RESUMO: O instituto da propriedade privada sempre será atual. O Princípio da Função Social da Propriedade surge para acrescentar ao direito subjetivo de propriedade uma nova visão: o benefício da sociedade. Destarte, cumpre analisar, desde tempos remotos à contemporaneidade, a compatibilização da propriedade com a função social da propriedade, em enfoque constitucional-civil.
PALAVRAS – CHAVE: Função Social da Propriedade; Propriedade; Evolução; Compatibilidade.
ABSTRACT: The institute of the private property will always be current. The Principal Social Function of the property emerges to add to the subjective right of property a new vision: the benefit of society. That being, it will be analyzed, since the ancient times until contemporary times, the compatibility of the property with the social function of the property in civil – constitutional approach.
KEY WORDS: Social Function of the Property; Property; Evolution; Compatibility.
SUMÁRIO: Introdução; 1 Gênese da Função Social da Propriedade; 2 Harmonização entre a Função Social e a Propriedade; Considerações Finais. Referências.
INTRODUÇÃO
Esse trabalho versa sobre a compatibilização entre os conceitos de propriedade e função social que aparentemente se opõem.
A propriedade insere-se atualmente no contexto dos Direitos Fundamentais da Carta Magna de 1988. Tal posição foi conquistada após diversas transformações acerca da sua estrutura, de acordo com o fluir temporal.
Sentimento inato dos indivíduos e último fundamento de toda a sociedade, a propriedade detém relevância positivada em contemporâneo arcabouço jurídico e é estudada à luz da sua Função Social.
O conceito de propriedade sofreu profunda alteração no século passado, tornando a Função Social um elemento latente dessa concepção. A propriedade individual cede espaço ao viés funcionalizado, ou seja, atualmente a propriedade deve atender a sua função social.
Tais conceitos - propriedade e função social - devem ser compatibilizados para a finalidade do bem comum, assegurando a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social.
Assim, ocorreu a constitucionalização do direito de propriedade. Neste trabalho, procura-se esboçar tal evolução no espaço e no tempo, explanar conceitos de Função Social e Propriedade. Procede-se, dessa forma, ao estudo da compatibilização, bem como a inclusão da Função Social na grande estrutura que se encontra o Direito de Propriedade.
1. GÊNESE DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
Os homens sempre buscaram a apropriação de bens para concretização de seus anseios individuais, almejando segurança. De início buscavam aqueles de consumo imediato, logo após, bens móveis até chegar em “propriedade”.
Eros Roberto Grau sintetiza, com maestria, o escorço evolutivo da propriedade absoluta para a propriedade-função: ‘a revanche da Grécia sobre Roma, da filosofia sobre o direito: a concepção romana que justifica a propriedade por sua origem (família, dote, estabilidade de patrimônios), sucumbe diante da concepção aristotélica, que a justifica por seu fim, seus serviços, sua função’.
Conforme Cristiano Chaves, “a história da propriedade é a história do egoísmo; após séria e profunda pesquisa científica acerca da propriedade, Pierre - Joseph Proudhon disparou a famosa observação, ‘a propriedade é um roubo’”.[2]
Segundo a lição de André Ramos Tavares, na idade antiga os babilônios regulamentaram a propriedade no código de Hammurabi de 2.300 a. C., ele determinava a proteção exacerbada do patrimônio: “se um cidadão recebeu um bem (de propriedade) de um deus ou do palácio, esse cidadão será morto; e, aquele que recebeu de sua mão o objeto roubado, será morto.”[3]
Os gregos e os romanos tratavam da propriedade como bem comum pertencente a todos os cidadãos, porém, com a evolução social, surge a instituição familiar, que rouba a cena gentílica, surgindo, assim, a propriedade privada.[4]
Orlando Gomes leciona que o conceito de propriedade que prevaleceu entre os romanos, após longo processo de individualização, é o mesmo conceito utilizado modernamente de individualista, em seus dizeres, “cada coisa tem apenas um dono. Os poderes dos proprietários são os mais amplos”.[5]
Nos primórdios das civilizações, na antiguidade, a propriedade possuía feições absolutistas e pertencia ao indivíduo independentemente de título. A posse era privada e individualizada.[6]
A propriedade apresentava-se como um direito absoluto, não comportando restrições ou limites, um direito natural, individual, perpétuo e exclusivo. O seu titular conferia poderes de usar, gozar e dispor da coisa. [7]
O titular possuía prerrogativas de utilizar-se da coisa em seu proveito, em prol de uma finalidade específica como melhor lhe aprouvesse, como a retirada de frutos, produtos e rendimentos possíveis, com quase nenhuma limitação; como consagrado pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.[8]
Conforme artigo 17 da Declaração francesa de Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de Agosto de 1789: “como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir e sob condição de justa e prévia indenização”. Ainda, em seu artigo 2º: “a finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão”. Nesse momento, resta sacralizada a propriedade privada.
Consagra-se aqui a primeira geração de direitos fundamentais, os direitos às liberdades negativas em oposição à atuação estatal. O indivíduo insere-se no ardor liberal da Revolução Francesa.
Pretendia-se, sobretudo, fixar uma esfera de autonomia pessoal refratárias às expansões do Poder. Daí esses direitos traduzirem-se em postulados de abstenção dos governantes, criando obrigações de não fazer, de não intervir sobre aspectos da vida pessoal de cada indivíduo. São considerados indispensáveis a todos os homens, ostentando, pois, pretensão universalista. [...] A preocupação em manter a propriedade servia de parâmetro e de limite para a identificação dos direitos fundamentais, notando-se pouca tolerância para as pretensões que lhes fossem colidentes.
Conforme prelecionam Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, dentre os direitos naturais e inalienáveis do indivíduo o mais significativo era a propriedade, no modelo econômico do laissez faire a função estatal era a de defender a segurança do homem e de sua respectiva propriedade, já que a “mão invisível” do mercado solucionaria os demais problemas sociais.[9]
Os indivíduos, nesse diapasão, isolados e portadores de direitos subjetivos invioláveis pelo Estado, manifestavam livremente a sua vontade pautada em uma ideologia liberal e individualista, pois o contexto econômico propiciava a circulação de capital.
A propriedade, no Estado Liberal clássico mantém-se absoluta, resguardando o patrimônio da burguesia dos arbítrios estatais. O valor supremo assentava na autonomia privada, em que os direitos inatos do homem devem ser protegidos pelo Estado.
Assevera Orlando Gomes que o contrato no Estado Liberal converteu-se em “instrumento por excelência da autonomia da vontade, confundida com a própria liberdade, ambas impensáveis sem o direito de propriedade privada. Liberdade de contratar e liberdade de propriedade seriam interdependentes, como irmãs siamesas.” [10]
O Código Napoleônico de 1804 bem sintetizou a propriedade como fato econômico, na ótica liberal o bem comum era apenas a soma dos bens individuais. Na mesma esteira, o Código Alemão observava que o proprietário, sempre que o direito de terceiros ou a lei não se opusessem, podia dispor da coisa ao seu livre arbítrio, excluindo qualquer intromissão alheia.
A Constituição francesa de 1791 declarou a “inviolabilidade da propriedade ou a justa e prévia indenização daquela de que a necessidade pública, legalmente comprovada, exigiu o sacrifício”.
Duguit, nessa época, assegura que provavelmente a grande maioria dos constituintes e dos convencionais não tiveram um conceito claro e preciso do fundamento da propriedade; nem sequer se colocaram a questão. Entendiam a propriedade como juristas, isto é, desde o ponto de vista das conseqüências que dela se deduzem, dos benefícios que assegura a seu titular, mas de nenhum modo como filósofos ou economistas, desde o ponto de vista de seu fundamento ou missão social. Pretenderam afirmar que toda propriedade existente era intangível, mas não pretenderam determinar a razão pela qual o era. Se afirmaram solenemente a intangibilidade do direito de propriedade, foi porque a imensa maioria deles eram proprietários. Do ponto de vista político e social, a Revolução foi obra do terceiro estado, isto é, da classe média proprietária; os representantes desta classe formavam a maioria da Constituinte e da Convenção. Sua preocupação constante é a de colocar a propriedade sob a salvaguarda das Declarações de Direitos e das Constituições, e de afirmar assim que o direito de propriedade se impõe ao respeito do próprio legislador.
O artigo décimo primeiro da Constituição da URSS, por sua vez, determinava: “a propriedade do Estado, patrimônio comum de todo o povo soviético, é a forma fundamental da propriedade socialista”, ou seja, elemento decisivo para a manutenção do regime socialista.[11]
Em continuidade à explanação do jurista André Tavares acerca da doutrina de Duguit sobre a concepção social da propriedade, observa-se que a idéia socialista foi decisiva para a construção da função social da propriedade.
Nesse contexto, a propriedade deixa de ser direito subjetivo do indivíduo para se converter em “função social do detentor de capitais mobiliários e imobiliários”[12]; o proprietário, então, tem a obrigação de empregar a sua riqueza para acrescer à riqueza social.
Segundo Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, o direito romano, embora possua o legado de propriedade absoluta, mostrava a submissão do exercício da propriedade ao interesse social, a qual resta em evidência o privilégio do princípio da humanidade sobre os demais princípios do direito, “o que permite que se afaste também o individualismo como característica da propriedade romana, pois mesmo quando exercida individualmente, a propriedade romana sempre esteve sujeita ao interesse social”.[13]
No entanto, bem assevera, em raciocínio linear, que entre a propriedade moderna e a romana as semelhanças são raras. Em tempos remotos inexistia a definição de propriedade e de direito subjetivo. “os romanos não qualificaram a propriedade como jus in re, apenas descreveram as suas funções”.[14]
Porém, “o viés funcionalizado” da propriedade romana não sobrevive na idade média, pois o poder político não poderia ter restrições. O Estado era um ente maior dirigido por um rei, que detinha o poder de propriedade sobre as terras e todas os indivíduos possuíam apenas o domínio.
Segundo Orlando Gomes, a propriedade medieval era caracterizada pela concorrência de proprietários, quem tinha o domínio útil perpétuo, possuía, mesmo suportando encargos, propriedade paralela, “a dissociação revela-se através do binômio domínio eminente + domínio útil. O titular do primeiro concede o direito de utilização econômica do bem e recebe, em troca, serviços ou rendas. Quem tem o domínio útil perpetuamente, embora suporte encargos, possui, em verdade, uma propriedade paralela.”[15]
O Código Civil de 1916, conforme leciona Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, “é fruto tardio do liberalismo – fruto de uma concepção oitocentista” em que era assegurado o direito de uso, gozo e disposição dos seus bens, bem como o direito de reavê-los, propugnava pelo individualismo como valor fundamental. Deste contexto Clóvis Beviláqua, com o esboço de Teixeira de Freitas, constrói o conceito de propriedade.[16]
Luiz Edson Fachin observa que o Código Civil de 1916 foi um produto de valores dominantes, e não obra da “palavra intelectual de um homem insular”, o Código serviu a um determinado modelo de relações jurídicas que envolviam o “homem privado”; em suas palavras: “poder-se-ia ter elaborado um Código que pretendesse ser instrumento da solidariedade social. Tal concepção, caso houvesse sido adotada em sua elaboração, seria algo completamente diverso da chamada “Constituição do homem privado.”[17]
O direito de propriedade como puro e exclusivo direito subjetivo da era liberal converte-se em instrumento de exclusão social. Surgem algumas restrições ao direito de propriedade, algumas limitações são impostas pelos ordenamentos, reprimindo-se, assim, o abuso de poder.
Abandona-se a postura individualista e absoluta da propriedade, que em nada relacionava-se com a coletividade. Ao Estado agora cumpre delinear a propriedade, que passa a ser avaliada sob uma nova ótica.
Como exemplo primordial, pode-se citar o direito Francês, em que a sua corte entendeu que “o direito de propriedade não pode ser usado apenas com o propósito de causar danos a terceiros, sem o intuito de produzir qualquer proveito ao seu titular. Seriam chamados atos emulativos todos aqueles animados pela simples intenção de lesar interesses alheios”[18]
Conforme Gustavo Tepedino, “o instituto do abuso do direito é construção doutrinária e jurisprudencial do século XX, embora sua origem seja comumente identificada nos atos emulativos do direito medieval, sendo também encontrados vestígios da teoria no direito romano.”[19]
A história registra que somente em 1912, com o caso Clement Bayard, julgado pela corte de Amiens, a teoria do abuso do direito tornou-se amplamente conhecida. Consta que o proprietário de um terreno vizinho a um campo de pouso de dirigíveis construiu, sem qualquer justificativa, enormes torres no vértice das quais instalou lanças de ferro, colocando em perigo as aeronaves que ali aterrizavam. A decisão considerou abusiva a conduta, responsabilizando o proprietário. [...] As teorias negativistas buscaram demonstrar sua inexistência, como conseqüência lógica da própria negação do conceito de direito subjetivo (Duguit). [...] Os doutrinadores passaram a buscar a construção científica do abuso do direito no cerne do direito subjetivo, procurando identificá-lo como resultado de uma contradição com um dos elementos valorativos do próprio direito. Neste ponto, destaca-se a obra de Josserand, que concebeu o abuso como violação ao espírito do direito ou ao seu fim social. [...] O ato abusivo consistiria na atuação anti-social. De acordo com a noção legal de abuso introduzida pelo Código de 2002, o exercício de cada direito deve respeitar seu espírito próprio, buscando assim a realização do ideal de justiça alem da letra da lei. O critério do abuso não esta apenas na intenção de causar danos, mas no desvio do direito de sua finalidade ou função social. [...] A adoção da teoria do abuso do direito constitui um dos aspectos da constitucionalização do Direito Civil, tendência marcante do nosso tempo e característica do Estado Social, possibilitando a permanente oxigenação do sistema ao permitir a adequação das normas à realidade social, em constante mutação.
A lição de Raquel Carvalho, mostra que a Constituição de Weimar, em seu artigo 153, alínea 3ª, de 1919 “é o retrato da nova filosofia”, estabelecendo que a propriedade impõe obrigações, relata, assim, a passagem do Estado liberal para o Estado Social, com a segunda geração dos direitos fundamentais.
A obra de Cristiano Chaves engrandece esse entendimento ao mostrar que tal Constituição Alemã possui visão avançada ao afirmar, em seu artigo 14 parágrafo 2º, que a “propriedade obriga”, o proprietário mostra-se solidário.[20]
Esclarece João Batista Gomes Moreira que, ultrapassado o liberalismo, a Revolução Social tem na propriedade o principal foco de irradiação de idéias, variando teses que sustentam desde a necessidade de relativa socialização até a sua total estatização. Instituiu-se nos regimes que se conservaram capitalistas o conceito de função social da propriedade ou de propriedade constitucional ou funcionalizada, com inspiração na doutrina da solidariedade social, especialmente a doutrina social da Igreja. Em razão da Constituição Alemã de 1919 ( a propriedade obriga e seu uso deve servir ao bem comum), o regime que continuou a ser o de uma república liberal serviu de modelo para o constitucionalismo social que emergiu após a 2ª guerra . (MOREIRA, João Batista Gomes. Intervenção do Estado na propriedade e no domínio econômico. In: Desapropriação: doutrina e jurisprudência. Brasília: TRF 1ª Região, 2005. P. 60-61).
O conturbado século XX, de extenso desequilíbrio econômico, foi marcado pela ultrapassagem do modelo Liberal, instaurando uma nova ordem social que implica em um redimensionamento dos direitos fundamentais. O novo modelo, então, mostra-se prestacional, ou seja, de escopo positivo por parte do Estado.
Os problemas sociais tornam-se emergentes frente à industrialização, o crescimento demográfico e as disparidades das sociedades geraram reivindicações, o Estado, agora, obriga-se em realização de justiça social.
Os direitos de segunda geração são chamados de direitos sociais porque têm relação com àquelas reivindicações de justiça social, e não porque são direitos de coletividades, aliás, a maioria dos titulares desses direitos são indivíduos singulares.
O Ideal absenteísta do Estado liberal não respondia, satisfatoriamente, às exigências do momento. Uma nova compreensão do relacionamento Estado / sociedade levou os Poderes Públicos a assumir o dever de operar para que a sociedade lograsse superar as suas angústias estruturais. Daí o progressivo estabelecimento pelos Estados de seguros sociais variados, importando intervenção intensiva na vida econômica e a orientação das ações estatais por objetivos de justiça social. Como conseqüência, uma diferente pletora de direito ganhou espaço no catálogo dos direitos fundamentais – direitos que não mais correspondem a uma pretensão de abstenção do Estado, mas que o obrigam a prestações positivas. São os direitos de segunda geração, por meio dos quais se intenta estabelecer uma liberdade real e igual para todos, mediante a ação corretiva dos Poderes Públicos.
Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald observaram com maestria o grave quadro da exclusão social acelerado por 100 (cem) anos de exercício do mais puro liberalismo, que apenas pôs a lume a idéia de que o Estado garantia a liberdade de poucos, em detrimento a opressão de muitos, questionando sobre a liberdade dos não proprietários:
A passagem do Estado Liberal para o Estado Social – com a consagração da segunda geração dos direitos fundamentais – impõe efetiva atuação do poder público, voltada ao cumprimento de prestações positivas capazes de promover real igualdade entre todos. Isto requer uma relativização das liberdades individuais, pois a propriedade passa a sofrer condicionamentos de interesses coletivos e de não-proprietários. [...] Essa mudança de paradigma provoca uma necessária conciliação entre poderes e deveres do proprietário, tendo em vista que a tutela da propriedade e dos poderes econômicos e jurídicos de seu titular passa a ser condicionada ao adimplemento de deveres sociais. O direito de propriedade, até então tido como um direito subjetivo na órbita patrimonial, passa a ser encarado como uma complexa situação jurídica subjetiva, na qual se inserem obrigações positivas do proprietário perante a comunidade.
Merece respaldo a observação de Luiz Edson Fachin no sentido de que “o Direito é um fenômeno profundamente social”, ora, impossível é o estudo dos diversos institutos sem o conhecimento da sociedade na qual ele se integra, “o direito positivado é profundamente histórico e contextualizado.” [21]
No âmbito do direito privado deixa-se atrás a velha concepção do patrimonialismo. O Direito Civil deixa de ser marcado pela propriedade, contrato, testamento e família. Uma contemporânea visão do direito procura tutelar não apenas estas figuras pelo que elas representam em si mesmas, mas deve tutelar certos valores tidos como merecedores de proteção: a última ratio do direito é o homem e os valores que traz encerrados em si.
Assim, não podiam persistir as idéias absolutistas, e a propriedade se rende ao fim que se propugna. O proprietário sujeita-se ao dever de também atuar em benefício de toda a sociedade. O direito de propriedade não mais configura uma relação entre proprietário de um lado e a sociedade, em abstenção, do outro.
José Afonso da Silva assevera que o princípio da Função Social da Propriedade vai além do ensinamento da igreja, qual seja: “sobre toda propriedade particular pesa uma hipoteca social”, mas tende a uma simples visão obrigacional. Ela transforma a propriedade capitalista, sem socializá-la. “Condiciona-a como um todo, não apenas seu exercício, possibilitando ao legislador entender com os modos de aquisição em geral ou com certos tipos de propriedade, com seu uso, gozo e disposição.”[22]
Entretanto, vale ressaltar, de acordo com Orlando Gomes, que o conceito unitário de propriedade é restaurado no regime capitalista, os poderes a ela conferidos são exagerados, exaltando a concepção individualista. “Ao seu exercício não se antepõe restrições, senão raras, e o direito de propriedade é elevado à condição de direito natural, em pé de igualdade com as liberdades fundamentais.”[23]
A função social, conforme denota Raquel Carvalho, corrobora a idéia de que a sociedade não deve ser apenas sujeito passivo do dever de não ofender a propriedade alheia, toda sociedade é, simultaneamente, sujeito ativo da prerrogativa de ver, no uso do bem, condutas úteis e adequadas. O proprietário da coisa, que é o sujeito ativo do uso, gozo, fruição e disposição do bem, encontra-se individualizado também no pólo passivo da obrigação comissiva de dar ao bem função social.[24]
Segundo anota Luiz Edson Fachin, a idéia de interesse social corresponde à previsão de que ao direito subjetivo da apropriação também correspondem deveres, ou seja, corresponde ao início de distribuição de cargas sociais, gerando um “duplo estatuto: um de garantia, vinculado aos ditames sociais, e outro, de acesso”, assim, o autor entende que “esse direito subjetivo tem destinatários no conjunto da sociedade, de modo que o direito de propriedade também começa a ser lido como direito à propriedade.”.[25]
A sociedade modifica com o passar do tempo, o que impede que qualquer criação legislativa tenha duração eterna. Os ordenamentos jurídicos acompanham os cidadãos de acordo com suas necessidades temporais. Como todos os institutos transformam, não poderia ser diferente com a noção de propriedade, que ainda resta em contínua mudança.
Dessa forma, a propriedade deve ser analisada à luz da função social da propriedade para possuir garantia no ordenamento. Com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, a doutrina debruça-se na tarefa de construir novos modelos interpretativos, “é preciso retirar do elemento normativo todas as suas potencialidades, compatibilizando-o, a todo custo, à Constituição da República”.[26]
2. HARMONIZAÇÃO ENTRE A FUNÇÃO SOCIAL E A PROPRIEDADE
Urge, preliminarmente, anotar que a noção de propriedade na Constituição de 1988 é vastíssima. A Nossa Carta Magna dispensa inúmeros dispositivos à disciplina do direito de propriedade, seja no artigo 5º ou em outros capítulos, contemplando, por exemplo, o direito de sucessão, o direito autoral, o direito de propriedade imaterial, entre outros.[27]
Assim, o artigo 5º, XXII, CF/88: “é garantido o direito de propriedade”; logo em seguida, no inciso XXIII: “a propriedade atenderá a sua função social”. Assegura-se também o direito de herança nos incisos XXX e XXXI.
Conforme leciona André Tavares, “há diversas normas constitucionais que se referem ao direito à propriedade: arts. 5º XXIV a XXX; 170, II e III; 176; 177; 178; 182 a 186; 191 e 222. A mais relevante referencia ao direito de propriedade, essencial para sua correta compreensão, contudo, encontra-se no inciso XXIII do art. 5º.”[28]
O conceito de propriedade na Constituição Federal é mais amplo do que no Código Civil. A Carta Magna tutela diversas propriedades, não limitado ao direito real civilístico, pois abrange bens corpóreos e incorpóreos, propriedade pública e privada, a propriedade empresarial, ligada aos bens de produção, a propriedade urbana e rural, grande e pequena.[29]
Entretanto, nos dizeres desses civilistas: “em qualquer caso, a propriedade constitucionalmente tutelada é apenas aquela que revela adimplemento de sua função social”.[30]
Gilmar Ferreira Mendes observa o direito de propriedade como um direito fundamental que possui âmbito de proteção instituído pelo próprio ordenamento jurídico, direta e expressamente. Mostra que, como essa categoria de direito fundamental apresenta-se, a um só tempo, como garantia institucional e como direito subjetivo, “confia-se ao legislador, primordialmente, o mister de definir, em essência, o próprio conteúdo do direito regulado. Fala-se, nesses casos, de regulação ou de conformação em lugar de restrição.”[31]
Essas normas cumprem função de concretização ou de conformação primeiramente, o que precede a idéia de restrição. O legislador, aqui, exerce importante papel na própria definição de proteção do direito de propriedade.
Na mesma esteira, André Tavares reconhece que a propriedade apresenta “caráter dúplice”, servindo ao individualismo e às necessidades sociais, impondo-se uma necessária compatibilização dos mandamentos constitucionais. Assim, o direito individual da propriedade já vem delimitado parcialmente pela própria constituição ao delinear a função social.
Nesse mesmo sentido Rogério Moreira Orrutea: “o princípio da função social da propriedade é resultante da combinação dessas duas naturezas jurídicas, e somente com a presença de ambas combinando-se entre si torna-se possível a existência do primeiro. Constituem, portanto, os direitos individuais e os direitos econômicos e sociais, caracteres objetivos fundamentais que sobressaem na função social da propriedade.” (Da propriedade e a sua Função Social no Direito Constitucional Moderno, p. 163).
O conceito de propriedade sofreu alterações essenciais no século passado, rompendo com seu significado eminentemente individual, fazendo com que o conceito constitucional de direito de propriedade ganhasse roupagem própria, desvencilhando do conteúdo civilístico.
Assim sendo, André Tavares observa que José Afonso da Silva já mostrara que “o regime jurídico da propriedade não é uma função do Direito Civil, mas de um complexo de normas administrativas, urbanísticas, empresariais (comerciais) e civis (certamente), sob fundamento das normas constitucionais”.[32]
Cristiano Chaves, com magnitude, reforça a tutela genérica da inviolabilidade de propriedade garantida pela Carta Magna, e observa que a leitura correta do inciso XXII do artigo 5º seria: “é garantido o direito subjetivo patrimonial de propriedade em caráter erga omnes. O seu titular o exerce em poder de dominação sobre o objeto, demandando comportamento negativo da coletividade.”[33]
Em sequência de raciocínio, a noção de propriedade enquadra-se em um conceito de “relação jurídica complexa”. Relação jurídica é um vínculo que une as pessoas em direitos e deveres; e, a função social cria um complexo de obrigações e estímulos.
O proprietário titulariza o direito subjetivo de exigir dos não-proprietários um dever genérico de abstenção, como corolário da garantia individual de propriedade (art. 5º, XXII, CF). Todavia, a coletividade é titular do direito subjetivo difuso de exigir que o proprietário conceda função social ao direito de propriedade [...] a locução relação jurídica complexa sintetiza exatamente esta dimensão plural de direitos e deveres recíprocos [...] o proprietário se encontrará em situações ativa e passiva e só poderá demandar abstenção da coletividade se, a seu turno, conceder função social.
No entanto, diante de todos os direitos patrimoniais, o mais sólido e amplo é o direito subjetivo de propriedade plena in re postesta; subjetivo porquanto não tem existência própria, necessitando da atuação do indivíduo para a satisfação dos seus próprios interesses.
É o direito real por excelência, em torno do qual gravita o direito das coisas; ora, o direito de propriedade é um direito fundamental, vestido de cláusula pétrea, ao lado dos valores da vida, liberdade, igualdade e segurança, conforme dispõe o caput do artigo 5º da Lei Maior.[34]
O Código Civil de 2002 traz uma definição acanhada de “propriedade”, ao dispor no artigo 1.228 que o proprietário tem faculdades inerentes ao domínio, como o direito de usar, gozar e dispor da coisa, bem como o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
Convém distinguir “propriedade” – quando o proprietário detém título formal que será funcionalizado pela imposição de direitos e deveres perante a sociedade - e “domínio” – a ingerência sobre a coisa, mediante senhorio, dadas as faculdades de uso, gozo e disposição. Vale salientar que o domínio é absoluto, enquanto a propriedade é relativa, devido a sua intersubjetividade.[35]
O direito de usar é a faculdade de servir-se da coisa conforme sua destinação econômica; o direito de gozar consiste na exploração econômica da propriedade; o direito de dispor é poder alterar a própria substância da coisa, como o abandono ou mesmo a alienação, e, por fim, o direito de reaver é a faculdade de reivindicar de quem a possua injustamente, ou a detiver sem título.[36]
Ainda que seja, atualmente, a propriedade um direito pleno (dadas às faculdades relativas às coisas), e não direito absoluto, a propriedade é também compreendida como um direito individual, exclusivo e perpétuo, uma vez que não desaparece tal direito com a morte do proprietário, passando a seus sucessores, como herança e com duração ilimitada, e nem mesmo será extinta com a inércia do titular, por óbvio, respeitada a sua função social.
Vale salientar, assim, um “Direito Civil Constitucional”, pois os princípios superiores e vinculantes criam uma nova ordem, derivada de uma nova mentalidade, na tentativa de superar as “feridas” produzidas na humanidade no século passado que repercutiram nas constituições dos últimos 50 (cinqüenta) anos. “Os limites da atividade econômica e a função social dos direitos subjetivos passam a integrar uma nova ordem pública constitucional e devem ser encarados como meios de ampla tutela aos direitos essenciais do ser humano.” [37]
A Função Social procede do latim functio, cuja acepção é cumprir algo ou desempenhar um dever ou uma atividade, exprimindo a finalidade de um modelo jurídico. A função social é inerente ao direito subjetivo de propriedade, equivale dizer que o proprietário deve atuar pautado na obrigação de fazer, ou seja, impulsionar de forma racional sua propriedade, satisfazendo seus anseios econômicos ao mesmo tempo em que promove o desenvolvimento social e econômico da coletividade, promovendo, assim, justiça.[38]
A funcionalização da propriedade é um processo longo. Por isso é que se diz que ela sempre teve uma função social. Quem mostrou isso expressamente foi Karl Renner, segundo o qual a função social da propriedade se modifica com as mudanças na relação de produção. E toda vez que isso ocorreu, houve transformação na estrutura interna do conceito de propriedade, surgindo nova concepção sobre ela, de tal sorte que, ao estabelecer expressamente que a propriedade atenderá a sua função social.
Carlos Roberto Gonçalves observa que o princípio da Função Social da Propriedade tem origem controvertida: “teria sido, segundo alguns, formulado por Augusto Comte e postulado por León Duguit.”[39]
Duguit é considerado o precursor da idéia de que os direitos só se justificam pela missão social para a qual devem contribuir e, portanto, que o proprietário deve comportar-se e ser considerado, quanto à gestão dos seus bens, como um funcionário. Para o mencionado autor, a propriedade deixou de ser o direito subjetivo do indivíduo e tende a se tornar a função social do detentor da riqueza mobiliária e imobiliária; a propriedade implica para todo detentor de uma riqueza a obrigação de empregá-la para o crescimento da riqueza social e para a interdependência social. Só o proprietário pode executar uma certa tarefa social. Só ele pode aumentar a riqueza geral utilizando a sua própria; a propriedade não é, de modo algum, um direito intangível e sagrado, mas um direito em contínua mudança que se deve modelar sobre as necessidades sociais às quais deve responder.
Assevera Luiz Edson Fachin que a utilização da expressão “função social” provoca persistente debate no Direito, especialmente na Sociologia, sobre a análise funcionalista dos fenômenos sociais, seus parâmetros de compreensão variam conforme a interpretação de “função - fim (teleológica) ou função - necessidade (fato social).[40]
O ponto de vista sociológico define, de fato, a perspectiva através da qual o sujeito encara a realidade e procura explicá-la cientificamente, tomando em consideração a natureza mesma dos fenômenos sociais. A análise das causas e a análise das funções sociais constituíram os meios de investigação capazes de conduzir, de acordo com as propriedades e as condições dos fenômenos considerados, a aplicação daquele ponto de vista à explicação científica da realidade social.
Assim, Cristiano Chaves coloca, conforme Oliveira Ascensão, que o direito é uma realidade finalista, racionalmente ordenada a fins: “a ordem jurídica não é casual, mas é normativamente ordenada para finalidades, sendo que o fim do direito é o bem comum. A ausência de finalidade provoca uma perda da base de legitimidade substantiva do ordenamento.”[41]
A função social harmoniza a idéia do bem comum, solidariedade e participação, excluindo da propriedade o conceito absoluto e pré – estabelecido.
Ainda, conforme Norberto Bobbio, a função social é enfrentada “pelo viés da passagem do direito repressivo para o direito promocional”. O direito repressivo procurava sancionar negativamente todo aquele que praticasse uma conduta contrária aos interesses coletivos, o Estado promocional pretende incentivar todas as condutas que sejam coletivamente úteis, mediante a imposição de sanções positivas, capazes de estimular uma atividade, uma obrigação de fazer.[42]
Norberto Bobbio explica a diferença entre “ordenamento com função protetivo-repressiva” e “ordenamento com função promocional”, mostrando que os atos humanos podem ser conformes ou desviantes.[43]
Em poucas palavras, é possível distinguir, de modo útil, um ordenamento protetivo – repressivo de um promocional com a afirmação de que, ao primeiro, interessam, sobretudo, os comportamentos socialmente não desejados, sendo seu fim precípuo impedir o máximo possível a sua prática; ao segundo, interessam, principalmente, os comportamentos socialmente desejáveis, sendo seu fim levar a realização destes até mesmo aos recalcitrantes. [...] Já há algum tempo, os juristas têm ressaltado que uma das características mais evidentes do sistema jurídico de um Estado assistencial é o aumento das chamadas leis de incentivo ou leis-incentivo. O elemento novo das leis de incentivo, aquele que permite o agrupamento dessas leis em uma única categoria, é exatamente o fato de que elas, diferentemente da maioria das normas de um ordenamento jurídico, denominadas sancionatórias (com referencia ao fato de que prevêem ou cominam uma sanção negativa), empregam a técnica do encorajamento, a qual consiste em promover os comportamentos desejados, em vez da técnica do desencorajamento, que consiste em reprimir os comportamentos não desejados.
Norberto Bobbio observa que a função de um ordenamento jurídico não é somente controlar os comportamentos dos indivíduos, mas também de direcionar tais comportamentos para certos objetivos preestabelecidos, podendo ser obtido por via da técnica de sanções positivas e dos incentivos e assegura: “creio, portanto, que hoje seja mais correto definir o direito, do ponto de vista funcional, como forma de controle e de direção social.[44]
A função social não significa a extinção da propriedade privada, apenas regula o comportamento do proprietário, buscando-se a prevalência da solidariedade, conduta ética, corrobora esse entendimento o artigo 5º da lei de Introdução ao Código Civil: “a lei atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum”, assim, o bem comum é o interesse da coletividade no sentido de a propriedade ser solidária.[45]
Nessa esteira, não se pode ligar a função social da propriedade com a coletivização ou socialização do direito de propriedade, como no estado socialista.
José Afonso da Silva corrobora esse entendimento de que o princípio da função social não autoriza a supressão legislativa da instituição da propriedade privada, “pode fundamentar até mesmo a socialização de algum tipo de propriedade, onde precisamente isso se torne necessário à realização do princípio, que se põe acima do interesse individual.”[46]
Portanto, o ordenamento protege aquele que não ignora o bem comum, o proprietário atualmente sofre uma “remodelação em sua autonomia privada”, pois, enquanto no Estado Liberal o titular tudo podia desde que não prejudicasse direito de terceiros, hoje deve pautar na colaboração com a sociedade, desde que não se prejudique.[47]
A Função Social, segundo Raquel Carvalho, não nega as faculdades do proprietário, mas as define de forma vinculada ao atendimento do bem - estar geral, “como se cada dono de um bem recebesse um mandato social para, além dos seus próprios interesses, salvaguardar, cumulativamente, o interesse público primário.”[48]
Ainda citando Maria das Graças Albergaria Costa, Raquel Carvalho traz em sua obra de Direito Administrativo, que existe além da função social, uma função individual da propriedade:
Segundo a função individual da propriedade, o homem não deveria exercer sua personalidade sem a propriedade. O direito à virtude é o primeiro dos direitos do homem. (...) Mas, ao lado dessa função individual da propriedade, as Encíclicas insistem em sua função social. A propriedade privada não pode converter-se em propriedade privativa, isto é, concentrar-se de tal maneira nas mãos de poucos que um grande número de indivíduos seja excluído. Se o direito de propriedade é um direito natural, o seu exercício deve ser possível para todos os que se dedicam a uma vida de trabalho e de economia, defende Van Gestel. (A desapropriação no contexto da nova ordem internacional. Belo Horizonte: Saitec, 2003. P. 39-42).
Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald mostram que a função social da propriedade difere das limitações ao direito de propriedade normatizadas pelo arcabouço jurídico, portanto, em suas palavras: “as restrições ao direito de propriedade são normas emanadas de direitos de vizinhança (art. 1.277 do CC) e direito administrativas (v.g, desapropriação, requisição). [...] Cuida-se de obrigações de não fazer que priorizam interesses opostos ao do proprietário, limites negativos e externos ao direito de propriedade .”[49]
Nessa esteira é o pensamento de José Afonso da Silva, ao mostrar que a função social da propriedade não se confunde com os sistemas de limitação da propriedade. As limitações dizem respeito ao exercício do direito ao proprietário, e a função social à estrutura do próprio direito à propriedade.[50]
Portanto, a função social não se relaciona ao exercício da propriedade, e sim, penetra na substância e estrutura do direito subjetivo de propriedade, impondo limites negativos e positivos, limitadores e impulsionadores, não ao interesse externo da administração, da sociedade ou de vizinhos. “A função social consiste em uma série de encargos, ônus e estímulos que formam um complexo de recursos que remetem o proprietário a direcionar o bem às finalidades comuns. Daí a razão de ser a propriedade comumente chamada de poder-dever ou direito-função.”[51]
A tutela constitucional da propriedade insculpida no artigo 5º, XXII é seguida pelo inciso XXIII: “a propriedade atenderá sua função social”. Essa ordem é proposital e não acidental. “Inexiste incompatibilidade entre a propriedade e a função social, mas uma obrigatória relação de complementaridade, como princípios da mesma hierarquia”.[52]
Pelo fato de não existir hierarquia entre os direitos fundamentais de propriedade e sua função social, é impossível estabelecer qualquer gradação. Os princípios são relativos e toda proporcionalidade é realizada em concreto. Daí a necessidade de afirmar o princípio que na concretude do caso alcance maior peso e dimensão na concorrência de interesses conflitantes.
José Afonso da Silva leciona que a norma constitucional que contém o princípio da função social da propriedade incide imediatamente, ou seja, é de aplicabilidade imediata, bem como todos os princípios constitucionais.[53]
Afirma-se a tese de que aquela norma tem plena eficácia, porque interfere com a estrutura e o conceito da propriedade, valendo como regra que fundamenta um novo regime jurídico desta, transformando-a numa instituição de Direito Público, especialmente, ainda que nem a doutrina nem a jurisprudência tenham percebido o seu alcance, nem lhe dado aplicação adequada, como se nada tivesse mudado.
A evolução da humanidade derruba a visão romanística, ou seja, atualmente não existe proteção à propriedade apenas fundada em seu registro. A proteção deve abarcar o conceito material da função social da propriedade, sob pena de sanção em caso de descumprimento, pois caracterizará “abuso do direito de propriedade”.[54]
As sanções são diferenciadas ao longo do ordenamento jurídico, conforme o grau de descumprimento, desídia, bem como a forma que as normas jurídicas priorizam certos modelos de propriedade, ora, “não existe uma função social da propriedade, mas funções sociais de diversas propriedades”, pois, em uma sociedade plural “variados são os sujeitos que exercem o direito subjetivo, como múltiplos são os bens jurídicos e as formas de satisfação patrimonial. (...) Em tamanha profusão de propriedades, o que relevará para valorar cada centro de interesses não será o rótulo e sim a finalidade.” [55]
Assim, a função social da propriedade é um princípio fundamental que penetra na essência do direito de propriedade, somando-se às faculdades de usar, gozar, dispor e reivindicar. Trata-se de um quinto elemento, enquanto este é dinâmico, os outros quatro são estáticos, assim, a função social da propriedade torna-se intrínseca ao direito subjetivo de propriedade, integra a própria estrutura.[56]
Diante dessa concepção, o intérprete deve compreender as normas constitucionais que fundamentam o regime jurídico da propriedade, ou seja, sua garantia enquanto atende sua função social. “A função social mesma acaba por posicionar-se como elemento qualificante da situação jurídica considerada (...) enfim, a função social se manifesta na própria configuração estrutural do direito de propriedade.”[57]
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A propriedade, com o evoluir das civilizações, deixa de representar uma postura absolutista, exclusiva e ilimitada. Proporcionalmente, a função social surge paulatinamente para conter abusos, até encontrar o patamar constitucional entre os direitos e garantias fundamentais.
Assim, o Código Civil de 2002, à luz da Constituição de 1988, acolhe tais institutos, e, ainda que sobre as vestes patrimoniais, concretiza a Publicização do Direito Civil.
Para que se reconheça o direito de propriedade plenamente, este deve obedecer ao princípio da Função Social da Propriedade, que, por vezes, pode ir de encontro aos anseios do proprietário.
Conforme exposto, o conceito constitucional de propriedade é vasto e elástico, a propriedade hodiernamente designa figuras diversas, entretanto, para cada tipo de propriedade, é dispensado um regime específico de atuação da função social da propriedade.
A função social é, como qualquer princípio, um conceito relativo, que deve ser interpretado em concreto, diante do juiz, respeitados os conteúdos mínimos e exclusivos referentes ao domínio. Logo, não se deve confundir a função social da propriedade com a socialização da propriedade.
A propriedade continua sendo assegurada como direito individual. É, ainda, privada formalmente, porém, social materialmente, “é privada na forma e estrutura, pois o domínio é exclusivo, mas é social na destinação e controle de legitimidade e merecimento.”[58]
Duguit considerou a propriedade como uma função social pura e simplesmente, subtraindo-lhe a concepção de direito subjetivo; assim surgiu a indagação a respeito da propriedade “ter” ou “ser” a função social.
André Ramos Tavares leciona no sentido de que defender a concepção funcional com exclusividade só tem guarida nos estados socialistas, uma vez que nestes a propriedade deve assegurar o desenvolvimento e alcançar o bem comum. Assevera que o direito subjetivo inerente a propriedade deve coexistir com a sua função social, portanto, a solução apresentada é a compatibilização dessas concepções.[59]
Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald garantem que, em princípio, a propriedade privada não é função social, trata-se de um direito subjetivo, constituído pela autonomia privada, com função social. Entretanto, a propriedade pública é, em regra, função social, já que os bens pertencem ao patrimônio do estado.[60]
Entretanto, advertem os civilistas que a controvérsia é também relativa ao aspecto histórico e temporal:
A qualificação de cada uma das diversas propriedades em ‘ser’ ou ‘ter’ função social, dependerá do interesse social e da importância de cada situação jurídica para a sociedade em determinado contexto [...] se no estatuto de uma propriedade predominar o foco para os interesses do titular em detrimento dos deveres, encontrar-se-á a propriedade como direito subjetivo. Todavia, se o interesse preponderante for da coletividade pelo fato da atividade ser reconhecida em razão dela, com prevalência de deveres sobre direitos, a propriedade será verdadeiramente função social, a ponto de apenas ser garantida enquanto cumpre a referida finalidade.
O modelo capitalista brasileiro de produção tem por elemento essencial a propriedade privada, razão pela qual o direito à propriedade foi preservado, e apenas alterado seu conteúdo ao longo dos séculos, para moldá-lo ao atual Estado Democrático de Direito.
REFERÊNCIAS
BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos da teoria do direito. São Paulo: Manole, 2007.
CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Curso de Direito Administrativo. Parte Geral, Intervenção do Estado e Estrutura da Administração. Salvador: Editora Jus Podivm, 2008.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Vol.V. 4. ed. São Paulo: Saraiva. 2009.
FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mértires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
GOMES, Orlando. Direitos Reais. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
PEREIRA, Caio Mário. Instituições de Direito Civil. 18. ed. Rio de janeiro: Forense, 2004.
ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de. Direitos Reais. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2007.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 32 ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. Rev . e ampl. São Paulo: Saraiva, 2003.
TEPEDINO, Gustavo. A parte Geral do novo Código Civil. Estudos na perspectiva civil – constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.