2.3 PROCEDIMENTO
Dentre os acertos da Lei 12.850/13 apontados pelos doutrinadores, destaca-se o estabelecimento de um procedimento para a realização da colaboração premiada. Como exposto anteriormente, a falta de detalhamento das leis anteriores dificultava a celebração do acordo, os trâmites nas investigações e na formação da prova.
Por outro lado, a Lei do Crime Organizado detalha, no extenso art. 4º os benefícios, requisitos, procedimento, e outras considerações acerca do instituto. O art. 5º, por sua vez, elenca os direitos do colaborador, legando-se ao art. 6º o estabelecimento dos elementos essenciais do termo de acordo de colaboração. Já o art. 7º dispõe sobre o pedido de homologação e o sigilo do acordo.
Dito isto, observa-se que a norma estabelece, que o acordo de colaboração deve ser levado a termo, sendo confeccionado por escrito pela autoridade que o propôs, ou seja, pelo delegado de polícia, no bojo do inquérito policial, ou pelo membro do Ministério Público, a partir de então.
Disciplina a sua confecção, indicando seus elementos essenciais, o art. 6º da Lei nº 12.850/13, in verbis:
Art. 6º O termo de acordo da colaboração premiada deverá ser feito por escrito e conter:
I - o relato da colaboração e seus possíveis resultados;
II - as condições da proposta do Ministério Público ou do delegado de polícia;
III - a declaração de aceitação do colaborador e de seu defensor;
IV - as assinaturas do representante do Ministério Público ou do delegado de polícia, do colaborador e de seu defensor;
V - a especificação das medidas de proteção ao colaborador e à sua família, quando necessário.
Importante recomendação é encontrada no Manual de Colaboração Premiada, redigido pelo juiz federal Rafael Wolff e revisado pela ENCCLA-Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro, em sintonia com o §13 do art. 4º:
Sempre que possível, recomenda-se que, com a ciência do colaborador, as declarações sejam também registradas por meio audiovisual ou por gravação magnética, a fim de garantir a fidedignidade e evitar futuras negativas de autoria de declarações.[1]
Por conseguinte, o termo do acordo de colaboração deve ser encaminhado ao juiz, para homologá-lo ou recusá-lo, conforme o caso, tal qual previsto nos §§ 7º e 8º do art. 4º.
Neste ponto, observa-se a cautela do legislador, ao indicar, no art. 7º, caput, que o pedido de homologação do acordo será sigilosamente distribuído, contendo apenas informações que não possam identificar o colaborador e o seu objeto. É saber, para evitar o vazamento das informações nos trâmites burocráticos do Tribunal de Justiça, realiza-se um pedido genérico, que não contenha informações explícitas das partes envolvidas, ou mesmo a descrição detalhada dos fatos.
Tal cautela é recomendada, evitando-se assim um risco desnecessário e minimizando os riscos, e ainda blinda os serventuários da justiça que tramitarem as peças em questão.
Uma vez distribuído o pedido de homologação, as informações pormenorizadas da colaboração serão dirigidas diretamente ao juiz a que recair a distribuição, tal qual preconiza o §1º do art. 7º. É salutar que o magistrado, no âmbito de sua vara ou gabinete, adote as medidas necessárias para também impedir ou reduzir o acesso de seus assessores, garantindo-se de forma mais eficiente a proteção do sigilo.
Essa restrição se encontra no §2º do art. 7º, o qual dispõe expressamente que “o acesso aos autos será restrito ao juiz, ao Ministério Público e ao delegado de polícia”, e que o objetivo da rigidez é a garantia do êxito das investigações.
É de bom viltre ressaltar que ao colaborador e ao seu advogado é assegurado o acesso aos elementos de prova que digam respeito ao exercício do direito de defesa, devidamente precedido de autorização judicial, ressalvados os referentes às diligências em andamento, conforme estabelecido pelo §2º.
Interessante questão surgiu no bojo da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito instaurada para investigar a corrupção na Petrobrás, em que o magistrado[2] indeferiu o pedido desta para ter acesso ao acordo de colaboração premiada, em conformidade com o disposto no §2º da lei em estudo. No mesmo sentido seguiu o Supremo Tribunal Federal, conforme trecho do Ministro relator abaixo reproduzido:
Como se percebe, o sigilo é da essência da investigação. Portanto, está longe de ser teratológica a interpretação segundo a qual, até o recebimento da denúncia, o acesso aos depoimentos colhidos em regime de colaboração premiada é restrito ao juiz, ao membro do Ministério Público, ao delegado de polícia e aos defensores que atuam nos respectivos autos. Isto porque a divulgação de dados durante o período crítico que antecede o recebimento da denúncia – ainda que para autoridades com hierarquia e poderes semelhantes – poderia comprometer o sucesso das apurações, bem como o conteúdo dos depoimentos ainda a serem colhidos e a decisão de eventuais envolvidos em colaborar ou não com a Justiça.
(...)
De acordo com a Lei n. 12.850/13, portanto, o acesso aos documentos relativos ao acordo de colaboração é restrito àqueles que dele participam. Mais do que isto, assim como a Súmula Vinculante nº 14, antes referida, o art. 7º § 2º, da Lei n. 12.850/13, também restringiu, inclusive ao próprio investigado e seu defensor, o acesso aos documentos do acordo relacionados com diligências em andamento.” (destaques no original). Por fim, registro que a ocorrência de “vazamentos seletivos” – a partir dos quais determinados dados sigilosos vêm a público de forma ilícita –, conquanto reprovável, não justifica que se comprometa o sigilo de toda a operação, ou da parcela que ainda se encontra resguardada.[3]
Pois bem, retornando ao §7º do art. 4º, verifica-se que o magistrado deverá analisar a regularidade, a legalidade, e a voluntariedade do acordo celebrado, podendo, para este fim, ouvir sigilosamente o colaborador, na presença de seu defensor.
Essa análise, ressalte-se, não alcança mérito do acordo. Ao juiz, nessa fase, é vedado expressamente ponderar sobre o conteúdo, como se verifica no §6º, restringindo-se a apreciar a adequação da colaboração pactuada com as normas estabelecidas nesta Lei nº 12.850/13, ou seja, a observância dos pressupostos e requisitos legais. Trata-se de um sistema de discricionariedade regrada, segundo a doutrina de Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto[4].
Destarte, caso entenda não estar o acordo dentre os parâmetros estabelecidos pela norma, poderá recusar a homologação, ou mesmo adequá-la ao caso concreto (art. 4, §8º). O prazo para a decisão do juiz sobre a homologação ou a recusa de 48 (quarenta e oito) horas, nos ditames do art. 7º, §1º.
Caso o magistrado se recuse a homologar o acordo, deverá remeter o acordo ao Procurador-Geral de Justiça, em aplicação analógica do art. 28, do Código Penal, conforme indicado por Eduardo Araújo da Silva[5].
Mais adiante, no §10º é prevista a possibilidade de retração pelas partes, hipótese esta que demanda diversas considerações. A primeira diz respeito ao momento em que poderá ser feita, já que a lei não o explicita. Enquanto Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto[6] defendem que a retratação somente poderá ser realizada antes da homologação judicial, Guilherme de Souza Nucci[7] compreende que deverá ser feita após a homologação, e antes da sentença.
Defende ainda esse último que ambas as partes, o Ministério Público e colaborador, poderão fazê-lo. Já Ana Luiza Almeida Ferro, Flávio Cardoso Pereira e Gustavo dos Reis Gazzola discordam, pois caberia apenas ao magistrado avaliar a eficácia do acordo:
“Sob a responsabilidade de que a colaboração se transforme em mecanismo ilícito de obtenção de provas e elementos de informação, o distrato não pode ser facultado à parte estatal do acordo. Como quer o art. 4º, § 11º, a eficácia do acordo é apreciada pelo magistrado no momento da sentença. Este é não apenas o tempo em que se avaliam os significados probatórios da colaboração mas a fase que define a autoridade competente para fazê-la, o magistrado. Como destinatário da prova produzida em juízo, bem como, na fase administrativa dos procedimentos de investigação, fiscal do princípio da obrigatoriedade da ação penal, cabe ao magistrado ponderar os efeitos da colaboração segundo a qualidade da colaboração do delator na execução dos termos do acordo. Permitir ao Ministério Público o distrato significa outorgar-lhe a função judicial, porquanto passará da condição de parte no acordo para avaliador de seu cumprimento; ou, o que mais grave, se estará a conferir ao órgão estatal a retratação por ato meramente discricionário.”[8]
Inauguram uma terceira via Luiz Flávio Gomes e Marcelo Rodrigues[9], que alertam para a diferença entre proposta de acordo e acordo formalizado. Assim, é permitida ao Ministério Público a retratação somente da proposta, condição válida também para o colaborador. Em relação a este, a simples desistência de contribuir com a obtenção dos resultados pactuados gera a ineficácia do acordo, e não a retratação.
Consta ainda no §10 que as provas autoincriminatórias produzidas pelo colaborador retratante não poderão ser utilizadas exclusivamente em seu desfavor. De igual forma, pensamos que tais informações não poderiam incriminar terceiros, pois não possuem qualquer validade jurídica, situação diversa da que ocorre na rescisão do acordo.
Por fim, outros pontos de destaque do procedimento são a suspensão do prazo para oferecimento de denúncia, previsto no §3º, e o não oferecimento da denúncia, previsto no §2º. O não oferecimento da denúncia será tratado no capítulo referente aos benefícios, motivo pelo qual se avança à análise da suspensão do prazo pra oferecimento de denúncia.
Trata-se, evidentemente, de uma cautela por parte do legislador, possibilitando uma produção probatória mais robusta, mormente para verificar a eficácia do acordo de colaboração, além de suspender o prazo prescricional. Explicam nesse sentido Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto:
A ‘ratio legis’ contida nesse dispositivo é clara. Procura-se conceder um tempo hábil para que se demonstre a eficácia da colaboração. Suponha-se, num exemplo, que, ao delatar seus comparsas, o colaborador tenha revelado a estrutura hierárquico da organização criminosa, bem como a divisão de tarefas em seu âmbito interno, como previsto no inciso II acima. Passados seis meses (prazo que pode ser prorrogado por igual período), constata-se que tudo que fora dito não era verdadeiro. O comando do crime organizado era totalmente diverso e as tarefas eram distribuídas de forma diferente daquela apontada quando da celebração do acordo. Tem-se, neste caso, que o beneficiado pelo acordo, sob o pretexto de colaborar, forneceu dados que não correspondiam à realidade e que, quando confrontados na prática, não resultaram em nenhum efeito, perdendo-se, a partir daí, o objetivo da colaboração premiada.[10]
Importante ressaltar que inexiste a possibilidade de extensão as suspensão a outros réus, segundo aduz Marcelo Batlouni Mendroni[11], podendo ocorrer apenas em relação ao colaborador.