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O princípio da anterioridade tributária e a revogação de isenções não onerosas

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Agenda 04/04/2016 às 11:55

4 A RELAÇÃO ENTRE O PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE E A REVOGAÇÃO DE     ISENÇÕES NÃO ONEROSAS

Convém agora averiguarmos a relação existente entre a revogação de uma isenção não onerosa e o princípio da anterioridade tributária, buscando descobrir se deve ou não haver observância a esse princípio.

4.1 Considerações iniciais

Conforme já analisado, embora o ordenamento jurídico proíba a revogação das chamadas isenções onerosas – uma vez que estas se incorporam ao patrimônio do contribuinte, gerando direito adquirido –, é plena a possibilidade de revogação das isenções não onerosas.

Como se trata de benefícios que são concedidos pelo Poder Público sem que se exija qualquer contraprestação por parte dos contribuintes, ou sem que se estabeleça um prazo determinado para a sua vigência, não há que se falar, nesses casos, em direito adquirido, não havendo impedimento para que ocorra a revogação.

É, portanto, justamente o caráter de não onerosidade dessas isenções que conduz à admissão de sua revogabilidade. Frise-se que tal possibilidade de revogação está condicionada à existência de uma lei que a veicule.

Pois bem, diante de uma situação concreta de revogação de isenção não onerosa, não restam dúvidas de que o tributo poderá novamente ser cobrado pelo Fisco. Surge, contudo, a indagação acerca do momento em que essa cobrança poderá ser realizada. Aí reside a discussão acerca da necessidade ou não de obediência ao princípio constitucional da anterioridade tributária.

Em outras palavras, sobrevindo uma lei revogadora de determinado benefício isencional (não oneroso), poderá haver a cobrança imediata do tributo que até então estava acobertado pela isenção, ou, de modo contrário, tal cobrança só poderá ser implementada após a observância do lapso temporal da anterioridade tributária?

É esse questionamento, objeto de árdua divergência doutrinária e jurisprudencial, que será debatido no presente capítulo. A abordagem, é claro, será especificamente voltada às isenções não onerosas, tendo em vista o já comentado caráter de irrevogabilidade das isenções onerosas, o qual repele qualquer indagação acerca do princípio da anterioridade.

4.2 A previsão do Código Tributário Nacional: o art. 104

O art. 178 do Código Tributário Nacional, já analisado, que estabelece a regra relativa à possibilidade de revogação das isenções não onerosas, faz expressa referência ao art. 104, inciso III, do mesmo diploma legal, determinando a sua observância. Observe a redação desse dispositivo:

Art. 104. Entram em vigor no primeiro dia do exercício seguinte àquele em que ocorra a sua publicação os dispositivos de lei, referentes a impostos sobre o patrimônio ou a renda:

I - que instituem ou majoram tais impostos;

II - que definem novas hipóteses de incidência;

III - que extinguem ou reduzem isenções, salvo se a lei dispuser de maneira mais favorável ao contribuinte, e observado o disposto no artigo 178. (Grifou-se).

O comando legal acima reproduzido, alvo de muita discussão doutrinária, surgiu para explicitar o conteúdo do princípio constitucional da anterioridade tributária, estabelecendo os “vários modos pelos quais pode manifestar-se a instituição ou majoração de tributos”. (AMARO, 2011, p. 147, grifos do autor).

Em seu inciso III, o dispositivo relaciona o princípio da anterioridade tributária anual, ou de exercício, à extinção ou redução de isenções, determinando a sua obediência, exceto no caso de a lei dispor de forma mais benéfica ao contribuinte.

Para que se possa melhor compreender esse comando legal, e as discussões que pairam sobre ele, é necessário fazer uma breve análise do cenário de seu surgimento.

O referido artigo 104 foi elaborado sob a vigência da Emenda Constitucional nº 18, de 1965, a qual alterou a Constituição de 1946. Essa emenda foi responsável por introduzir o princípio da anterioridade tributária em nosso ordenamento jurídico, restringindo-o aos impostos incidentes sobre o patrimônio ou a renda. Daí a redação do art. 104, com vistas a regular o mencionado princípio, referir-se apenas a esses impostos. (MACHADO, 2006, p. 113).

Segundo a classificação constante do próprio CTN, os impostos sobre o patrimônio ou a renda são os seguintes: ITR, IPTU, ITCMD, ITBI e IR. Podem ainda ser acrescidos a essa lista o IPVA e o IGF, os quais não foram regulados no CTN.

Somente com o advento da EC nº 1/69, já sob a égide da Constituição de 1967, o princípio da anterioridade foi estendido aos demais tributos, com a previsão de algumas exceções, fórmula mantida pela atual Constituição Federal.

Para parte da doutrina, o art. 104 estaria, em verdade, revogado, não tendo sido recepcionado pela Constituição de 1988. Isso porque o princípio da anterioridade tributária, em sua concepção atual, refere-se a todos os tributos (com algumas expressas exceções), e não apenas aos impostos, muito menos apenas aos impostos sobre o patrimônio ou a renda.

Além disso, a atual previsão constitucional da anterioridade tributária, segundo entendimento majoritário, faz alusão ao diferimento da produção de efeitos da lei instituidora ou majoradora de tributos, ou seja, à sua eficácia, e não à sua entrada em vigor, como prevê o art. 104.

Diferentemente, a doutrina majoritária[13] entende que, embora não tenha sido revogado, o dispositivo do CTN deve receber uma nova interpretação, abrangendo os demais tributos, de forma a se adaptar ao disposto no texto constitucional de 1988. De acordo com esse entendimento, a referência à vigência da lei, ao invés de sua eficácia, seria apenas uma atecnia legislativa, como tantas outras existentes em nosso ordenamento.

Nessa esteira, Paulo de Barros Carvalho (2011, p. 578) esclarece que “a restrição [da regra do art. 104 aos impostos sobre o patrimônio e a renda] prevaleceu apenas até o início da vigência da Carta de 1967, quando o constituinte retomou, com entusiasmo, a linha de primazia da anterioridade. A partir de então o âmbito de abrangência do citado art. 104, III, passou a ser pleno, estendendo-se a qualquer espécie de tributo”.

Luciano Amaro (2011, p. 313), no mesmo sentido, considera que “aquilo que, na época, era aplicável apenas aos tributos sobre renda e patrimônio hoje deve ser entendido como abrangente de todos os tributos protegidos pelo princípio da anterioridade”.

É esse também o entendimento adotado por Hugo de Brito Machado (2013, online):

[...] a interpretação de todo o art. 104 [...] há de respeitar o princípio hierárquico e para tanto há de ser conforme com a Constituição, que consagra o princípio da anterioridade para os tributos em geral, com as ressalvas que estabelece, e não apenas para os impostos sobre o patrimônio e a renda.

Na visão desse autor, o art. 104 teria um efeito meramente didático, tendo em vista que os preceitos nele contidos teriam que ser obedecidos mesmo se o dispositivo não existisse, por força da Constituição Federal. (MACHADO, 2013, online).

De acordo com a tese prevalente na doutrina, portanto, pode-se concluir que o Código Tributário Nacional impõe a observância do princípio da anterioridade tributária anual quando da revogação de uma isenção, independentemente da espécie tributária em questão.

Impende ressaltar que o próprio preceito legal traz duas ressalvas a essa regra.

A primeira refere-se aos casos em que a lei revogadora da isenção estabelecer disposição mais benéfica ao contribuinte, ou seja, quando assegurar um marco temporal mais distante que o primeiro dia do exercício seguinte ao da publicação da lei, aumentando a proteção ao contribuinte.

A segunda ressalva consiste na referência feita no comando legal à observância do disposto no art. 178. Tal referência diz respeito às isenções onerosas, concedidas sob determinadas condições e por prazo determinado, as quais são irrevogáveis.

A despeito do entendimento da doutrina majoritária, o Supremo Tribunal Federal adotou posição no sentido de que o comando inserto no art. 104, inciso III, não se aplicaria ao ICMS, vez que estaria restrito aos impostos sobre o patrimônio e a renda, o que resultou na edição da Súmula nº 615, como será melhor explicitado adiante.

Apenas a título de complementação, cabe ainda mencionar a existência de um outro entendimento doutrinário acerca do art. 104, com menor força, que considera que o dispositivo, exatamente por se referir à vigência da lei, e não à sua produção de efeitos, estaria estipulando uma nova garantia ao contribuinte, além da anterioridade, garantia esta que, aí sim, somente seria aplicável aos impostos sobre o patrimônio ou a renda. (ALEXANDRE, 2012, p. 111).

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4.3 A jurisprudência do STF acerca do tema

O Supremo Tribunal Federal, adotando posição contrária à da doutrina majoritária, vem firmando entendimento no sentido da não observância do princípio constitucional da anterioridade tributária na hipótese de revogação de isenções não onerosas.

Entende, portanto, que, ocorrendo a revogação de uma dada isenção por lei, o tributo respectivo será prontamente exigível, podendo o contribuinte, antes beneficiado pela norma isentiva, ser imediatamente cobrado pelo Fisco, não havendo que se falar em qualquer lapso temporal a ser respeitado.

O fundamento dessa concepção decorre do conceito de isenção adotado pela Suprema Corte, na linha da teoria clássica capitaneada por Rubens Gomes de Souza, como já se teve a oportunidade de analisar, o qual considera a isenção como a dispensa legal do pagamento de tributo devido.

Sendo, portanto, a isenção um mero favor legal que obsta a constituição do crédito tributário, não impedindo a ocorrência do fato gerador e o nascimento da obrigação tributária, na visão do STF, a revogação desse favor legal não pode ser equiparada à instituição, ou mesmo majoração, do tributo.

Isso porque a norma de tributação já teria incidido, de forma que o tributo já existiria. Apenas o seu pagamento teria sido dispensado pela lei isentiva, por meio do impedimento da realização do lançamento. Dessa forma, uma vez extinta a isenção, o tributo voltaria imediatamente a ser devido, podendo ser prontamente cobrado, ainda que no mesmo exercício financeiro em que ocorreu a revogação, ou antes do período de noventena.

Observe a jurisprudência do STF nesse sentido, apresentada em ordem cronológica:

EMENTA: ICM. ISENÇÃO NÃO ONEROSA. REVOGAÇÃO. IMEDIATA EFICACIA E EXIGIBILIDADE DO TRIBUTO. Inaplicação do princípio constitucional da anualidade. Recurso extraordinário conhecido pelo permissivo constitucional da alinea 'd', mas desprovido. (STF, RE 97482/RS, 1ª T., rel. Min. Soares Munoz, j. 26/10/1982).

EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. ISENÇÃO: REVOGAÇÃO. PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE. I – Revogada a isenção, o tributo torna-se imediatamente exigível. Em caso assim, não há que se observar o princípio da anterioridade, dado que o tributo já é existente. II – Precedentes do Supremo Tribunal Federal. III – R.E. conhecido e provido. (STF, RE 204062-2/ES, 2ª T., rel. Min. Carlos Velloso, j. 27/09/1996).

VOTO: [...] se até mesmo a revogação de isenção não tem sido equiparada pelo Tribunal à instituição ou majoração de tributo – ou seja, não se considera válida a assertiva segundo a qual a revogação da isenção equivale à edição de norma de incidência tributária -, parece certo, seguindo essa lógica, que a redução ou a extinção de um desconto para pagamento do tributo sob determinadas condições previstas em lei, como o pagamento antecipada em parcela única (a vista), não pode ser equiparada à majoração do tributo em questão, no caso, o IPVA. (STF, ADI 4016-2/PR, Tribunal Pleno, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 01/08/2008) (Grifou-se).

Essa orientação, há muito tempo firmada, resultou inclusive na elaboração da Súmula nº 615, de 17 de outubro de 1984, referente ao antigo ICM (atual ICMS), com o seguinte teor: “O princípio constitucional da anualidade (§ 29 do art. 153 da Constituição Federal[14]) não se aplica à revogação de isenção do ICM”.

Equivocadamente, a Súmula fala em princípio da anualidade, quando, em verdade, faz referência ao princípio da anterioridade tributária. À época da elaboração desse enunciado (ano de 1984), já não mais existia o princípio da anualidade, o qual foi abolido do ordenamento jurídico brasileiro pela Emenda Constitucional nº 1/69.

A súmula em questão foi redigida com base em entendimento da Suprema Corte de que o art. 104, III, do CTN, mesmo após a ampliação do alcance do princípio da anterioridade a qualquer espécie tributária, teria sua aplicação restrita aos impostos incidentes sobre o patrimônio e a renda, entre os quais não se inclui o ICMS. Dessa forma, a revogação de uma isenção referente a esse imposto não deveria obediência ao princípio da anterioridade.

Para o STF, mesmo com o alargamento do princípio da anterioridade promovido pela Emenda Constitucional nº 1/69 – estendendo-o às demais espécies tributárias –, com relação às leis revogadoras de isenções, “a situação continuou inalterada: o princípio constitucional da anualidade [leia-se: anterioridade] não as alcançava, de sorte que a regra do inciso III do artigo 104 do C.T.N. continuava a persistir por força própria (nada impede que a lei declare que à isenção se aplique a observância da anualidade), mas nos limites por ela mesma estabelecidos: isenção quanto a impostos sobre o patrimônio e a renda”. (STF, RE 97455/RS, 2ª T., rel. Min. Moreira Alves, j. 10/12/1982).

A regra geral, portanto, seria que o princípio da anterioridade tributária não alcança a revogação de isenções, tendo em vista não poder tal revogação ser comparada à instituição ou majoração de um tributo. O disposto no art. 104 do CTN se aplicaria por mera força de lei.

Ante todo o exposto, pode-se afirmar que, para o Supremo Tribunal Federal, diante da revogação de uma isenção não onerosa, o tributo, como regra, passa a ser imediatamente devido, passível de pronta cobrança pelo Fisco, não havendo qualquer ofensa aos comandos previstos no art. 150, inciso III, alíneas “b” e “c”, da CF/88.

A aplicação da anterioridade é admitida pela Corte Maior apenas com relação aos impostos sobre patrimônio e renda, já que expressamente determinada essa aplicabilidade pelo inciso III do art. 104 do CTN. (SEGUNDO, 2013, p. 216).

Muito embora seja essa a posição perfilhada, já há bastante tempo, pelo STF, entende-se pertinente salientar a existência de uma decisão que pareceu caminhar em sentido contrário. Trata-se da decisão proferida no julgamento de medida cautelar da ADI 2325/DF. [15]

A situação em debate no supramencionado julgamento dizia respeitoa uma mudança no sistema de creditamento do ICMS, a qual provocou um aumento da carga tributária a que estavam sujeitos os contribuintes do imposto. A Corte entendeu, de forma unânime, que a modificação no creditamento, quer consubstanciasse a redução de benefício fiscal, quer configurasse a majoração de um tributo, estava sujeita à observância do princípio da anterioridade tributária, uma vez que acarretava maior carga tributária ao contribuinte.

O caso citado, a despeito de não cuidar propriamente de situação de revogação de isenção, revelou importante entendimento da Corte, embora isolado – e em sede de medida cautelar –, no sentido de aplicar o princípio da anterioridade em caso de majoração da carga tributária, independentemente do modo pelo qual essa majoração tenha sido implementada.

Observe a lição dada, em seu voto, pelo Ministro Marco Aurélio, relator do caso em comento:

“[O princípio da anterioridade] Encerra limitação ao poder de tributar, consubstanciando, assim, garantia do contribuinte. Por isso mesmo, há de emprestar-se eficácia ao que nele se contém, independentemente da forma utilizada para majorar-se certo tributo. O preceito constitucional não especifica o modo de implementar-se o aumento. Vale dizer que toda modificação legislativa que, de maneira direta ou indireta, implicar carga tributária maior há de ter eficácia no ano subseqüente àquele no qual veio a ser feita”. (STF, ADI 2325/DF, Tribunal Pleno, rel. Min. Marco Aurélio, j. 23/09/2004) (Grifou-se).

Ressalte-se, novamente, que essa decisão da Suprema Corte não cuidava especificamente de caso de revogação de isenção. Sendo essa a situação, conforme já explanado, o Tribunal consolidou sua jurisprudência em sentido contrário, ou seja, entendendo pela não aplicação do princípio da anterioridade tributária.

Contudo, tal julgado não deixa de ser relevante, por se basear em raciocínio que poderá, quiçá, impulsionar uma futura mudança na jurisprudência da Corte.

4.4 A posição da doutrina

A doutrina majoritária adota posicionamento diametralmente oposto àquele defendido pelo Supremo Tribunal Federal. Entende a grande maioria dos doutrinadores nacionais que, no caso de revogação de uma isenção não onerosa, impõe-se a observância do princípio da anterioridade tributária.

Esse entendimento deriva da concepção adotada pela doutrina no sentido de equiparar a hipótese de revogação de isenção à hipótese de instituição, ou majoração, do tributo. Revogar uma norma isentiva equivaleria a editar uma norma de incidência.

Para José Souto Maior Borges (1969, p. 109), a extinção ou redução de isenções importa em ampliação da área de incidência do tributo, pela captação de matéria imponível até então dele isenta total ou parcialmente, de forma a estarem alcançadas pela regra da anterioridade.

Segundo Paulo de Barros Carvalho (2011, p. 578):

É questão assente que os preceitos de lei que extingam ou reduzam isenções só devam entrar em vigor no primeiro dia do exercício seguinte àquele em que forem publicados. Os dispositivos editados com esse fim equivalem, em tudo e por tudo, aos que instituem o tributo, inaugurando um tipo de incidência.

No mesmo sentido, Hugo de Brito Machado (2006, p. 244), entendendo que a lei isentiva retira uma parcela da hipótese de incidência da lei de tributação, assevera que a revogação dessa lei que concede isenção equivale à criação de tributo, por isto devendo ser observado o princípio constitucional da anterioridade.

Kiyoshi Harada (2013, p. 568) sustenta que, “salvo quando concedida por prazo certo, pode ela [a isenção] ser revogada a qualquer tempo, observado, entretanto, o princípio da anterioridade”.

Do mesmo modo entende Hugo de Brito Machado Segundo (2013, p. 216):

As situações antes contempladas pela isenção passam a ser, a partir de então [a partir da revogação da norma isentiva], abarcadas pela norma de tributação. Tem-se, portanto, que em face delas a norma tributária, que antes não incidia, passa doravante a poder incidir. Isso equivale, em todos os aspectos, à edição de lei instituindo novo tributo [...]. Não há motivos, portanto, para não se sujeitar à anterioridade.

Para Luciano Amaro (2011, p. 311), a diferença entre a revogação de norma isentiva e a edição de norma de incidência seria apenas de técnica legislativa. As duas se equivaleriam. Explica o referido autor:

Se o fato “a” estava fora do campo da incidência (porque ele, pura e simplesmente, não fora abrangido pela regra de incidência, ou porque, embora abrangido pelo gênero tributado, fora excepcionado da incidência por norma de isenção), tanto a edição de regra que o tribute como a revogação da norma que o isentava implica seu ingresso no rol dos fatos tributáveis.

Nessa esteira, defende o autor que a revogação de isenção, por ter o mesmo efeito da edição da regra de tributação, está sujeita à anterioridade tributária, como inclusive prevê o art. 104, inc. III, do CTN.

Interessante ainda a observação feita por Amaro (2011, p. 312) destacando o fato de que, segundo Rubens Gomes de Souza, o Código Tributário Nacional, com a previsão do art. 104, teve a intenção específica de contrariar a jurisprudência pátria que entendia que a revogação de isenção não se equipararia à criação de tributo novo.

Ricardo Lobo Torres (2003, p. 282), à luz do mencionado art. 104, entende que, após a Constituição de 1967/1969 – que estendeu o princípio da anterioridade para além dos impostos sobre o patrimônio e renda –, todos os demais impostos, com a ressalva dos excepcionados pela própria Constituição, sujeitam-se ao princípio da anterioridade, “transferindo-se a eficácia da norma que revoga a isenção para o dia 1º de janeiro do ano seguinte”.

No mesmo sentido, Aliomar Baleeiro (2003, p. 951) assevera que, por força do art. 104, III, do CTN, a lei que revoga total ou parcialmente uma isenção não tem eficácia imediata, só sendo executada no primeiro dia do exercício financeiro seguinte àquele em que ocorra a sua publicação.

Segundo Roque Antonio Carrazza (2012, p. 240), a lei que afasta ou diminui uma isenção assemelha-se à que cria ou aumenta um tributo, tendo em vista acarretarem o mesmo encargo ao contribuinte, atingindo seu patrimônio de igual modo. Para o autor, “a aptidão para tributar compreende a de isentar, como verso e anverso de idêntica medalha”, de modo que devem também as isenções se sujeitar aos princípios do sistema constitucional tributário brasileiro, inclusive o da anterioridade.

O referido doutrinador propõe ainda um “outro caminho” para se chegar à mesma conclusão. Confira-se:

A lei que concede uma isenção revoga (no todo ou em parte) lei anterior que mandava tributar (se e quando ocorrido determinado fato). Pois bem, revogada a lei isentante, nem por isto a primitiva lei tributária voltará a vigorar. Por quê? Simplesmente porque não há o chamado efeito repristinatório no direito tributário brasileiro. [...] De conseguinte, revogada a lei isentiva, e restabelecido o dever de pagar o tributo – pela nova lei, que o recria –, é inafastável a incidência do princípio da anterioridade, que encerra, para o contribuinte, uma garantia de estabilidade da ordem jurídica. (CARRAZZA, 2012, p. 242).

Dessa forma, para o tributarista, a vedação do efeito repristinatório da lei, prevista no art. 2º, § 3º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro[16], conduz ao entendimento de que a lei de tributação, ao sofrer a incidência da norma isentiva, teria sido revogada, não podendo voltar a produzir efeitos diante de uma posterior revogação da isenção. A lei revogadora da isenção, portanto, equivaleria à criação de uma nova hipótese de incidência tributária, sujeitando-se ao princípio da anterioridade.

Diante do exposto, infere-se que é firme o entendimento doutrinário no sentido de que a cobrança imediata de um tributo, na hipótese de revogação da norma isentiva, ofende o princípio da anterioridade tributária, disposto no art. 150, inc. III, “b” e “c”, da Constituição Federal, embora, como visto, não seja essa a posição perfilhada pela Suprema Corte brasileira.

4.5 A necessária observância do princípio da anterioridade           

Como se pôde perceber, é frequente o entendimento de que, consoante a tese adotada para definir o instituto da isenção, varia a conclusão acerca da necessidade de observância ou de não observância do princípio da anterioridade tributária na hipótese de revogação de isenções. Partindo-se de premissas diferentes, chegar-se-ia a conclusões diferentes.

Adotando-se a tese clássica, que considera a isenção como a dispensa legal do pagamento de tributo devido, a conclusão seria pela não aplicação da anterioridade. Isso porque se entende que, na hipótese de uma isenção, a norma de tributação já teria incidido, propiciando a ocorrência do fato gerador e o surgimento da obrigação fiscal. A isenção impediria apenas a constituição do crédito tributário por meio do procedimento de lançamento. Por conseguinte, com a revogação da norma isentiva, a obrigação fiscal, que já era existente, poderia ser imediatamente exigida pelo Fisco, não podendo ser comparada à majoração ou instituição de um novo tributo.

Em contrapartida, de acordo com a tese doutrinária moderna, a isenção corresponderia a uma hipótese de não incidência tributária, ou seja, impediria a incidência da norma de tributação. À vista disso, não haveria a ocorrência do fato gerador e nem o surgimento da obrigação fiscal. Nesse sentido, a revogação da norma isentiva equivaleria à nova instituição do tributo, não podendo haver a cobrança antes do lapso temporal imposto pelo princípio da anterioridade. Conclui-se, portanto, segundo esse entendimento, pela aplicação da anterioridade.

O que aqui se pretende demonstrar é que, em verdade, independentemente da tese doutrinária que se deseje utilizar para conceituar o instituto da isenção, deve-se chegar à mesma conclusão: a necessária observância do princípio constitucional da anterioridade tributária.

Nesse sentido, ainda que seja adotada a definição de isenção como um mero favor legal que dispensa o pagamento do tributo – como o faz o STF –, a anterioridade deve ser obedecida, sob pena de se ter entendimento que afronta diretamente o texto constitucional.

Conforme já explanado, a norma que prevê a anterioridade tributária na Constituição Federal de 1988 consiste em dispositivo que consagra direito fundamental do contribuinte, segundo entendimento da Suprema Corte brasileira, verdadeira cláusula pétrea, insuscetível de supressão via emenda constitucional.

Enquanto corolário do princípio da segurança jurídica, o princípio da anterioridade existe para proteger o cidadão-contribuinte de alterações tributárias mais gravosas. O sentido da norma constitucional é evitar a “tributação de surpresa” (CARRAZZA, 2012, p. 212), impedindo a instituição ou majoração de tributos no curso do exercício financeiro, ou antes de decorridos 90 dias da publicação da lei instituidora ou majoradora.

Nas palavras de Leandro Paulsen (2005, p. 131), “a anterioridade se põe para dar certeza quanto ao direito aplicável no sentido de assegurar o conhecimento antecipado de qualquer carga tributária nova, assim entendida aquela que inexistiria não fosse o novo diploma legal instituidor ou majorador”.

Oportuna ainda a lição de Hugo de Brito Machado (2004, p. 108):

Os princípios constitucionais foram construídos para proteger o cidadão contra o Estado, e o princípio da anterioridade tem por finalidade essencial evitar que no curso do ano seja o contribuinte surpreendido com um ônus tributário a mais, a dificultar o desenvolvimento de suas atividades.

Ora, se o princípio da anterioridade objetiva exatamente preservar o contribuinte diante de leis novas que venham a mais pesadamente onerá-lo, como retirar do seu âmbito de aplicação as hipóteses de revogação de isenção? Uma lei revogadora de isenção, sem dúvidas, acarreta o aumento da carga tributária a que está sujeito o contribuinte, um novo ônus tributário, agravando a sua situação financeira.

Diante disso, não há como ser negada a necessidade de observância da anterioridade tributária. Conforme aduz Roque Antonio Carrazza (2012, p. 241):

Outra postura colocaria o contribuinte sob o guante da insegurança, ensejando a instalação do império da surpresa nas relações entre ele o Estado. Ao grado de interesses passageiros seria possível afugentar a lealdade da ação estatal, contrariando o regime de direito público e o próprio princípio republicano, que a anterioridade reafirma.

O posicionamento adotado pelo STF acerca do assunto, permitindo que seja realizada a cobrança imediata de um tributo, após a revogação de uma isenção, fere gravemente o princípio constitucional da anterioridade, bem como todos os valores que esse princípio busca proteger.

Conforme já destacado, ainda que o Supremo entenda que o instituto da isenção não impede a incidência da norma de tributação, com o consequente nascimento da obrigação tributária, esse pensamento não exclui a observância do preceito constitucional contido no art. 150, inciso III, alíneas “b” e “c”, da CF/88.

É inegável o fato de que, independentemente de já ter ou não incidido a norma impositiva tributária, a consequência da extinção da isenção será a mesma: o aumento da carga tributária que recai sobre o contribuinte.

A esse propósito, oportuna se faz a lição de Luciano Amaro (2011, p. 312), criticando o entendimento da Suprema Corte brasileira:

Os fundamentos dessa jurisprudência partem de premissas equivocadas, que, mesmo na hipótese de serem assumidas como corretas, não levariam às conclusões que foram firmadas pelo Supremo. Já alhures procuramos demonstrar que, mesmo quando se admita a consagração, pelo Código Tributário Nacional, do conceito de isenção como “dispensa de tributo devido” (coisa que até Rubens Gomes de Sousa negou, ao dizer que o Código não tomou partido nessa discussão), ainda assim não se pode culpar o Código de ter propiciado oblíquo desrespeito ao princípio da anterioridade na hipótese em exame, pois o seu art. 104, no item III, cuidou adequadamente da matéria, quando explicitou que a revogação de isenção de tributo sujeito à anterioridade só autoriza a tributação no exercício subsequente. E mesmo que não o dissesse, não se poderia dar ao Código Tributário Nacional interpretação que pudesse ferir, ainda que indiretamente, um princípio constitucional.

Aduz razão ao entendimento acima reproduzido. A interpretação adotada pela Suprema Corte não levou em conta o verdadeiro espírito da norma constitucional. A anterioridade existe e deve ser aplicada com a finalidade de resguardar o contribuinte, permitindo o planejamento de suas atividades econômicas. Se, com a revogação da norma isentiva, surge para ele um novo ônus patrimonial, com o estabelecimento de carga tributária que anteriormente não existia, impõe-se o respeito ao princípio da anterioridade.

Embora a Constituição Federal de 1988 não preveja de forma expressa a aplicação desse princípio ao caso de revogação de isenção, essa conclusão se manifesta de forma espontânea, decorrendo da própria razão de ser da norma constitucional. Afinal, como assevera Carrazza (2012, p. 238), “as normas jurídicas devem ser interpretadas mais por seus fins, pelas razões que nortearam sua edição (ratio iuris), do que pelas palavras que a integram”.

Deve-se, portanto, privilegiar a realização de uma interpretação teleológica da norma constitucional que prevê a anterioridade, isto é, interpretação que leve em conta a finalidade a que ela se dirige.

Não bastasse isso, o próprio Código Tributário Nacional, como ressaltado acima por Luciano Amaro, não ficou omisso com relação ao assunto, tendo em vista ter assegurado a obediência à anterioridade tributária, em seu art. 104, inc. III, no tocante às hipóteses de revogação de isenções não onerosas.

Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AGUIAR, Rebeca Lima. O princípio da anterioridade tributária e a revogação de isenções não onerosas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4660, 4 abr. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/47875. Acesso em: 23 dez. 2024.

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