias implicações ambientais, in verbis:

 

É claro que o extrativismo, como atividade essencial agrária, deve ser concebido como tal somente em regiões nas quais exista um grande continuum de cobertura arbórea ou uma grande massa de vegetação natural, mais ou menos concentrada em determinados locais, posto que a conseqüente grandiosidade das reservas genéticas é que será o fator de boas perspectivas para esse tipo de atividade produtiva. Assim é que poderá ganhar foros simples de uma tarefa sobressalente no agro, sem aquela característica de simples atividade complementar, a que certa doutrina costumou relegá-la.[33]

 

              Destaque-se que o art. 59 da Lei 9.430/96[34], diretamente, também elencou como atividade rural a silvicultura ou o “cultivo de florestas que se destinem ao corte para comercialização, consumo ou industrialização”. Nesse caso, contudo, não se trata de atividade de extrativismo vegetal, mas sim de verdadeira atividade agrícola, pois há intervenção humana no ciclo biológico da vegetação florestal. Logo, a silvicultura é uma atividade materialmente agrária que já havia sido referida no inc. I do art. 2º da Lei 8.023/90 (agricultura), tendo o art. 59 da Lei 9.430/96 o escopo de tão-somente aclarar que referida atividade é igualmente uma atividade rural.

              O extrativismo mineral, em que pese ser explorado economicamente e situar-se também no setor primário da economia, corretamente, não foi considerado atividade agrária por força de lei, haja vista que os produtos minerais não são renováveis em virtude de um processo biológico. É certo que o extrativismo vegetal e animal, pelo menos, são semelhantes às atividades materialmente agrárias de cultivo de vegetais e criação de animais, em virtude do ciclo biológico existente em todas elas. No entanto, não existe tal semelhança no que tange ao extrativismo mineral de produtos não-renováveis, como ocorre no “labor da cata ou extração de minérios ou da captação de energia, como o cavucar de u’a mina em uma fazenda, ou a obtenção de eletricidade a partir duma queda d’água no imóvel”.[35]

              Outrossim, também alargando a concepção da teoria da agrariedade, o inc. V do art. 2º da Lei 8.023/90 admite o enquadramento da atividade de transformação do produto vegetal ou animal como atividade agrária principal (e não acessória, como a agroindústria). In casu, o legislador utilizou como critério o que, doutrinariamente, o economista espanhol Enrique Ballestero chama de alimentos originários e que serve para conceituar e identificar as atividades agrárias principais e, conseqüentemente, também a empresa agrária:

 

Atividade agrária (ou empresa agrária) é qualquer processo organizado, no meio rural, destinado a produzir alimentos originários e matérias-primas vegetais ou animais.

Ao analisar esta definição, encontramos uma ambigüidade que convém aclarar. O que se entende por alimentos “originários”? Sem contornos, tais alimentos são aqueles que são obtidos pelos cultivos e exploração pecuária, antes que sofram transformações artificiais ou manipulações. O leite, tal como produzido em uma granja industrial de gado bovino, é um alimento originário até que seja processado nas centrais leiteiras. Até então, é um produto agrário, ainda que provenha de uma agroindústria. Mas também se pode considerar como alimentos “originários”, por respeito à tradição, o vinho, o queijo, o azeite de oliva e outros transformados agroindustriais, que se fabricam no meio rural, ao estilo campesino e seguindo uma antiga linha de junção com a exploração da natureza.[36]

 

              Conseqüentemente, nos termos do inc. V do art. 2º da Lei 8.023/90, não configuram procedimento industrial (ou agroindustrial), mas integram o setor primário da economia: as pequenas transformações imprimidas nos produtos agrícolas e pecuários, sem lhes alterar a composição ou as características in natura, desde que feitas pelo próprio produtor agrário, valendo-se para tanto, no máximo, de equipamentos e utensílios usualmente empregados nas atividades agrárias, com utilização exclusiva de matéria-prima oriunda do mesmo estabelecimento agrário, tais como na pasteurização e no acondicionamento do leite, assim como do mel e do suco de laranja, acondicionados em embalagem de apresentação.[37]

              Apesar de óbvio, o parágrafo único do art. 2º da Lei 8.023/90 ainda esclarece que a mera intermediação de produtos de origem agrícola ou animal não constitui atividade agrária principal, haja vista que tal atividade é tipicamente comercial. In casu, não há produção agrária, mas tão-somente especulação sobre produtos agrários.

 

4. Empresa agrária: a “atividade rural” como principal profissão

 

              No direito brasileiro, o art. 971 do Código Civil é o cerne organizativo da empresa agrária e foi inspirado no § 3 do Código de Comércio alemão de 1897 (Handelsgesetzbuch – HGB). Referido art. 971 confere tratamento sui generis àquele que exerce empresa agrária, já que sua submissão ou não ao regime do Direito de Empresa brasileiro é facultativa. A mesma faculdade é conferida às sociedades empresárias pelo art. 984, também do Código Civil. Contudo, tais dispositivos do Código Civil brasileiro diferenciam-se do dispositivo alemão porque não trazem listadas as atividades principais que qualificam a empresa como sendo agrária.

              Como se viu, o art. 2º da Lei 8.023/90 é o único dispositivo na legislação brasileira que apresenta uma definição direta e genérica das atividades agrárias (apesar da referência à atividade rural) e, dessa forma, impõe interpretação legislativa ou autêntica[38] da expressão atividade rural do art. 971 do Código Civil.

               É que o art. 971 do Código Civil brasileiro deixou em aberto a conceituação do que seja atividade rural, bem como principal profissão. Não raro, ambas expressões vêm recebendo interpretações sem cientificidade, uma vez que muitos são os doutrinadores que sequer enfrentam a questão do real significado jurídico de tais expressões.[39]

              Com relação à expressão atividade rural, esta não pode ser interpretada gramaticalmente, sob pena de se chegar à absurda conclusão de que determinada empresa, pelo simples fato de ter seu estabelecimento situado no perímetro rural (não-urbano), receberia tratamento jurídico distinto, haja vista que o adjetivo rural traz a idéia de localidade não-urbana, não se referindo propriamente à atividade desenvolvida no estabelecimento.

              Como é a atividade agrária, de per si, o fator diferencial da empresa agrária, independentemente do local do seu exercício (pode ser exercida também no perímetro urbano, ainda que tradicional e majoritariamente seja exercida na zona rural), há que se afastar a interpretação gramatical da expressão atividade rural, pois o legislador objetivou, sem sombra de dúvida, referir-se à atividade agrária tendo em vista as suas peculiaridades, principalmente a submissão ao ciclo biológico e ao correlato risco econômico.

              De mais a mais, tudo indica que o legislador optou pela expressão atividade rural visando facilitar a sua interpretação, haja vista que o art. 2º da Lei 8.023/90 já havia se encarregado de elencar, bem antes da vigência do Código Civil, todas as atividades agrárias principais admitidas pelo ordenamento jurídico brasileiro – e o fez como espécies do gênero atividade rural.

              Para manter a nomenclatura já difundida na legislação brasileira, mesmo sendo criticável doutrinariamente, foi que optou o legislador por utilizar a expressão atividade rural, em vez de atividade agrária. É diante dessa conjuntura legal que se pode afirmar que o art. 2º da Lei 8.023/90 é responsável por realizar uma interpretação autêntica ou legislativa da expressão atividade rural contida no art. 971 do Código Civil.

              Na maioria das vezes, a lei interpretadora é posterior à lei interpretada. Entretanto, para a configuração da interpretação autêntica ou legislativa é necessário simplesmente que a interpretação provenha do mesmo órgão que editou a lei interpretadora, bem como a interpretada. Nesse sentido, são as lições de Carlos Maximiliano, ipsis litteris:

 

A interpretação é uma só. Entretanto se lhe atribuem várias denominações conforme o órgão de que procede; ou se origina em uma fonte jurídica, o que lhe da força coativa; ou se apresenta como um produto livre da reflexão. Chamam-lhe autêntica, no primeiro caso; doutrinal no segundo. Aquela domina pela autoridade, esta pelo convencimento; uma vincula o juiz, tem a outra um valor persuasivo. Denomina-se autêntica a interpretação, quando emana do próprio poder que fez o ato cujo sentido e alcance ela declara. Portanto, só uma Assembléia Constituinte fornece a exegese obrigatória do estatuto supremo; as Câmaras, a da lei em geral, e o Executivo, dos regulamentos, avisos, instruções e portarias.[40]

 

              Logo, apesar de o Código Civil (Lei 10.406/2002) ter sido editado posteriormente à Lei 8.023/90, como o art. 2º desta última lei é taxativo ao interpretar a expressão atividade rural contida no art. 971 daquele código, dúvida não há quanto a se tratar de evidente interpretação legislativa ou autêntica. De mais a mais, essa conclusão não é cega e está de acordo com os ditames modernos do Direito Agrário – ramo jurídico que tem a empresa agrária, referida indiretamente no art. 971 do Código Civil, como sendo o seu principal instituto jurídico.

              Dessa forma, com base em interpretação legislativa ou autêntica, tem-se que a atividade agrária principal poderá ser qualquer das atividades elencadas no rol apresentado pelo art. 2º da Lei 8.023/90. Em outras palavras, salvo em virtude de expressa disposição legal, outras atividades não podem ser tidas como atividade agrária principal e, dessa forma, também não caracterizam empresa agrária, em que pese deterem eventual relevância sócio-econômica.

              In casu, há que se aplicar o princípio da legalidade estrita, de modo a somente se considerar atividade agrária principal o que for expressamente reconhecido como tal por lei. Sem edição de lei específica, não há como alargar o rol de atividade agrárias principais do art. 2º da Lei 8.023/90, haja vista que a disciplina da empresa agrária, prevista pelo art. 971 do Código Civil e em todo o Direito Agrário, é especial e excepcional com relação ao regramento das demais empresas e outras atividade econômicas comuns.

              É aplicável, assim, o preceito interpretativo clássico de que “interpretam-se as exceções estritissimamente” (em latim: excepciones sunt strictissimoe interpretationis),[41] principalmente porque “consideram-se excepcionais as disposições que asseguram privilégio”,[42] como é o caso das disposições específicas da empresa agrária, cujo regime jurídico é diferenciado, especialmente em face do Direito Civil e do Direito de Empresa.[43]

              Determinada a interpretação da expressão atividade rural, faz-se mister passar à análise da expressão principal profissão, também mencionada no art. 971 do Código Civil e que igualmente demanda cuidado em sua interpretação, que deve se basear nas lições do Direito Agrário.

              Analisando a questão ora posta, ainda quando estava em tramitação o anteprojeto que resultou no Código Civil de 2002, Waldírio Bulgarelli assim externou: “certamente, que não passará incólume, sem interpretações contraditórias, a expressão ‘principal profissão’, que bem poderia ter sido dispensada”.[44] Contudo, ao contrário do que vislumbrou aquele ilustre doutrinador, a expressão principal profissão é de suma importância para aferir a completude da empresa agrária, devendo ser bem compreendida em cotejo com a clássica teoria da acessoriedade, cujo estudo foi aprofundado pelo agrarista argentino Antonino C. Vivanco.

              Nessa toada, é preciso ressaltar que o art. 971 do Código Civil, ao utilizar a expressão principal profissão, não teve por foco comparar a atividade rural (ou agrária) com outras atividades externas à empresa agrária. Há que se interpretar a expressão principal profissão tão-somente dentro do complexo de uma própria e específica empresa agrária,[45] e não comparando essa com outras atividades econômico-empresariais que, eventualmente, possam ser exercidas pelo mesmo sujeito em outro contexto. Fixada essa premissa, mister analisar as relações entre as diversas atividades que fazem parte do complexo da empresa agrária.

              A expressão principal profissão quer indicar que, no contexto da empresa agrária, existem atividades agrárias principais e outras que são acessórias. Com efeito, se o legislador definiu que existe uma principal profissão é porque, conseqüentemente, por questão de lógica, também pode haver profissão acessória no âmbito da empresa agrária.

              Conforme já visto, as atividades agrárias principais foram taxativamente fixadas no art. 2º da Lei 8.023/90 e são aquelas que efetivamente qualificam determinada empresa como sendo agrária. Por seu turno, não há enumeração legal, taxativa ou exemplificativa, determinando quais são as atividades agrárias acessórias, seja no art. 971 do Código Civil ou em outro diploma normativo.

              Analisando o complexo de atividades da empresa agrária, pode haver atividades empresariais que, na essência e se consideradas autonomamente, seriam qualificadas como uma empresa não-agrária. Essas atividades, entretanto, quando são exercidas com o escopo de dar suporte de meio para o desempenho e êxito das atividades agrárias principais, acabam perdendo a sua feição empresarial genérica e, conseqüentemente, são atraídas por acessoriedade à empresa agrária.

              Contudo, há limites para aferir se determinada atividade não-agrária é acessória ou não, analisando exclusivamente o âmbito de uma empresa agrária. E assim deve sê-lo, pois se determinada atividade empresária for acessória de uma atividade agrária principal, receberá o mesmo tratamento jurídico peculiar da empresa agrária, afinal de contas “o acessório segue o principal” (em latim: accessorium sequitur principale). Comumente, a doutrina internacional tem exigido o preenchimento de dois requisitos[46] para a configuração da atividade agrária acessória: o vínculo subjetivo e o vínculo objetivo.[47]

              O vínculo subjetivo impõe que a atividade agrária principal e a atividade agrária acessória sejam desempenhadas por um mesmo sujeito ou empresário agrário. Por seu turno, o vínculo objetivo prega que haja uma vinculação de natureza econômico-funcional[48] entre ambas atividades, de modo que esta última seja desempenhada para dar suporte, viabilidade, continuidade e complementaridade àquela. Sobre o tema, vejam-se as lições do costarriquenho Ricardo Zeledón Zeledón, que nomeia de conexas as atividades agrárias acessórias:

 

As atividades conexas são aquelas realizadas sempre pelo empresário agrário. Não são principais, mas sim vinculadas, através de critérios específicos. Segundo ela, a transformação, industrialização ou comercialização em forma isolada, induvidavelmente, entrarão dentro do âmbito industrial ou comercial. São consideradas agrárias por vinculação subjetiva com o empresário, mas sobretudo porque são realizadas dentro do mesmo processo produtivo, iniciado por ele. Nesse sentido, não seriam atividades agrárias as atividades de transformação – tal como a de conversão de leite em queijo, de tomate em salsa, de uva em vinho, ou de azeitona em azeite – se o sujeito transformador resulta distinto do produtor; assim como a industrialização ou agroindústria, bem como porque o produto é vendido ao industrializador ou porque, dentro do respectivo contrato agroindustrial, o produtor não está presente nesse processo; ou também se a alienação ou comercialização são encarregadas a outro sujeito distinto do produtor.[49]

              No mesmo sentido, também nominando de conexas as atividades agrárias acessórias, o agrarista argentino Fernando P. Brebbia ensina:

 

A doutrina exige que na conexão exista um elemento subjetivo e outro objetivo. Naturalmente, a conexão subjetiva obriga que seja o titular da empresa agrária seja o mesmo que realize as operações de industrialização e comercialização, pois resulta claro que não tem natureza agrária a transformação ou venda, por exemplo, de vinho feito de uva adquirida de terceiros. Ademais, é mister uma conexão objetiva, isto é, uma ligação econômica entre uma e outra atividade por meio da qual a atividade não-agrária intrinsecamente se apresenta como acessória acerca da atividade agrária, e esta relação de acessoriedade há que ser direta, simples e conforme os usos do agrário.[50]

             

              Dessa forma, a acessoriedade na atividade agrária, que permite que uma atividade empresarial não-agrária receba o mesmo tratamento das atividades agrárias principais ou próprias, requer o preenchimento concomitante dos dois requisitos essenciais: vinculação subjetiva e objetiva.

              Eventualmente, o legislador brasileiro poderia impor que determinada atividade empresarial fosse, ope legis, enquadrada como atividade agrária acessória, ainda que não preenchesse os dois requisitos supra, por exemplo, como o fez o legislador italiano com relação ao agroturismo, legalmente declarado atividade agrária conexa na Itália.[51] Ocorre que, semelhante enquadramento legal inexiste na legislação brasileira com relação às atividades agrárias acessórias.

              Destarte, o leque de atividades agrárias acessórias deve restringir-se àquelas desempenhadas acessoriamente a uma atividade agrária principal, cumprindo os dois requisitos imprescindíveis acima destacados: vínculo subjetivo e objetivo. Apenas nessa hipótese, por exemplo, o agroturismo ou turismo rural pode ser considerado atividade agrária acessória no Brasil.

              Por fim, mister destacar que somente atividades empresariais, destinadas a promover a efetiva produção ou circulação de bens ou de serviços, podem ser enquadradas juridicamente como atividades agrárias acessórias. Em outras palavras, não são atividades agrárias acessórias aquelas atividades rotineiras do produtor rural, nas quais ele figura economicamente como consumidor,[52] adquirindo insumos e serviços para fomentar a sua atividade agrária produtiva.[53] Na prática, perceba-se que as atividades empresariais tem a ver com a disponibilização de produto ou serviço no mercado, ao passo que as atividades consumeristas visam buscar no mercado produtos e serviços.

              Economicamente, várias são as atividades acessórias ou de suporte que são desempenhadas pelo empresário agrário (antes, dentro ou depois da porteira),[54] mas somente são consideradas juridicamente atividades agrárias acessórias certas atividades eminentemente empresariais (destinadas à produção ou circulação de bens ou serviços) que, além de estar ligadas acessoriamente à atividade agrário-produtiva principal, também preencham aqueles dois requisitos essenciais já referidos: vínculo subjetivo e objetivo.

 

5. Empresa agrária, agronegócio e agroindústria

 

              Com muita freqüência, principalmente na atualidade, doutrina, jurisprudência e legislação utilizam os termos empresa agrária, agronegócio e agroindústria sem precisão técnica, confundindo-as ou lhes atribuindo significados mais ou menos amplos.

              Hodiernamente, a correta interpretação do art. 971 do Código Civil não deixa dúvidas quanto à definição de empresa agrária, conforme já demonstrado. Porém, como a empresa agrária também pode ser integrada por atividades empresariais intrinsecamente não-agrárias – as chamadas atividades agrárias acessórias – eventualmente, a própria empresa agrária vai se encarregar da produção agrária e também da industrialização dos respectivos produtos primários daquela. Nesse caso, a agroindústria integra o conceito de empresa agrária, sendo uma atividade agrária acessória. [55]

              Contudo, a agroindústria também pode existir de maneira relativamente autônoma da empresa agrária. Basta que determinada empresa se dedique à industrialização de produtos primários para que, dessa forma, já será considerada agroindústria. Destaque-se que os produtos primários podem ser transferidos ao empresário agroindustrializador diretamente por um empresário agrário ou, até mesmo, por um empresário comerciante-especulador.

              O fato é que, como a mesma pessoa não é a encarregada de produzir os produtos primários e promover respectiva industrialização, a agroindústria é tão-somente relativamente autônoma quanto à empresa agrária, pois a dependência não é entre atividade principal e acessória, mas sim mera dependência de fornecimento de matéria-prima (produtos primários) para a agroindustrialização (dando origem a produtos secundários).

              Para resolver dogmaticamente essa questão da utilização do termo agroindústria, que tanto pode ser uma empresa relativamente autônoma, quanto uma atividade agrária acessória, integrante do complexo da empresa agrária, Gustavo Elias Kallás Rezek propõe que o referido termo seja utilizado somente para designar a empresa relativamente autônoma (agroindústria em sentido estrito) e que a expressão empresa agrária agroindustrial fique reservada para aquelas empresas agrárias híbridas, nas quais determinada atividade industrial seja exercida acessoriamente a uma atividade agrária principal.

              Entretanto, salienta Gustavo Elias Kallás Rezek que, em diversas leis agrárias e nos comentários de vários doutrinadores, a utilização isolada do termo agroindústria deve ser interpretada como uma atividade agrária acessória de uma empresa agrária, senão veja-se:

 

Porém, qual o sentido da utilização do termo “agroindústria” em diversas leis agrárias e nos comentários de vários doutrinadores? A esta indagação, respondemos que o termo, nestes casos, refere-se a uma espécie híbrida entre a empresa agrária e a agroindústria em sentido estrito, a qual pode ser nomeada, propriamente, como empresa agrária agroindustrial. Esta figura ocorrerá quando dentro da própria empresa agrária, organização econômica que tem como atividade central a produção agropecuária, atingir-se um alto grau de mecanização na produção e/ou ocorrer, como atividade anexa, o processamento industrial dos produtos no próprio estabelecimento agrário. Imaginemos uma fazenda especializada na produção de laranja que possui usina própria para o processamento do suco. Assim também uma exploração canavieira com usina de álcool ou de aguardente. Proliferam, atualmente, as usinas de biodiesel instaladas no próprio estabelecimento produtor das matérias primas. São exemplos de empresas agrárias agroindustriais.[56]

 

              Gustavo Elias Kallás Rezek aduz ainda que a empresa agrária agroindustrial, bem como qualquer empresa agrária que englobe também atividades agrárias acessórias, reflete um processo de integração vertical sob uma mesma empresa que se encarrega de exercer atividades de vários setores da economia.[57] Essa integração vertical é meramente econômica e limitada ao âmbito de uma mesma empresa. Por seu turno, além da econômica, há também integração vertical jurídica nos comumente chamados contratos de integração vertical agroindustriais,[58] que, sendo uma integração vertical materializada por contratos coligados,[59] “colocam em relação de cooperação setores diversos da produção, formando verdadeiras e próprias cadeias contratuais agroindustriais”[60] e “que têm como sujeitos o produtor rural, a indústria e/ou o setor de distribuição e comercialização”.[61]

              Noutro giro, o termo agronegócio (em inglês: agribusiness) expressa uma idéia mais ampla que a da empresa agrária agroindustrial e da agroindústria em sentido estrito. Com efeito, engloba o agronegócio a análise de toda e qualquer atividade econômica que tenha ligação com a produção agrária. Dessa forma, o agronegócio relaciona-se com os setores econômicos situados antes, dentro e depois da porteira, conforme se infere da definição apresentada por Renato Buranello, in verbis:

 

Assim, podemos definir o agronegócio como o conjunto organizado de atividades econômicas que envolve a fabricação e fornecimento de insumos, a produção agropecuária, o processamento, a armazenagem, distribuição e comercialização de produtos de origem agrícola ou pecuária, as forma privadas de financiamento e as bolsas de mercadorias e de futuros.[62]

 

              Infere-se que o agronegócio, além de buscar analisar amplamente os reflexos econômicos da empresa agrária em vários setores, reflete também a tendência de “adoção de uma visão empresarial e mercadológica da atividade agrária”.[63]

              Essa atenção que as relações econômicas que integram o agronegócio têm merecido no contexto empresarial, provocou o surgimento de opiniões no sentido de haver um ramo jurídico autônomo denominado Direito do Agronegócio que, segundo Renato Buranello, pode ser caracterizado como “o conjunto de normas jurídicas que disciplinam as relações intersubjetivas decorrentes da produção, armazenamento, comercialização e financiamento da agricultura lato sensu”,[64] ao passo que João Eduardo Lopes Queiroz o define como “o conjunto de normas jurídicas incidentes sobre a produção, processamento e distribuição dos produtos agropecuários”.[65] Contudo, conforme destacado por Gustavo Elias Kallás Rezek, “esse Direito está intimamente relacionado com o Direito Agrário, mas o supera na amplitude, possuindo ainda, por sua pouca idade, uma certa dificuldade de se sustentar como sistema jurídico autônomo”.[66]

              Portanto, empresa agrária, agroindústria e agronegócio são termos que têm amplitudes e conceitos jurídicos distintos, devendo ser bem compreendidos dogmaticamente, sob pena de atrapalhar o desenvolvimento e segurança científico-jurídica.

 

6. Empresa agrária e a empresa rural do Estatuto da Terra

 

              A empresa agrária, compreendida como uma empresa que tem por objeto o exercício de dada atividade agrária principal, não pode ser confundida com o conceito de empresa rural contida no inc. VI do art. 4º do Estatuto da Terra (Lei 4.504/64), nos seguintes termos:

 

Art. 4º Para os efeitos desta Lei, definem-se:

[...]

VI - "Empresa Rural" é o empreendimento de pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que explore econômica e racionalmente imóvel rural, dentro de condição de rendimento econômico da região em que se situe e que explore área mínima agricultável do imóvel segundo padrões fixados, pública e previamente, pelo Poder Executivo. Para esse fim, equiparam-se às áreas cultivadas, as pastagens, as matas naturais e artificiais e as áreas ocupadas com benfeitorias;

 

              Com efeito, a empresa rural, conceituada no inc. VI, art. 4º, do Estatuto da Terra, tomou por base a exploração racional e econômica do imóvel rural, segundo padrões fixados pelo Poder Público.[67] Em outras palavras, a definição legal de empresa rural a considera como um imóvel onde há empreendimento econômico sendo explorado com eficiência.

              Sendo assim, percebe-se que enquanto a empresa agrária tem por foco uma determinada atividade, por outro lado o conceito legal de empresa rural visa qualificar uma categoria de imóvel rural, baseado na eficiência da sua exploração.[68] Várias são as críticas a essa conceituação legal de empresa rural. Para começar, é notório que existem empresas ineficientes, ou seja, nem todas são eficientes como parece fazer crer o inc. VI, art. 4º, do Estatuto da Terra.[69]

              Outrossim, como sabido, a empresa é uma atividade econômica e, como tal, não se confunde com o imóvel que, eventualmente, serve de suporte para o seu exercício.[70] Ora, vincular a empresa a um imóvel não se mostra coerente com a possibilidade fática de exercício de empresa sem o suporte de um imóvel, como no caso das culturas hidropônicas ou aeropônicas.[71]

              Ademais, a denominação empresa rural é criticável, pois também pode haver exploração agrário-empresarial fora do perímetro rural, inclusive em grandes centros urbanos.[72]

              Por último, o conceito legal de empresa rural é extremamente restritivo, pois exige exploração de grande vulto, não albergando a pequena empresa, incluindo a de cunho familiar, mesmo que seja relativamente eficiente.[73] Nesse sentido, destaque-se que a empresa agrária poderá ser exercida “tanto na pequena propriedade familiar, com modesta produção, quanto em um extenso fundo agrário, para a prática de empreendimento vultoso, como requerem certas culturas agrícolas”.[74]

              Destarte, pode-se concluir que a conceituação de empresa rural apresentada pelo art. 4º, inc. VI, do Estatuto da Terra é tão-somente uma classificação de determinado imóvel agrário, não se confundido com a empresa agrária em si, que é uma atividade. “A classificação [...] visou alcançar uma finalidade prática: disponibilizar aos encarregados da aplicação das políticas agrícola e fundiária um critério objetivo para direcionarem sua atuação”.[75]

              Tradicionalmente, contudo, a doutrina agrarista brasileira não tem percebido essa diferença entre o conceito legal de empresa rural e a empresa agrária como atividade. Com efeito, essa doutrina ainda constrói suas lições atrelando a empresa à “idéia de um modelo de produção necessariamente avançado e moderno, com o recurso das últimas tecnologias ou então como fruto apenas de modelos econômicos capitalistas avançados”,[76] como o fez, por exemplo, Paulo Torminn Borges, para quem a empresa rural é “o instrumento ideal para consecução da arrancada desenvolvimentista”,[77] de forma que o Direito Agrário atuaria “canalizando para os imóveis rurais todos os estímulos possíveis no sentido de tornar empresarial a sua exploração”.[78]

              Esses equívocos da doutrina agrarista são provocado por interpretações com base no conceito legal de empresa rural contido no Estatuto da Terra “que elevou determinados imóveis à condição daqueles considerados ideais no sistema de organização fundiária do país”[79] e, assim, restringiu e desvirtuou a verdadeira noção de empresa agrária, confundindo ainda essa especial atividade com o imóvel agrário.

 

7. Conclusão

 

              Na legislação brasileira, a empresa agrária é uma atividade econômica, organizada, profissional (não eventual), destinada prioritariamente à produção agrária para o mercado, sempre relacionada com alguma das atividades elencadas no art. 2º da Lei 8.023/90 e, eventualmente, também com outras atividades empresariais acessórias àquela.

              No âmbito da empresa agrária, deve ser exercida obrigatoriamente uma atividade agrária principal (de produção de bens agrários), que deve ter prioridade por ser a principal profissão, mas também é possível o exercício de outras atividades agrárias acessórias, desde que o sejam pela mesma pessoa (vínculo subjetivo) e em caráter de acessoriedade e com relativa dependência econômico-funcional para com a principal (vínculo objetivo).

              Por último, o conceito de empresa agrária (arts. 971 e 984 do Código Civil brasileiro) deve ser bem compreendido para que não seja erroneamente tomado como sinônimo de agroindústria, agronegócio ou empresa rural.

 

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Sobre o autor
Frederico Garcia Pinheiro

Mestre em Direito Agrário e Especialista em Direito Civil pela UFG. Especialista em Direito Processual pelo Axioma Jurídico. Master of laws em Direito Empresarial pela FGV. Palestrante da Escola Superior de Advocacia da OAB/GO. Ex-Presidente da Comissão de Direito Empresarial a OAB-GO (2013-2015). Associado fundador do Instituto de Direito Societário de Goiás (IDSG). Procurador do Estado de Goiás. Advogado, sócio do Pinheiro & Fortini Escritório de Advocacia.

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