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O princípio da anterioridade tributária e a revogação de isenções não onerosas

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04/04/2016 às 11:55
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O entendimento jurisprudencial adotado confere ao princípio da anterioridade interpretação que não se coaduna com a razão de ser da norma constitucional. A anterioridade deve sim ser observada no momento da revogação de uma isenção, tendo em vista que essa situação acarreta, inegavelmente, uma imposição tributária nova e inédita.

1 INTRODUÇÃO   

Entre os princípios jurídicos que compõem o sistema constitucional tributário brasileiro, consagrados pela Constituição Federal de 1988, o princípio da anterioridade destaca-se como postulado garantidor da segurança jurídica do cidadão-contribuinte, resguardando-o diante de alterações da legislação tributária que venham a onerar mais gravemente o seu patrimônio.   

Busca a anterioridade assegurar ao contribuinte a previsibilidade e o conhecimento antecipado quanto à instituição ou majoração de tributos que lhe serão exigidos pelo Fisco.

No presente trabalho, analisa-se a relação existente entre o supramencionado princípio e a revogação de isenções não onerosas, buscando identificar, mais particularmente, se deve ou não haver observância ao comando constitucional nessas situações.

A doutrina e a jurisprudência pátrias possuem entendimentos diversos acerca do assunto. O Supremo Tribunal Federal acolhe posicionamento contrário à aplicação da anterioridade tributária em casos de revogação de benefício isencional. A doutrina majoritária, em contrapartida, defende a observância do princípio nas mesmas situações.

Trata-se de questão de grande relevância, não só no aspecto teórico, mas também na prática jurídica. Por abordar a relação que se estabelece entre o Fisco e os contribuintes, a discussão acarreta importantes reflexos na vida social.

A temática foi desenvolvida por intermédio de pesquisa doutrinária e jurisprudencial, buscando verificar qual entendimento melhor concretiza o texto constitucional, tão carente de efetividade nos dias atuais.

Em um momento inicial, são analisadas as chamadas limitações constitucionais do poder de tributar, entre as quais se inclui o princípio da anterioridade tributária. Passa-se, então, a uma abordagem detalhada desse princípio, explorando seu conteúdo, suas espécies, sua diferenciação para com o antigo princípio da anualidade, bem como os tributos que foram ressalvados de sua aplicação pela própria Constituição Federal. Cuida-se ainda da análise da anterioridade enquanto direito fundamental do contribuinte. Esse o conteúdo do capítulo primeiro.

Em seguida, no segundo capítulo, são abordadas as hipóteses de exclusão do crédito tributário: a anistia e a isenção. Centra-se a atenção nessa segunda modalidade, explicitando o seu conceito – e as diversas controvérsias que sobre ele pairam –, sua distinção com outras figuras jurídicas (imunidade e alíquota zero) e sua classificação de acordo com o caráter de onerosidade. Por fim, analisa-se a revogação de isenções, verificando as situações em ela poderá ou não ocorrer.

No terceiro e último capítulo, são abordadas as controvérsias acerca da necessidade ou não de observância do princípio da anterioridade na hipótese de revogação de isenções. Apresentam-se as posições defendidas pela Suprema Corte e pelos doutrinadores brasileiros acerca do assunto, explicitando os argumentos que fundamentam tais entendimentos. Enfim, destaca-se a necessidade de solucionar a celeuma pautando-se na interpretação que confira ao princípio a aplicação mais consentânea ao seu caráter de fundamentalidade no ordenamento jurídico.


2 A ANTERIORIDADE TRIBUTÁRIA COMO LIMITAÇÃO CONSTITUCIONAL DO PODER DE TRIBUTAR

O Estado, tendo em vista o atendimento de suas finalidades precípuas, bem como a viabilização de sua própria manutenção, necessita captar recursos financeiros que possibilitem o alcance de tais fins. São os tributos a principal fonte estatal de receitas, por meio dos quais o Estado, valendo-se de seu poder coercitivo, intervém no patrimônio dos contribuintes, cobrando-lhes prestações pecuniárias previstas em lei.

Correspondem os tributos, portanto, às chamadas receitas derivadas, quais sejam, aquelas que derivam do poder de autoridade do Estado, que se utiliza de suas prerrogativas, lastreadas na noção de interesse público, para extrair recursos do patrimônio dos particulares. Contrapõem-se essas às receitas originárias, que decorrem da exploração de atividade econômica por parte do Estado, o qual atua, nesse caso, sob o regime de direito privado. (HARADA, 2013, p. 41).

O poder do Estado de impor e exigir tributos das pessoas a ele subordinadas deriva diretamente da Constituição Federal, devendo sempre ser exercido por intermédio de lei. Tal poder de tributar encontra sua justificativa no âmbito da soberania do Estado, conforme preleciona Hugo de Brito Machado (2006, p. 53):

“No exercício de sua soberania o Estado exige que os indivíduos lhe forneçam os recursos de que necessita. Institui o tributo. O poder de tributar nada mais é que um aspecto da soberania estatal, ou uma parcela desta.”

Contudo, mais do que uma parcela da soberania estatal, o poder de tributar pode também ser considerado como uma exteriorização do próprio Estado Democrático de Direito, na medida em que tal poder advém do consentimento da população, o que se dá por intermédio da lei. Fala-se em “teoria do tributo consentido, vale dizer, o postulado segundo o qual o sujeito somente é tributado se anuir, se concordar com a tributação, o que se dá com a produção legislativa, dentro de uma democracia representativa”. (FREITAS, 2012, online).

Ao tratar do fundamento do poder de tributar, portanto, deve-se ir além da ideia de soberania do Estado, tendo relevância também a noção de consentimento popular, representada pela necessidade de lei, o que conduz à conclusão de ser a relação de tributação uma relação eminentemente jurídica.

É evidente que esse poder estatal, uma vez que atinge diretamente a esfera privada dos contribuintes, especialmente no tocante ao seu direito de propriedade, constitucionalmente garantido (art. 5º, XXII, da CF[1]), não pode ser exercido como um poder absoluto e arbitrário, de onde advém a necessidade de limitar-se o seu exercício.

Conforme assevera Aliomar Baleeiro (1977, p. 2), “o sistema tributário movimenta-se sob complexa aparelhagem de freios e amortecedores, que limitam os excessos acaso detrimentosos à economia e à preservação do regime e dos direitos individuais”.

Essa necessidade de limitação ganha contornos ainda mais notáveis quando se tem em mente a situação específica de nosso país, em que os contribuintes são submetidos a uma elevada carga tributária, sem que se veja a contrapartida governamental.

Nesse sentido, buscando restringir o poder estatal de impor tributos em face dos contribuintes, o legislador constituinte originário de 1988 estabeleceu na Constituição Federal brasileira, no âmbito do Capítulo “Do Sistema Tributário Nacional”, integrante do Título VI da CF/88, as denominadas “limitações constitucionais do poder de tributar”.

Segundo Machado (2006, p. 286), “em sentido amplo, é possível entender-se como limitação ao poder de tributar toda e qualquer restrição imposta pelo sistema jurídico às entidades dotadas desse poder.”

Tais limitações consubstanciam-se, basicamente, nos princípios e nas imunidades tributárias, dispostos nos artigos 150 a 152 da Constituição Federal. Enquanto as imunidades funcionam como regras de não incidência tributária, os princípios atuam como regras norteadoras da cobrança tributária.

Impende destacar que referidas garantias previstas em nossa Carta Magna, em especial na Seção intitulada “Das Limitações do Poder de Tributar”, constituem um rol meramente exemplificativo, e não exaustivo, como se pode inferir da própria redação do art. 150 da CF/88, que assim se inicia: “sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte [...]”.

Os princípios constitucionais tributários identificam-se, como visto, como normas que limitam o poder de tributar, estabelecendo diretrizes que regulam a cobrança de tributos por parte do Estado, ficando este vinculado à sua obediência. Servem, portanto, como instrumentos de proteção do contribuinte.

Na medida em que a relação de tributação estabelecida entre Estado e contribuinte configura uma relação jurídica, e não meramente de poder, tal relação tem de se submeter ao regramento jurídico. São os princípios tributários as mais importantes prescrições jurídicas disciplinadoras dessa relação. (MACHADO, 2004, p. 17).

Dentre os mais importantes, pode ser citado o princípio da anterioridade tributária, ao qual se dá destaque no presente trabalho.

Merece menção uma interessante discussão doutrinária, embora ainda pouco explorada. Trata-se da natureza normativa dos princípios constitucionais tributários.

Não obstante seja genericamente utilizada a expressão “princípios tributários”, parcela da doutrina indaga acerca da real natureza de alguns desses princípios constitucionais relativos à tributação, considerando que não seriam propriamente princípios, mas sim regras. Seria esse o caso do princípio da anterioridade.

De acordo com tradicional lição doutrinária, inspirada nos ensinamentos de Robert Alexy, as normas jurídicas podem ser subdivididas em duas espécies: regras e princípios. As primeiras seriam normas que se aplicam na base do “tudo ou nada”, contendo determinações, sendo sempre satisfeitas ou não satisfeitas. Os últimos, por sua vez, seriam normas passíveis de satisfação em variados graus.

Os princípios, nessa concepção, são considerados como mandamentos de otimização, pois “ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades fáticas e jurídicas existentes”. (ALEXY, 2008, p. 90).

Pois bem, segundo parte da doutrina, o princípio da anterioridade seria um exemplo de princípio tributário que, em verdade, teria natureza de regra, tendo em vista não ser passível de ponderação, sendo aplicável ou não a determinado caso concreto.

Em sentido oposto, a isonomia, por exemplo, consistiria verdadeiramente em um princípio, na medida em que permitiria a realização de um juízo de ponderação em sua aplicação, conforme esclarece Ricardo Alexandre (2012, p. 80, grifos do autor):

A título de exemplo, a isonomia (tratar igualmente quem é igual, e desigualmente quem é desigual, na proporção das desigualdades havidas) seria um verdadeiro princípio, pois pode ser objeto de ponderação, permitindo a concessão de uma isenção que beneficie grandes empresas para que estas se instalem em regiões subdesenvolvidas, tudo para garantir um objetivo traçado pela própria Constituição, qual seja estimular o desenvolvimento equilibrado entre as diversas regiões do País.

A despeito da discussão acima referida, prefere-se utilizar a nomenclatura tradicional, já comumente consagrada, denominando as limitações constitucionais ao poder de tributar, inclusive a da anterioridade, como “princípios tributários”.

Isso porque o termo “princípio” carrega em si mesmo um importante significado, na medida em que conduz à noção de relevância de um determinado conceito, condizente, portanto, com a magnitude que deve ser dada aos princípios constitucionais tributários. (SAMPAIO, 2010, p. 21).

Apenas alerta-se, portanto, para o fato de não ser utilizado, no presente trabalho, o termo “princípio” no sentido da classificação proposta por Robert Alexy.

2.1 Noções gerais sobre o princípio da anterioridade

No campo do Direito, o princípio da segurança jurídica tem papel de destaque como postulado garantidor da estabilidade das relações sociais, sendo princípio essencial e inerente ao Estado Democrático de Direito, com caráter inclusive de direito fundamental, materializado no art. 5º, inc. XXXVI, da CF/88.

Conforme esclarece Hugo de Brito Machado Segundo (2012, p. 19), a segurança jurídica delimita o alcance do princípio fundamental da justiça, sendo princípio “que impõe a atribuição da maior previsibilidade e estabilidade possível às relações humanas”.

Tal princípio “visa a proteger e preservar as justas expectativas das pessoas. Para tanto, veda a adoção de medidas legislativas, administrativas ou judiciais capazes de frustrar-lhes a confiança que depositam no Poder Público”. (CARRAZZA, 2012, p. 464).

Trata-se de postulado considerado como princípio geral do Direito, com reflexos em todas as áreas que o direito abrange, significando o mínimo de certeza positivada em um ordenamento. (MELO, 2006, online).

O campo tributário, como não podia deixar de ser, não fica alheio a essa ideia de segurança jurídica, a qual, ao contrário, assume notável relevância.

Para Ricardo Alexandre (2012, p. 98), “em matéria tributária, o princípio ganha colorido especial, pois, para o contribuinte, não basta a segurança com relação aos fatos passados (irretroatividade da lei), também se faz necessário um mínimo de previsibilidade quanto ao futuro próximo”.

Leonardo Buissa Freitas (2012, online), relacionando a tributação com o princípio matriz da dignidade da pessoa humana, confirma a relevância do princípio da segurança jurídica no âmbito tributário:

[...] a tributação fundamentada na segurança jurídica é capaz de respeitar a dignidade da pessoa humana. Surpresas, normalmente desagradáveis, são inconciliáveis com o Estado Democrático de Direito. Costumo expressar que a democracia é um regime monótono, sem surpresas, sem solavancos, sem emoção, eis que tudo já está previsto, anterior e expressamente, nos claros ditames da lei. A insegurança, por seu turno, é inerente aos regimes de exceção.

É nesse contexto que exsurge o princípio da anterioridade tributária, como um corolário do princípio da segurança jurídica. Ao utilizar-se de seu poder de tributar, o Estado impõe aos cidadãos encargos que recaem diretamente sobre o seu patrimônio, afetando, por conseguinte, o seu próprio sustento. Revela-se, portanto, a necessidade de se proteger os contribuintes diante da inesperada imposição, ou majoração, de tributos.

É preciso que seja dada ao contribuinte uma margem de tempo suficiente para que ele possa se preparar diante de uma nova cobrança, permitindo-lhe a realização de um planejamento econômico, de forma a não ver suas finanças comprometidas pela tributação.

O princípio da anterioridade tributária é o postulado responsável por fornecer essa garantia temporal ao contribuinte, assegurando a ele o prévio conhecimento dos tributos que lhe serão cobrados no exercício financeiro seguinte. Refere-se, portanto, o princípio da anterioridade ao aspecto temporal da cobrança tributária. Nesse sentido, as ponderações de Sabbag (2014, p. 88):

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Enquanto o estudo da legalidade tributária leva o aplicador da norma a entender, na tributação, a extensão semântica do vocábulo “como”, a análise da anterioridade tributária permitirá ao intérprete captar, em idêntica seara, a dimensão vocabular do termo “quando”. Explicando: a legalidade tributária está para a “causa”, enquanto a anterioridade tributária se liga ao “efeito”; a primeira diz com a resposta à indagação “o que me imporá o pagamento?”, enquanto a segunda atrela-se à solução do questionamento “quando pagarei?”.

Evita-se, dessa forma, com a aplicação do princípio em tela, que seja o sujeito passivo da obrigação tributária surpreendido com inesperada cobrança, sem que lhe seja concedido um prazo razoável para que possa se planejar economicamente.

Nas palavras de Roque Antonio Carrazza (2012, p. 212), “a anterioridade volta-se para fatos futuros, dando ao contribuinte a previsibilidade do que o aguarda no próximo exercício financeiro – e, portanto, condições objetivas de se programar e preparar para bem cumprir as novas exigências fiscais”. Por esse motivo, é comum a utilização pela doutrina da denominação princípio da não surpresa, ao referir-se ao princípio da anterioridade.

Conclui-se, portanto, que, em matéria tributária, o princípio da anterioridade – ao lado do princípio da irretroatividade – traduz a noção de segurança jurídica, corporificando a ideia de ser garantido aos contribuintes um mínimo de previsibilidade diante de alterações tributárias mais gravosas.[2]

Leandro Paulsen (2005, p. 128), indo além desses sentidos de “previsibilidade” e “não surpresa” usualmente associados ao princípio da anterioridade, propõe a noção de “conhecimento antecipado”:

Mais do que previsibilidade e do que não-surpresa, pois, cuida-se de assegurar ao contribuinte o conhecimento antecipado daquilo que, sendo decorrente de lei estrita devidamente publicada, lhe será com certeza imposto, incidindo sobre os atos que então venham a ser praticados ou sobre os fatos ou situações que se verifiquem em conformidade com a previsão legal, após o decurso de noventa dias e a virada do exercício ou apenas do decurso de noventa dias em se tratando de contribuições de seguridade social. (Grifou-se).

Exemplificando seu pensamento, refere-se o mencionado autor a um hipotético caso de tramitação de projeto de lei amplamente discutido nos meios de comunicação. Não haveria que se falar, nesse caso, em evitar a surpresa do contribuinte no que se refere ao aumento da carga tributária, mas, ainda assim, seria a ele garantido um lapso temporal entre a publicação da lei e a cobrança do tributo, a fim de permitir sua preparação financeira para aquilo que já sabe antecipadamente que lhe será imposto.

Nessa concepção, portanto, o princípio da anterioridade seria uma forma de assegurar ao contribuinte o conhecimento antecipado de futuras alterações tributárias.

O princípio da anterioridade encontra-se insculpido na Constituição Federal em seu art. 150, inc. III, al. “b” e “c”, podendo ser classificado em duas espécies: a anterioridade anual, também chamada anterioridade de exercício, e a anterioridade nonagesimal, também denominada anterioridade qualificada, ou mínima.

2.2 O princípio da anterioridade anual

Também chamada de anterioridade comum ou de exercício, a anterioridade anual encontra previsão no art. 150, inc. III, al. “b”, da Constituição Federal de 1988, nos seguintes termos:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

  III - cobrar tributos:

[...]

b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou;

Da análise do dispositivo acima colacionado, depreende-se que os entes federados, ao instituírem ou majorarem tributos por meio de lei – como exige o princípio da legalidade[3]–, somente podem cobrá-los no exercício financeiro seguinte àquele em que a referida lei houver sido publicada.

Por exercício financeiro, deve-se entender o período compreendido entre 1º de janeiro e 31 de dezembro, coincidente com o ano civil comum, conforme dispõe o art. 34 da Lei nº 4320/64, diploma normativo que veiculou normas gerais de Direito Financeiro.

Exemplificando, imagine-se a hipótese de uma Lei X, majoradora de determinado tributo, publicada em 15 de abril de 2014. Pois bem, aplicando-se a anterioridade anual, a referida majoração não poderia ser exigida no transcorrer do exercício financeiro de 2014, só podendo haver a cobrança do tributo majorado a partir de 1º de janeiro de 2015.

Observe-se que o marco temporal que determina a aplicação do referido princípio corresponde à data da publicação da lei instituidora ou majoradora de tributos.

Pelo postulado da anterioridade anual, portanto, a Constituição Federal determina a observância de um certo lapso temporal para que a lei possa começar a produzir seus efeitos, possibilitando a cobrança do gravame tributário, ou seja, há uma postergação ou diferimento da eficácia da lei instituidora ou majoradora de tributos. (CARRAZZA, 2012, p. 213).

Repita-se, o que se adia com a observância da anterioridade é a eficácia da lei tributária instituidora ou majoradora, e não a sua vigência, que pode se dar, inclusive, na data da própria publicação da lei, se ela assim estabelecer.[4]

É imprescindível compreender ainda que, tratando-se de princípio que visa à proteção do contribuinte, a anterioridade não será aplicada aos casos de diminuição ou manutenção da carga tributária, só tendo lugar quando se tratar de instituição ou majoração de tributos, como aduz o texto constitucional.

Dessa forma, sobrevindo a publicação de uma lei que extinga determinado tributo, ou o reduza, sua aplicação poderá ser imediata, não havendo que se falar em diferimento de sua eficácia.

Isso porque as mudanças tributárias implementadas, por reduzirem a carga tributária, beneficiam o contribuinte, de forma a não mais subsistir o fundamento justificador da observância do princípio da anterioridade. Não havendo a imposição de qualquer onerosidade, a produção imediata de efeitos da lei de nenhuma forma representaria ofensa à segurança jurídica do contribuinte.

A esse propósito, salienta Eduardo Sabbag (2014, p. 93) que: “[...] se de algum modo a lei beneficiar o contribuinte, rechaçado estará o princípio da anterioridade, pois tal postulado milita em favor do contribuinte, e nunca em seu detrimento.”

É nesse sentido que o Supremo Tribunal Federal entende que a atualização monetária do valor de um tributo não se sujeita ao princípio da anterioridade, já que mera atualização não pode ser confundida com majoração. É pacífica a jurisprudência do STF nesse sentido:

EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO - MATÉRIA TRIBUTÁRIA - SUBSTITUIÇÃO LEGAL DOS FATORES DE INDEXAÇÃO - ALEGADA OFENSA ÀS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO ADQUIRIDO E DA ANTERIORIDADE TRIBUTÁRIA - INOCORRÊNCIA - SIMPLES ATUALIZAÇÃO MONETÁRIA QUE NÃO SE CONFUNDE COM MAJORAÇÃO DO TRIBUTO - RECURSO IMPROVIDO . - Não se revela lícito, ao Poder Judiciário, atuar na anômala condição de legislador positivo, para, em assim agindo, proceder à substituição de um fator de indexação, definido em lei, por outro, resultante de determinação judicial. Se tal fosse possível, o Poder Judiciário - que não dispõe de função legislativa - passaria a desempenhar atribuição que lhe é institucionalmente estranha (a de legislador positivo), usurpando, desse modo, no contexto de um sistema de poderes essencialmente limitados, competência que não lhe pertence, com evidente transgressão ao princípio constitucional da separação de poderes. Precedentes . - A modificação dos fatores de indexação, com base em legislação superveniente, não constitui desrespeito a situações jurídicas consolidadas ( CF , art. 5º , XXXVI ), nem transgressão ao postulado da não-surpresa, instrumentalmente garantido pela cláusula da anterioridade tributária ( CF , art. 150 , III , b ) . - O Estado não pode legislar abusivamente, eis que todas as normas emanadas do Poder Público - tratando-se, ou não, de matéria tributária - devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do "substantive due process of law" ( CF , art. 5º , LIV ). O postulado da proporcionalidade qualifica-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais. Hipótese em que a legislação tributária reveste-se do necessário coeficiente de razoabilidade. Precedentes. (STF, RE-AgR 200844 PR, 2ª T., rel. Min. Celso de Mello, j. 25/06/2002) (Grifou-se).

Da mesma forma, posiciona-se o STF no sentido de que, tratando-se de lei que se limita a alterar o prazo para recolhimento de um tributo, não há exigência de observância do princípio da anterioridade, tendo em vista que, na visão da Suprema Corte, a antecipação do pagamento não agravaria a situação do contribuinte. Confira-se nas decisões abaixo colacionadas:

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. TRIBUTÁRIO. ALTERAÇÃO DO PRAZO PARA O RECOLHIMENTO DO TRIBUTO. OFENSA AO PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE. ALEGAÇÃO IMPROCEDENTE.

A regra legislativa que se limita a mudar o prazo de recolhimento da obrigação tributária, sem qualquer outra repercussão, não se submete ao princípio da anterioridade, por não implicar majoração do tributo. Precedentes. (STF, RE-AgR 278557 SP, 2ª T., rel. Min. Maurício Corrêa, j. 21/11/2000)

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL DESTINADA AO CUSTEITO DA SEGURIDADE SOCIAL. ANTERIORIDADE NONAGESIMAL. REDUÇÃO DO PRAZO DE RECOLHIMENTO. CONSTITUCIONALIDADE. PRECEDENTES.

1. O Supremo Tribunal Federal fixou entendimento no sentido de que a alteração do prazo para recolhimento das contribuições sociais, por não gerar criação ou majoração de tributo, não ofende o Princípio da Anterioridade Tributária [artigo 195, § 6º, CB/88]. Agravo regimental a que se nega provimento. (STF, RE-AgR 295992 SC, 2ª T., rel. Min. Eros Grau, j. 10/06/2008)

Tal entendimento culminou, inclusive, na edição da Súmula nº 669 do STF, de 2003, com os seguintes dizeres: “Norma legal que altera o prazo de recolhimento da obrigação tributária não se sujeita ao princípio da anterioridade”.

Roque Antonio Carrazza (2012, p. 237), em posicionamento essencialmente contrário ao adotado pela Corte Maior, entende que eventuais alterações na forma e no prazo de pagamento de tributos, com reflexos negativos ao contribuinte, devem total observância ao princípio da anterioridade. Embora não haja previsão expressa na CF/88 nesse sentido, tal conclusão decorreria espontaneamente da finalidade inerente à norma que prescreve a anterioridade tributária.

Segundo o referido autor, “alterar in pejus, em meio ao exercício financeiro, a forma de pagamento do tributo, e fazer com que ela incida de imediato, é anular, à sorrelfa, as garantias do princípio da anterioridade”. (CARRAZZA, 2012, p. 237).

Cabe ainda fazer menção a um outro entendimento adotado pela Suprema Corte, por ocasião do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4016-2/PR[5], onde restou consagrada a orientação de que o princípio da anterioridade também não alcança a redução ou extinção de desconto previsto legalmente para pagamento de um tributo.

Entendeu o Tribunal que a lei que reduzisse ou suprimisse desconto não poderia ser equiparada à lei majoradora do tributo, podendo, portanto, ter aplicação imediata, sem submeter-se ao princípio da anterioridade tributária.

2.2.1 Exceções à anterioridade anual

Não obstante o inciso III do art. 150 da Constituição estabeleça genericamente vedação à cobrança de “tributos”, o próprio texto constitucional prevê algumas exceções ao princípio da anterioridade anual.

O estabelecimento dessas exceções se justifica à medida que, “em certas circunstâncias relacionadas com políticas públicas sujeitas à volatilidade que caracterizam o mercado internacionalizado, a anterioridade tributária cede espaço às necessidades de controle e de gestão estatais”. (FRANCISCO, 2011, online).

Trata-se de tributos que podem ter sua cobrança realizada no mesmo exercício financeiro da publicação da lei que os tenha instituído ou majorado, não havendo necessidade de se aguardar o exercício financeiro seguinte.

Tais exceções encontram-se previstas no § 1º do mesmo artigo, e são as seguintes: imposto de importação (II); imposto de exportação (IE); imposto sobre operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos e valores mobiliários (IOF); imposto sobre produtos industrializados (IPI); imposto extraordinário de guerra e empréstimo compulsório decorrente de calamidade pública ou guerra externa.

Os quatro primeiros impostos citados têm sua excepcionalidade justificada diante do caráter eminentemente extrafiscal que os qualifica, ou seja, diante do fato de serem impostos com objetivos precípuos de intervenção no domínio econômico do país.

As duas últimas exceções acima referidas, por outro lado, justificam-se pela urgência que permeia suas hipóteses de instituição, quais sejam, situações de guerra ou calamidade pública, diante das quais surge a necessidade de uma rápida arrecadação de recursos.

São ainda ressalvas ao princípio da anterioridade anual as contribuições para financiamento da seguridade social, as quais devem obediência apenas ao prazo nonagesimal previsto pelo art. 195, § 6º, da CF/88.

Completando o rol de exceções à anterioridade anual, a EC nº 33/2001 trouxe outros dois tributos que excepcionam o princípio em questão: a CIDE-combustível, de acordo com o art. 177, § 4º, I, “b” da CF, e o ICMS-combustível, conforme o art. 155, § 4º, IV, “c” da CF. Contudo, em ambos os casos, a anterioridade anual será excepcionada somente quando se tratar da redução e restabelecimento das alíquotas desses tributos.

2.3 O princípio da anterioridade nonagesimal

Diferentemente da anterioridade anual, que sempre esteve presente no texto constitucional de 1988, a anterioridade nonagesimal, também denominada anterioridade qualificada, privilegiada, ou, ainda, mínima, foi introduzida na atual Constituição Federal por intermédio da Emenda Constitucional nº 42/2003, estando prevista na alínea “c” do inciso III do art. 150:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

  III - cobrar tributos:

[...]

c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b;

De acordo com esse princípio, sendo editada uma lei instituidora ou majoradora de tributos por qualquer dos entes federados, sua produção de efeitos só poderá ocorrer após 90 (noventa) dias da data de sua publicação, ou seja, haverá a postergação da eficácia da lei por um período de 90 dias – a chamada “noventena”.

Percebe-se, portanto, que as anterioridades nonagesimal e anual diferenciam-se, basicamente, pela distância temporal estabelecida na CF/88 entre a publicação da lei e a exigência da exação tributária: 90 dias, no primeiro caso, e o exercício financeiro seguinte, no segundo caso. Nesse sentido, esclarece Eduardo Sabbag (2014, p. 93):        

Evidencia-se que o princípio da anterioridade, nas duas alíneas, dispõe sobre um átimo de tempo que deve intermediar a data da lei instituidora ou majoradora do gravame e a data de cobrança do tributo. Tal espaço se abre para duas exigências temporais, com dupla “espera” a ser cumprida no tempo: a anual e a nonagesimal.

No texto original da Constituição Federal de 1988, já constava previsão de exigência de um lapso temporal de 90 dias entre a publicação da lei e a cobrança do tributo, mas referida previsão restringia-se às contribuições para financiamento da seguridade social.

Trata-se do art. 195, § 6º, da CF/88, até hoje em vigor, com o seguinte teor:

§ 6º - As contribuições sociais de que trata este artigo só poderão ser exigidas após decorridos noventa dias da data da publicação da lei que as houver instituído ou modificado, não se lhes aplicando o disposto no art. 150, III, "b".

No que diz respeito aos demais tributos, portanto, vigorava no ordenamento apenas o princípio da anterioridade anual, o qual acabou por se mostrar, na prática, insuficiente para a proteção do contribuinte. Isso porque:

[...] sendo exigida apenas a anterioridade anual, era comum a edição de leis nos últimos dias do ano (muitas vezes no próprio dia 31 de dezembro) e, para espanto de uma análise material da confiança legítima, a jurisprudência brasileira se conformava com o respeito apenas formal à anterioridade, de modo que essa lei de 31 de dezembro já começa a ter eficácia jurídica para fatos tributáveis que acontecessem no dia seguinte. (FRANCISCO, 2011, online).

Exemplificando, pautando-se apenas no princípio da anterioridade anual, uma lei publicada em 30 de dezembro de 2002 poderia ser cobrada já em 1º de janeiro de 2003, o que acabava por deturpar o sentido da disposição constitucional, já que não assegurava prazo razoável para que o contribuinte pudesse se planejar economicamente diante da alteração tributária.

Com o advento da EC nº 42/2003, foi incluída no texto constitucional a alínea “c” do inciso III do art. 150, em redação muito parecida àquela do art. 195, § 6º, garantindo, enfim, a aplicação da noventena aos tributos em geral.

Vê-se, dessa forma, que a anterioridade nonagesimal surgiu como forma de reforçar a anterioridade anual, não havendo outra conclusão a se chegar senão aquela que impõe a conjugação dos dois princípios. A aplicação então ocorrerá da seguinte forma:

[...] deverá a lei instituidora ou majoradora de tributo aguardar o próximo exercício financeiro e, se este tempo de espera for inferior a noventa dias, deverá também aguardar que se complete o nonagésimo dia para que tenha força vinculante. Por outro lado, se passados noventa dias e não adentrado em novo exercício financeiro, deverá aguardar o período de tempo suficiente para tanto. (DINIZ, 2008, p. 51).

A própria Constituição Federal, na parte final da redação do art. 150, III, “c”, não deixou dúvidas quanto à aplicação cumulativa das duas vertentes da anterioridade, ao dispor que deve ser “observado o disposto na alínea b”.

2.3.1 Exceções à anterioridade nonagesimal

Tal como ocorre com o princípio da anterioridade anual, também a anterioridade nonagesimal tem sua aplicação ressalvada diante de alguns tributos, por expressa determinação constitucional.

O art. 150, § 1º, da CF/88 dispõe que não se submetem à anterioridade nonagesimal os seguintes gravames: imposto de importação (II); imposto de exportação (IE); imposto sobre operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos e valores mobiliários (IOF); imposto de renda (IR); imposto extraordinário de guerra; empréstimo compulsório decorrente de calamidade pública ou guerra externa; base de cálculo do imposto sobre a propriedade de veículos automotores (IPVA) e do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana (IPTU).

Interessante notar a inclusão do IR nesse rol – mesmo sendo um imposto tipicamente fiscal, ou seja, com finalidade eminentemente arrecadatória –, bem como a exclusão do IPI da lista de exceções.

A esse respeito, oportuna a lição de Silvia Paula Alencar Diniz (2008, p. 57), criticando a inserção do imposto de renda no mencionado rol:           

Após um raciocínio lógico, vendo que tal imposto não possui caráter extrafiscal, só se poderia concluir pela sua inclusão no rol dos que devem respeito à soma das anterioridades. Não obstante a clareza da matéria, tal razão não surgiu ao legislador constituinte derivado, que preferiu excepcioná-lo da anterioridade nonagesimal [...] Portanto, restou constitucionalmente consagrada uma das maiores violações à segurança jurídica dos contribuintes, tendo em vista a magnitude e abrangência do imposto sobre a renda, fazendo prevalecer a surpresa sobre a segurança nas relações jurídicas.

No que concerne ao IPI, adequados os esclarecimentos de Ricardo Alexandre (2012, p. 110, grifos do autor):

Parte da doutrina já classifica o IPI como um imposto fiscal. Aliás, entre os impostos, é o segundo maior arrecadador federal (o maior é o imposto de renda). (...) Sendo o IPI tratado como fonte de arrecadação, foi necessário criar um mecanismo de defesa para o contribuinte contra as majorações repentinas de sua incidência. Atento à questão, o legislador constituinte derivado, ao estender o princípio da noventena para a maioria dos tributos, não excetuou o IPI, que passou a ser o único dos impostos ditos reguladores cujos efeitos das majorações porventura realizadas estão sujeitos a prazo (noventena).

Realizando uma análise comparativa entre as exceções estabelecidas para os princípios da anterioridade anual e nonagesimal, percebe-se que cinco tributos excepcionam concomitantemente os dois postulados. São eles: II, IE, IOF, imposto extraordinário de guerra e empréstimo compulsório decorrente de calamidade pública ou guerra externa.

Referidos tributos, portanto, uma vez majorados ou instituídos, são passíveis de imediata exigência, não havendo que se esperar qualquer prazo para a realização de sua cobrança, tendo em vista que a lei instituidora ou majoradora prontamente incide.

2.4 Distinção entre o princípio da anterioridade anual e o princípio da anualidade

Não há que se confundir o princípio da anterioridade tributária anual com o antigo princípio da anualidade tributária.

Historicamente, a Constituição Imperial de 1824 já fazia referência ao princípio da anualidade, em seu art. 171, ao dispor que as contribuições diretas fossem anualmente estabelecidas pela Assembleia Geral. (HOFFMANN; BERKENBROCK, 2003, online).

Mas foi na Constituição de 1946, mais precisamente, que o princípio encontrou formulação expressa, em seu art. 141, § 34.[6] Segundo essa previsão, a cobrança de tributos em dado exercício financeiro estava condicionada à prévia autorização orçamentária. Essa previsão teria de ser anualmente renovada, daí o nome dado ao princípio.

Dessa forma, cabia ao Poder Legislativo, mediante previsão no orçamento, permitir a cobrança de determinado tributo, tendo o princípio, portanto, “um sentido nitidamente democrático” (MACHADO, 2006, p. 60), considerando-se o caráter de representatividade popular que marca esse Poder. A sistemática funcionava da seguinte forma:

[...] nenhum tributo podia ser exigido sem que a lei instituidora ou majoradora tivesse obtido, antecipadamente, a autorização orçamentária. Assim, em primeiro lugar, publicava-se a lei tributária; após, como conditio sine qua non, obtinha-se a prévia autorização orçamentária; com esta, a lei não mais poderia ser alterada. Diante disso, a arrecadação de um novo tributo ou um aumento dos já existentes, eventualmente não inscritos na lei orçamentária, demandaria a espera do próximo orçamento, a fim de fazer nele constar tais medidas remodeladoras. (SABBAG, 2014, p. 91, grifou-se).

Ainda durante a vigência da Constituição de 1946, na qual estava prevista a regra da anualidade, foram editadas as Súmulas 66 e 67 no STF, elaboradas no ano de 1963. A primeira prescreveu o seguinte: “É legítima a cobrança do tributo que houver sido aumentado após o orçamento, mas antes do início do respectivo exercício financeiro”. Dessa forma, passou-se a admitir a cobrança de um tributo, ainda que a sua lei majoradora surgisse posteriormente à lei orçamentária, desde que essa mesma lei fosse anterior ao exercício financeiro.

A Súmula 67, por sua vez, possui o seguinte teor: “É inconstitucional a cobrança do tributo que houver sido criado ou aumentado no mesmo exercício financeiro”.

Conforme esclarece Luciano Amaro (2011, p. 145, grifos do autor), “essas duas súmulas praticamente reescreveram o princípio constitucional [da anualidade]. O que passou a ser relevante, para legitimar a aplicação do tributo em cada exercício, é a anterioridade da lei em relação ao exercício [...]”.

Seguindo essa orientação da Suprema Corte, surgiu a Emenda Constitucional nº 18, de 1965, que suprimiu o princípio da anualidade e, ao mesmo tempo, introduziu o princípio da anterioridade tributária no ordenamento jurídico brasileiro. Por esses motivos, a doutrina costuma apontar que o surgimento do princípio da anterioridade se deu em substituição ao princípio da anualidade.

A Constituição de 1967 reintroduziu o princípio da anualidade no ordenamento, mas por pouco tempo, tendo em vista que a Emenda Constitucional nº 1, de 1969, novamente o aboliu, dessa vez de forma definitiva. A atual Constituição Federal de 1988 não acolheu esse princípio, pelo menos no que se refere à esfera tributária, consagrando apenas o princípio da anterioridade.

A esse propósito, no entendimento de Hugo de Brito Machado (2004, p. 100), andou mal o legislador constituinte de 1988 ao não restabelecer o princípio da anualidade, tendo em vista ser um “notável instrumento de fortalecimento do Poder Legislativo, de raízes profundamente democráticas”.  

Pelo exposto, percebe-se que, a despeito de servirem tanto a anualidade quanto a anterioridade como instrumentos de proteção do contribuinte, não há como confundir os dois princípios.

Enquanto o princípio da anualidade tem estrita ligação com a lei orçamentária, o princípio da anterioridade fica totalmente desvinculado da mencionada lei. (SANTOS JÚNIOR, 2010, p. 212).

A anterioridade anual significa que nenhum tributo será cobrado no mesmo exercício em que foi publicada a lei que o instituiu ou aumentou. Após esse lapso temporal, a cobrança poderá ocorrer, nos anos seguintes, indefinidamente. Já a anualidade é diferente, tendo em vista que, “além da lei de criação ou aumento do imposto [ou de outro tributo], há necessidade de previsão da cobrança no orçamento de cada ano. A previsão de cobrança, na lei orçamentária anual, é indispensável”. (MACHADO, 2006, p. 61).

Ademais, conforme visto, não mais se cogita do princípio da anualidade no Brasil em âmbito tributário, subsistindo apenas o princípio da anterioridade. Repita-se: em âmbito tributário. Na seara do Direito Financeiro, não há dúvidas acerca da existência do princípio da anualidade orçamentária, o qual não se confunde com a anualidade tributária. (HARADA, 2013, p. 77).

Cabe ainda registrar a existência de entendimento doutrinário, embora de forma minoritária, no sentido da sobrevivência da anualidade no sistema constitucional tributário brasileiro.

Os defensores de tal posicionamento sustentam-se na ideia de que a anualidade tributária decorreria da anualidade orçamentária, permanecendo em nosso ordenamento jurídico, ainda que não expressamente prevista na CF/88, tendo em vista conferir maior garantia e proteção aos contribuintes, enquanto limitação constitucional ao poder de tributar. (MACHADO, 2006, p. 61).           

2.5 O princípio da anterioridade como direito fundamental do contribuinte

Os direitos fundamentais, embora estejam, em sua maioria, catalogados no art. 5º da Constituição Federal, podem também ser encontrados em dispositivos esparsos do texto constitucional, não havendo qualquer impedimento para isso. O próprio artigo 5º, em seu § 2º, não deixa dúvidas quanto a tal entendimento, à medida em que dispõe que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

Ora, conclui-se, então, que o rol de direitos fundamentais não é taxativo, sendo perfeitamente possível a existência de outros desses direitos difusamente previstos no texto constitucional. (SAMPAIO, 2010, p. 142).

O princípio constitucional da anterioridade tributária constitui, sem dúvidas, um direito fundamental do cidadão-contribuinte. Sendo uma das limitações constitucionais do poder de tributar, o princípio em questão representa importante recurso protetivo, colocado à disposição do contribuinte pelo legislador constituinte, em face da ingerência do poder estatal em seu patrimônio privado.

Como já se teve a oportunidade de se analisar, a anterioridade tributária possui estreita ligação com o princípio da segurança jurídica, o qual é essencial ao Estado Democrático de Direito. É esse princípio “que lhe serve de apoio e lhe revela as reais dimensões”. (CARRAZZA, 2012, p. 212).

Sendo, portanto, o princípio da anterioridade um instrumento de efetivação da segurança jurídica em matéria tributária, é patente a sua relevância perante a sociedade, de onde advém o seu caráter de fundamentalidade.

Referido entendimento já foi inclusive chancelado pelo STF, por ocasião do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 939-7/DF. Nesta ação, cujo relator foi o então Ministro Sydney Sanches, a Suprema Corte apreciou a constitucionalidade da Emenda Constitucional n

º 3/93, a qual estabelecia a não aplicação do princípio da anterioridade anual (art. 150, III, “b”) em relação à instituição do antigo IPMF pela União. Confira-se abaixo trecho da ementa do julgamento:

EMENTA: [...] 2. A Emenda Constitucional n. 3, de 17.03.1993, que, no art. 2., autorizou a União a instituir o I.P.M.F., incidiu em vício de inconstitucionalidade, ao dispor, no parágrafo 2. desse dispositivo, que, quanto a tal tributo, não se aplica "o art. 150, III, b e VI", da Constituição, porque, desse modo, violou os seguintes princípios e normas imutaveis (somente eles, não outros): 1. - o princípio da anterioridade, que e garantia individual do contribuinte (art. 5., par.2., art. 60, par.4., inciso IV e art. 150, III, b da Constituição); 2. - o princípio da imunidade tributária reciproca (que veda a União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a instituição de impostos sobre o patrimônio, rendas ou serviços uns dos outros) e que e garantia da Federação (art. 60, par.4., inciso I,e art. 150, VI, a, da C.F.) (STF, ADI 939 DF, Tribunal Pleno, rel. Min. Sydney Sanches, j. 15/12/1993) (Grifou-se).

Vê-se que o STF reconheceu o princípio da anterioridade como uma garantia individual do contribuinte – e, portanto, garantia fundamental. A decisão acima colacionada é considerada um importante marco em matéria tributária, tendo em vista que, pela primeira vez, o STF conferiu a um princípio tributário caráter de norma inalterável, verdadeira cláusula pétrea, estando, portanto, restrita aos limites impostos pelo art. 60, § 4º[7], da Constituição Federal.

Destarte, daí se concluir pela impossibilidade de vir a surgir emenda constitucional tendente a abolir o princípio da anterioridade, em quaisquer de suas vertentes, uma vez que tal princípio está incluso nas matérias que compõem o núcleo imodificável do texto constitucional.

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AGUIAR, Rebeca Lima. O princípio da anterioridade tributária e a revogação de isenções não onerosas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4660, 4 abr. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/47875. Acesso em: 25 abr. 2024.

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