Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Agências reguladoras e o seu "poder" de regular(mentar)

Exibindo página 1 de 2
Agenda 16/02/2004 às 00:00

RESUMO

As agências reguladoras são entes administrativos conceituados como sendo autarquias de regime especial, em face de certas peculiaridades que possuem, entre elas, o poder de regular matérias atinentes a sua especialidade e capacidade específica. Deve ser diferenciado, desde logo, o signo "regular" (ligado às agências reguladoras) e o signo "regulamentar" (ligado ao poder legiferante do Estado), Contudo, este poder normatizador – de regular – não pode extrapolar as matérias específicas pertinentes à agência reguladora, bem como contrariar a lei e os princípios constitucionais. Deve ser um instrumento de integração de normas, a fim de dar maior especificidade às leis que possuem valores mais genéricos, trabalhando no campo da sua execução, mediante critérios técnicos e econômicos.

DESCRITORES: Agências reguladoras, regulação, regulamentação.


1 INTRODUÇÃO

As agências reguladoras são, em suma, autarquias disciplinadas por um regime jurídico especial, que visam especificamente regular certas atividades (Mello, 2000, p. 132). Contudo, este poder de regular não pode ser transviado, a fim de que se torne poder de regulamentar atinente, de forma exclusiva, ao Poder Legislativo [1].

Nesse aspecto, é relevante o valor semântico do signo "regular" e do signo "regulamentar", muitas vezes desprezados pela doutrina. Regulação possui um significado eminentemente ligado à técnica e a economia, enquanto a regulamentação possui um critério eminentemente político. Em outras palavras:

Cumpre, pois, não confundir a regulação, que é um conceito econômico, com a regulamentação, que é um conceito jurídico (político). Aquela é sujeita a critérios técnicos, que tanto podem ser definidos por agências estatais (envolvendo a Teoria da Escolha Pública) preferencialmente dotadas de independência (para fazer valer o juízo técnico sobre o político), como pelos próprios agentes regulados (autp-regulação). (Souto, 2002, p. 43)

Em síntese: enquanto a regulamentação trabalhará no campo da atuação típica do estado, definindo as políticas e interesses públicos mediante leis, a regulação trabalhará no campo científico, com base na dogmática e no profissionalismo. (Souto, 2002) Dessa forma, não há que se falar no termo regulamentação às agências reguladoras, uma vez que este é termo exclusivo do Poder Legislativo. Somente se poderá atribuir o valor semântico regulação

Destaca-se que, atualmente, não há uma perfeita definição das atuações das agências reguladoras. Dessa forma, espera-se, ainda que de forma concisa em contraste à complexidade do tema, esboçar os aspectos relevantes sobre tal atuação, mediante uma análise das próprias agências e seu papel no cenário nacional.


2 AS AGÊNCIAS REGULADORAS E O SEU PODER DE REGULAR(MENTAR)

Conforme artigos 21, XI e 177, § 2º, III da Constituição Federal, há previsão de órgãos reguladores para certas atividades. Apesar de o legislador constituinte nominar desta forma as atuais agências reguladoras, não há duvida que, hoje, o termo "órgão" não condiz com a realidade, uma vez que a criação das agências reguladoras é matéria atinente à descentralização [2] e não à desconcentração [3], feita por intermédio da criação de órgãos.

Segundo Di Pietro, as agências reguladoras "[...] estão sendo criadas como autarquias em regime especial. Sendo autarquias, sujeitam-se às normas constitucionais que disciplinam esse tipo de atividade." (2001, p. 396).

Conforme artigo 5º, inciso I, do decreto-lei 200/67, autarquia é

[...] o serviço autônomo, criado por lei, com personalidade jurídica, patrimônio e receita próprios, para executar atividades típicas da Administração Pública, que requeiram para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizado.

Na lição de Hely Lopes Meirelles,

A autarquia não age por delegação, age por direito próprio e com autoridade pública, na medida do jus imperii que lhe foi outorgado pela lei que a criou. Como pessoa jurídica de direito público interno, autarquia traz ínsita, para a consecução de seus fins, uma parcela do poder estatal que ele deu vida. Sendo um ente autônomo, não há subordinação hierárquica da autarquia para com a entidade estatal a que pertence, porque, se isto ocorresse, anularia seu caráter autárquico. Há mera vinculação à entidade matriz de que, por isso, passa a exercer, um controle legal, expresso no poder de correção finalístico do serviço autárquico. (2000, p. 326)

Tendo em vista que as autarquias, no modelo tradicional, permaneciam muito vinculadas ao controle de resultados, passou-se a entender que era mais benéfico à atuação do Estado dar nova dinâmica a estes entes, mediante um controle dos meios de atuação. Assim, criadas foram as autarquias de regime especial, ou melhor, agências reguladoras. De forma sucinta: surgiram autarquias com maiores privilégios. (Azevedo, 1998, p. 143)

Tais privilégios são, em síntese, concedidos em face da peculiaridade reguladora que essas agências possuem, atreladas às prerrogativas da autonomia e independência. São basicamente estes os privilégios: (a) ter quase que total autonomia técnica, administrativa e financeira, a fim de que fique alheia às matérias e decisões político-partidárias e aos entraves da falta de orçamento; (b) expedir normas reguladoras de forma célere, a fim de acompanhar a dinâmica da evolução econômica e tecnológica que hoje se perfaz com extrema rapidez, ficando alheio ao engessado procedimento legislativo; (c) aplicar sanções, igualmente de forma veloz; (d) por fim, associar a participação dos usuários no controle desses serviços prestados. Tais privilégios são assim visualizados por Diogo de Figueredo Moreira Neto. (2000, p. 148)

Especificamente no Brasil, tais agências foram criadas, especialmente, no final da década de noventa, a fim de regular as atividades exercidas, privativamente, pelo Estado, que foram concedidas, permitidas ou autorizadas à particulares. Assim, ficou imperioso que a Administração Pública exercesse um controle mais contundente sobre a prestação desse tipo de atuação que, em suma, é de alta relevância social.

Com a implementação da política que transfere para o setor particular a execução dos serviços públicos e reserva para a Administração Pública a regulamentação, o controle e a fiscalização da prestação desses serviços aos usuários e a ela própria, o Governo Federal, dito por ele mesmo, teve a necessidade de criar entidades para promover, com eficiência, essa regulamentação, controle e fiscalização, pois não dispunha de condições para enfrentar a atuação dessas parcerias. Tais entidades, criadas com essa finalidade e poder, são as agências reguladoras. São criadas por lei como autarquia de regime especial recebendo os privilégios que a lei lhes outorga, indispensáveis ao atingimento de seus fins. São entidades, portanto, que integram a Administração Pública Indireta. (Gasparini, 2000, p. 342)

Percebeu-se, pois, que o Poder Público deveria ter como principais múnus os serviços públicos essenciais (leia-se: bem-estar, saúde, educação, meio ambiente), deixando aos particulares a atuação na área econômica, exercendo somente vigilância, na forma do princípio da subsidiariedade. (Tácito, 1999, p. 2)

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Contudo, o problema central hoje percebido, encontra-se no fato de não se ter noção exata dos limites deste poder de normatizar tido pelas agências reguladoras. Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello: "[...] o verdadeiro problema com as agências reguladoras é o de se saber o que e até onde podem regular sem estar, com isso, invadindo a esfera legislativa." (2000, p. 134), ou seja, o poder de regulamentar [4].

O poder de regular deve ter estrita base no principio da legalidade [5]. Alexandre de Moraes conceitua o princípio da legalidade na esteira da premissa de que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de espécie normativa devidamente elaborada pelo Poder competente, segundo as normas do processo legislativo constitucional, determinando na Carta Magna brasileira. (1999, p. 487)

Daí porque o poder regulador não pode se afastar dos dispositivos legais. Neste sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello confirma que esse poder somente pode tomar o caráter técnico, nos estritos limites da competência e pertinência temática. (2000, p. 134). Inclusive, faz a seguinte previsão:

Desgraçadamente, pode-se prever que ditas "agências" certamente exorbitarão seus poderes. Fundadas na titulação que lhes foi atribuída, irão supor-se – e assim o farão, naturalmente, todos os desavisados – investidos dos mesmos poderes que as "agências" norte-americanas, cuja estrutura e índole são radicalmente diversas do Direito norte-americano. (2000, p. 134)

Di Pietro afirma que o poder ditar normas [6] das agências reguladoras deve ficar totalmente vincado na seara das atribuições conferidas, em especial no tocante às permissões, concessões e autorizações. (2001, p. 397)

Assim, entende-se como sendo correto que as regulações expedidas por agências tenham dois limitadores: um na seara da legalidade e outro na seara da pertinência temática das finalidades.

Na verdade, o modelo regulador (e não regulamentar) tem inspiração no sistema jurídico norte-americano, que pacificamente compreende os regramentos das agências reguladoras, desde que, em consonância com a legislação constitucional e ordinária [7]. São espécies de entes públicos que preenchem os nichos deixados pelos Três Poderes. Ou seja, a Constituição Federal norte-americana prevê uma gama de competências ao Executivo, Legislativo e Judiciário. Fora destes limites constitucionais traçados, as agências (agencies) atuam.

Sérgio Varella Bruna, em cuja obra "Agências Reguladoras" dedicou um capítulo inteiro à questão em foco, explica que o Brasil aceitou muito bem este modelo regulador, adaptando-o em duas técnicas legislativas distintas. (2003, p. 110-111)

Por isso, duas técnicas principais surgiram para a solução dessa espécie de problema. A primeira, a outorga de poderes ao Executivo para editar regulamentos autônomos, reservando-se-lhe competências próprias e estranhas ao domínio da lei. A segunda, adotada pelo legislador brasileiro durante o Estado Novo e a partir de 1964, é a dos regulamentos autorizados, cuja edição é atribuída ao legislador a órgãos executivos autônomos, portanto, no plano infraconstitucional, à semelhança das independet regulatory agencies do Direito norte-americano. (Bruna, 2003, p. 111)

Portanto, as duas técnicas legislativas são exercidas tanto pelo Poder Executivo, como por meio de um órgão executivo autônomo. No caso específico das agências reguladoras, ontologicamente, não se trata de órgão, mas de ente.

Esse poder de regular possui um nicho legislativo de atuação muito claro: nas chamadas normas legais em branco. (Bruna, 2003, p. 111) Nessa linha, as regulações terão função esclarecedora da norma, adaptando-a às evoluções da conjuntura nacional, regida pela mutação da realidade social.

Está nesta atribuição do poder normativo -, e não no poder discricionário da Administração (como equivocadíssimamente apregoam nossos publicistas). Assim, o fundamento da potestade regulamentar decorre de uma atribuição de potestade normativa material, de parte do Legislativo, ao Executivo [...] não decorre de delegação da função legislativa. (Grau, 1996, p. 180)

Dessa forma, de acordo com as premissas lançadas, conclui-se que a técnica legislativa aplicada pelas agências reguladoras deve ficar apenas no plano da maior especificidade das normas. Nunca no plano da criação de novas situações ou na imposição de obrigações imprevistas pela legislação. Afinal, o legislador constituinte deu conceito absoluto a esse tema, quando afirmou que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa em virtude de lei - artigo 5º, inciso II da Constituição Federal de 1988. É o que se conhece por "reserva de lei", esculpida em três outras ocasiões na referida Carta Política: artigos 5º, XXXIX, 150, I e 170.

Se o legislador colocou no texto normativo o signo "lei", não o fez por mero deleite [8]. Conforme Eros Roberto Grau: "Não tivesse o art. 5º, II, consagrado o princípio da legalidade em termos somente relativos, e razão não haveria para justificar sua inserção no bojo da Constituição em termos absolutos, nas hipóteses referidas." (1996, p. 1984)

A palavra lei, no sentido jurídico, tem a acepção fundamental de que um ser racional e livre, existindo numa comunidade de outros seres igualmente racionais e livres, deve atuar de determinada maneira em virtude da pressão exercida pela comunidade (Coelho, 1977, p. 431).

Lei é, então, o direito conscientemente elaborado por uma autoridade, mediante um ato de vontade, o qual se denomina legislação, ou seja, o ato de legislar, a ação de elaborar leis; ela consiste numa declaração jurídica revestida de forma escrita e incorporada num documento.

Tomás de Aquino (apud Coelho, 1997, p. 432) conceitua "lei" como o ordenamento racional formalmente promulgado, no sentido do bem comum de todos os membros da comunidade, trata-se, pois, de preceito comum, justo, estável e suficientemente promulgado.

Tem-se, portanto, que a lei é um imperativo, uma ordem que deve ser respeitada e cumprida. Emana um fato ali cristalizado [9]. Carnelutti (2001), na sua obra "A arte do Direito" traz uma analogia à lei: como o pintor que, num quadro, cristaliza um fato, deixando-o inerte, assim faz o legislador com a lei. A lei, então, nada mais é que um quadro que estanca um fato da vida.

Visto assim, não cabe às agências reguladoras extrapolar o limite dado pela "reserva legal" – lei – do artigo 5º, inciso II da Constituição Federal. A infringência do disposto padece de vício de inconstitucionalidade. Ainda mais pelo fato de uma regulação ser legislação hierarquicamente inferior.

[...] para uma norma para ser válida é preciso que busque seu fundamento de validade em uma norma superior, e assim por diante, de tal forma que todas as normas cuja validade pode ser reconduzida a uma mesma norma fundamental formam um sistema de normas, uma ordem normativa. (Kelsen, 1995, p. 248) [10].

Mas a lei não pode ser compreendida na sua concepção literal [11]. Necessita que o operador jurídico use de uma integração e interpretação sistêmica do todo legislativo. E é nesse aspecto que as regulações das autarquias sob o regime especial ganham apreço.

Como já referido, porém, é um equívoco procurar identificar no aplicador do Direito a mera boca que pronuncia as palavras da lei. Na norma individual sempre há algo que não existia, que não estava na norma geral, pois, não fosse assim, se tudo já tivesse determinado na norma geral, não haveria necessidade de editar-se norma individual perante o caso concreto. (Bruna, 2003, p. 117)

Portanto, as regulações vêm a especificar o conteúdo das normas, dando maior pontualidade aos seus dispositivos. É o Direito, hoje, disciplina social constituída pelo conjunto das regras [12] de conduta, as quais, na sociedade, com maior ou menor organização, regem as relações sociais – e cujo respeito é garantido, quando necessário, pela coerção pública (Sohlen [13]) – é produto dos fatos e da vontade do homem. Em outras palavras: um fenômeno material (um conjunto de valores morais e sociais, um ideal e uma realidade que resta refletida por uma ordem normativa).

Nesse contexto, as regulações são ferramentas à concretização da norma. A concretização de uma norma, segundo Canotilho, não se confunde com a interpretação. A interpretação consiste em atribuir um significado a um ou vários símbolos lingüísticos escritos com o fim de se obter uma decisão de problemas práticos (1999, p. 1164).

Espíndola, ao analisar diferenciação entre norma e disposição, manifestou seu entendimento no sentido de que: "[...] a disposição ou preceito (formulação da norma) é o objeto da interpretação, enquanto a norma é o produto dessa interpretação, ou seja, é parte de um texto interpretado [...]" (1999, p. 195-196). A interpretação é, assim, instrumento à concretização, uma vez que as disposições fazem parte do todo que compõe a norma, sendo mais um de seus elementos.

Nesse sentido, como dito, as regulações são uma fonte de hermenêutica, auxiliando nas diretrizes da aplicação das leis no caso concreto.

O Direito não é mero somatório de regras avulsas, produto de atos de vontade, ou mera concatenação de fórmulas verbais articuladas entre si, o Direito é ordenamento ou conjunto significativo e não conjunção resultada de vigência simultânea; é coerência ou, talvez mais rigorosamente, consistência; é unidade de sentido, é valor incorporado em regra. (Miranda, 1991, p. 197-198)

As regulações atuarão na densificação [14] das leis, dando maior margem à sua especificidade.

Entende-se, pois, que este processo de concretização/interpretação não é assim tão simples. As dimensões teorético-constitucionais devem ser foco dessa atividade. A norma jurídica (concretizada portanto) objetiva então como "[...] modelo de ordenação material prescrito pela ordem jurídica como vinculativo [...]" (Canotilho, 1999, p. 1184), enquanto não aplicada a um caso jurídico concreto, embora dotada de seus dois elementos, é vista como uma regra geral e abstrata, passando a ser considerada uma norma de decisão [15] quando, pelo seu conteúdo, é decidido um caso jurídico, o que pode acontecer mediante: "(1) a criação de uma disciplina regulamentadora (concretização legislativa, regulamentar); (2) através de uma sentença ou decisão judicial (concretização judicial); (3) através da prática de actos individuais pelas autoridades (concretização administrativa) [...]". (Canotilho, 1999, p. 1184)

Nunca uma regulação poderá criar situação jurídica, mas somente atuar no plano da eficácia, auxiliando na execução dos mandamentos legais (regulamentos). Quiçá poderá ir de encontro aos textos normativos e princípios constitucionais explícitos e implícitos, por total inconstitucionalidade.

O texto Constitucional brasileiro, em seu art. 5º, II, expressamente estatui que ‘ Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.’ Note-se que o preceptivo não diz ‘decreto’, ‘regulamento’, ‘portaria’, ‘resolução’ ou quejandos. Exige lei para que o Poder Público possa impor obrigações aos administrados. É que a Constituição brasileira, seguindo tradição já antiga, firmada por suas antecedentes republicanas, não quis tolerar que o Executivo, valendo-se de regulamento, pudesse, por si mesmo, interferir com a liberdade ou a propriedade das pessoas. (Mello, 2000, p. 297)

Contudo, em muitos casos, as regulações extrapolam esse limite constitucional e legal, criando situações novas e/ou contrariando o texto legal.

Citar-se-á caso específico em que agência reguladora extrapola os limites de sua competência, caindo na usurpação do poder de regular. A ANEEL [16], em 29 de novembro de 2000, mediante a Resolução n. 456, estabeleceu as classes e subclasses para efeito de aplicação de tarifas, dispondo no artigo 20, que considerava como imóveis urbanos aqueles definidos pela legislação municipal (especialmente Plano Diretor) a par da finalidade dos imóveis - destinação social.

Tal resolução não abarca o critério da destinação (finalístico) definido pelo artigo 4º, inciso I do Estatuto da Terra [17], feita pela finalidade principal do imóvel, em especial econômica - agricultura e pecuária. Assim, há uma resolução da ANEEL que contraria, de forma expressa, lei ordinária, com nítida usurpação de competências.

Vê-se, assim, que o direito positivo, mais especificamente o Estatuto da Terra, traz um aspecto novo, para a diferenciação entre o conceito rural e o de urbano, a destinação, ou seja, o que caracteriza o imóvel como urbano, por exclusão, conforme este diploma legal, não é sua localização, mas, a sua destinação. (Reis, 2002, p. 70)

O assunto trata de uma delegação legislativa conhecida pela doutrina e jurisprudência americana como delegation with standards, que acontece quando o ato emanado pelo poder legislativo fixa parâmetros (standards) de forma a colocar balizas, ainda que genéricas, à atuação das agências, as quais se encarregarão de regularizar os "pormenores" e especificidades das leis. (Barroso, 2001, p. 173)

No caso específico, a resolução da ANEEL contrariou o texto expresso do artigo 4º do Estatuto da Terra.

Outro exemplo a ser colocado não fica adstrito especificamente às condutas positivas das agências reguladoras, mas às suas constantes omissões [18]. É notório que não há um controle das empresas concessionárias no que tange aos constantes aumentos das tarifas. Segundo a Fundação Getúlio Vargas, um dos fatores que mais acentuaram o aumento da inflação nesse ano foram as majorações das tarifas de energia elétrica, telefonia e combustíveis [19].

E as agências, criadas para coibir esse tipo de abuso, nada fizeram, permitindo o aumento desenfreado dessas tarifas, em descompasso com o aumento do poder aquisitivo da população.

Por fim, cumpre mencionar prática (abusiva) constante feita pelas empresas concessionárias: corte no fornecimento do serviço público essencial em face da inadimplência.

Nesse sentido, o corte no fornecimento do serviço público contínuo e essencial feito pelas concessionárias não respeitou o princípio da função social, o Código do Consumidor e o princípio da continuidade do serviço público, como explicado infra.

Orlando Gomes (1991) afirma que o ser humano, necessita, invariavelmente, do uso das coisas ao seu redor. Para isso, necessita mais da interação com os outro homens. Assim, no entendimento desse autor, imprescindível, sempre, nas relações humanas, a presença da função social.

O Código Civil atual, em uma sumida de artigos, em especial no que tange às relações contratuais e aos negócios jurídicos em si, prima por uma nova concepção hermenêutica: a função social. Negar isso, é virarmos as costas às novas vertentes contemporâneas, que buscam afastar os pensamentos anacrônicos da Ciência Jurídica.

A dinâmica jurisprudencial está evoluindo à uma retomada do paradigma individual, tomando rumo ao coletivo, mormente frente às demandas que envolvem o interesse público. (Mello, 2000)

Em outra ótica, se percebe que o interesse público é o bem maior de toda atividade da administração pública, seja direta, seja indireta. (Meirelles, 2000) A distribuidora de energia elétrica, a distribuidora de água potável, ou mesmo de telefonia, por exemplo, estando exercendo um múnus público, jamais podem se furtar dessa tomada de posição, uma vez que, para efeitos jurídico, é considerada parte de quadro público de serviços prestados. Faz parte do que Di Pietro chama de "descentralização por colaboração". (201, p. 346) Assim, as concessionárias também devem estar atreladas a este bem maior.

Há um fator agravante a esses casos: em sua maioria são prestações de serviço público essencial e contínuo. Por mais este motivo que o social e o coletivo devem tomar espaço em prol dos interesses particulares e individuais.

Os princípios da administração pública devem prevalecer, em especial o da continuidade da prestação dos serviços públicos e o da indisponibilidade do interesse público. (Mello, 2000)

Celso Antônio Bandeira de Mello (2000) exprime que o regime jurídico-administrativo é o conjunto de princípios peculiares ao Direito Administrativo, os quais, guardam, entre si, uma relação lógica de coerência e unidade. De acordo com esse autor, o sistema de Direito Administrativo se constrói sobre os princípios da supremacia do interesse público sobre o particular e a indispobilidade do interesse público pela Administração. O autor ainda cita Garrido Falla, quando este aduz que o Direito Administrativo se erige pelo binômio "prerrogativas da Administração – direito dos administrados." (2000, p. 28)

O princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, também chamado de princípio da finalidade pública, trata da superioridade do interesse da coletividade em relação ao interesse do particular. Porém, segundo Marçal Justen Filho, "[...] supremacia do interesse público não significa e nem acarreta ilicitude dos interesses particulares: significa apenas maior valoração para fins de disciplina normativa, ao interesse público." (1997, p. 34)

Serviços públicos assim entendidos aqueles prestados pela Administração ou por seus delegados sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade ou simples conveniências do ente administrativo, podem ser executadas ou prestados de forma direita ou indireta pelo Estado. (Pietro, 2000) Daí porque é inimaginável um corte abrupto e de inopino no fornecimento desse serviços.

O consumidor, em especial o de serviços públicos essenciais, é naturalmente vulnerável, face ao fornecedor, que não raro, lhe impõe ônus abusivos e ilegais para fornecer os sérvios de que tanto o usuário necessita. Assim, deveria receber total proteção das agências reguladoras.

Dessa forma, os serviços públicos essenciais terão que ser adequados, eficientes, seguros e contínuos, nos termos dos artigos 22 e 6º, inciso X do Código de Defesa do Consumidor, e art. 6º, parágrafo único da Lei 8.987/95. O que se constata, na análise da matéria, é que o código tratada com maior rigor o fornecedor de serviços públicos (no caso a concessionária). Esse rigor deriva da prevalência do interesse público, da população, sobre o interesse do fornecedor. O desrespeito às características exigidas do serviço público e de outros deveres para o consumidor gerarão uma série de conseqüências como o observa Hely Lopes Meirelles:

Tratando-se de serviço prestado diretamente pelo Poder Público, responde a entidade prestadora pelos prejuízos comprovados, independentemente de culpa de seus agentes, visto que a Constituição vigente estabelece a responsabilidade objetiva pelos danos causados pela administração aos administrados (art. 37, § 6º), ficando-lhe ressalvada, apenas, a ação regressiva contra os agentes causadores do dano, quando tiverem agido culposamente.

Quando aos que realizam serviços por delegação do Poder Público, incumbe-lhes também as mesmas obrigações da prestação regular aos usuários e, conseqüentemente, os mesmos encargos indenizatórios que teria o Estado se os prestasse diretamente, inclusive a responsabilidade objetiva pelos danos causados a terceiros (CF, art. 37, § 6º). Essa responsabilidade é sempre da entidade (autárquica ou paraestatal), da empresa ou de pessoa física que recebeu a delegação para executar o serviço (concessionário, permissionário ou autorizatátio), sem alcançar o Poder Público, que tranfere a execução com todos os seus ônus e vantagens. (2000, p. 304)

O artigo 6º, § 3º, inciso II da Lei 8.978/95 (Lei das Concessões) é claro a respeito.

Em síntese: há uma total desídia das agências reguladoras no que tange à permissão de as empresas concessionárias pratiquem inúmeros abusos aos consumidores, como por exemplo, cortar o fornecimento do serviço público essencial e contínuo com base na simples inadimplência. Dessa forma, furta-se do seu dever legal de regular.

Sobre o autor
Juliano Heinen

Procurador do Estado do RS; Mestre em Direito/UNISC; Professor de pós-graduação e graduação em Direito

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HEINEN, Juliano. Agências reguladoras e o seu "poder" de regular(mentar). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 223, 16 fev. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4821. Acesso em: 23 nov. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!