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Alguns apontamentos sobre direitos humanos

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Agenda 06/03/2004 às 00:00

4.0 – Os Direitos Humanos na Constituição de 1988

A Constituição de 1988, indubitavelmente, deu ampla acolhida à idéia de Direitos Humanos.

João Baptista Herkenhoff – em seu livro Direitos Humanos: uma idéia, muitas vozes onde ele estuda detalhadamente cada um dos artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU – traça uma linha de semelhanças entre a Constituição Federal e a Declaração de 1948, desde o preâmbulo de ambas, e concluindo que a Constituição Federal, não só agasalhou os valores assinalados pela Declaração da ONU, como foi mais longe. Em suas próprias palavras:

"O preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o da nossa atual Constituição guardam muitas semelhanças.

São valores abrigados pelo preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos [e da própria Declaração como um todo], como já observamos: 1 – a igualdade e a fraternidade; 2 – a dignidade da pessoa humana; 3 – a liberdade; 4 – a Justiça; 5 – a proteção legal dos direitos; 6 – a paz e a solidariedade universal; 7 – a democracia.

São valores realçados no preâmbulo da Constituição Brasileira:

a) o Estado Democrático; b) os direitos sociais e individuais, colocados aqueles em primeiro lugar, na ordem de enumeração; c) a liberdade; d) a segurança; e) o bem-estar; f) o desenvolvimento; g) a igualdade; h)a justiça; i) o ideal de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social; j) o compromisso, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias; k) a crença na proteção de Deus.

A Constituição do Brasil avança, no seu preâmbulo, em relação à Declaração Universal dos Direitos Humanos, quando realça, mais que esta, os direitos sociais e quando faz expressa referência ao desenvolvimento."

É claro que, como bem lembra Alexandre de Morais, o preâmbulo não tem força normativa obrigatória, mas, como este mesmo jurista bem observou, o preâmbulo constitucional "consiste em uma certidão de origem e legitimidade do novo texto e uma proclamação de princípios" além de que:

"[...] o preâmbulo não é juridicamente irrelevante, uma vez que deve ser observado como elemento de interpretação e integração dos diversos artigos que lhe seguem. (grifos no original)"

Assim, é neste sentido que João Baptista Herkenhoff afirma, ainda, que:

"Embora não fazendo parte do preâmbulo, os artigos 1º, 3º e 4º da Constituição também agasalham princípios orientadores, esposam valores fundamentais. Esses princípios e valores completam e explicam a tábua de opções ético-jurídicas do preâmbulo. Se considerarmos esses artigos, como é metodologicamente correto, complemento do preâmbulo, concluiremos que a enunciação de valores humanos e democráticos da Constituição do Brasil avantaja-se ao código de valores inscrito no preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos. [...]"

Por outro lado, como bem assina Valério de Oliveira Mazzuoli:

"Como marco fundamental do processo de institucionalização dos direitos humanos no Brasil, a Carta de 1988, logo em seu primeiro artigo, erigiu a dignidade da pessoa humana a princípio fundamental (art. 1º, III), instituindo, com esse princípio, um novo valor que confere suporte axiológico a todo o sistema jurídico e que deve ser, sempre, levado em conta, quando se trata de interpretar qualquer das normas constantes do ordenamento jurídico nacional."

Flávia Piovesan concorda com o referido autor, ao afirmar:

"O valor da dignidade humana – imediatamente elevado a princípio fundamental da Carta, nos termos do art. 1º III – impõe-se como núcleo e informador do ordenamento jurídico brasileiro, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional instaurado em 1988. A dignidade humana e os direitos fundamentais vêm a constituir os princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro. Na ordem de 1988, esses valores passam a ser dotados de uma especial força expansiva, projetando-se por todo universo constitucional e servindo como critério interpretativo de todas as normas do ordenamento jurídico nacional."

No tocante à materialidade dos Direitos Humanos na Constituição Federal de 1988, escreveu Manoel Gonçalves Ferreira Filho:

"A Constituição de 1988 apresenta algumas variações em relação ao modelo tradicional, seguido pelas anteriores.

Em primeiro lugar, ela enumera os direitos e garantias fundamentais logo num Título II, antecedendo-os, portanto, à estruturação do Estado. Quis com isso marcar a preeminência que lhes reconhece. [...] deve-se registrar que noutros pontos da Constituição são apontados direitos fundamentais, como é o caso da seção relativa às limitações do poder de tributar. Qual o critério que ditou essa distribuição de assuntos, ninguém sabe. Questão de técnica – dir-se-á – ou de falta de técnica, o que é mais provável.

Grosso modo, no capítulo sobre direitos e deveres individuais e coletivos (onde não se encontram deveres) estão os direitos da primeira geração, mais as garantias, no seguinte obviamente os direitos econômicos e sociais, a segunda geração. Quanto à terceira, esta se faz representar pelo solitário direito ao meio ambiente (art. 225). (grifos no original)"

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O mesmo Manoel Gonçalves Ferreira Filho escreveu ainda:

"É tradicional no direito brasileiro a inserção dos princípios básicos do Estado de Direito entre os direitos e garantias fundamentais. Isto tem uma razão de ser. São eles encarados como outras tantas garantias contra o arbítrio. Realmente, o princípio da legalidade condiciona a uma forma – a forma da lei – o estabelecimento de restrições aos direitos fundamentais; o princípio da igualdade exige que o regime legalmente estabelecido para cada direito seja igual para todos; e, enfim, o princípio da justicialidade sujeita toda e qualquer lesão de direito ao crivo dos tribunais [...] (grifos no original)"

Paulo Gustavo Gonet Branco, por sua vez, afirma que, com relação à sistemática adotada pelo constituinte de 1988:

"[...] considerou-se num primeiro grupo a condição do homem-indivíduo, independente dos demais e do próprio Estado, daí resultando os direitos individuais. A situação do homem como membro de uma coletividade inspirou os direitos coletivos. Uns e outros foram enumerados no art. 5º da Constituição.

Os direitos que contemplam o homem nas suas relações sociais e culturais, seriam os direitos sociais, expressos nos arts. 6º e 193 e seguintes. Os direitos que têm por objeto a nacionalidade do indivíduo deram origem aos direitos arrolados no art. 12. Por fim, os direitos de participação política foram enfeixados como direitos políticos, nos arts. 14 a 17 da Lei Maior."

Por outro lado, pelo texto insculpido no §2º do artigo 5º, vários juristas pregam a abertura da Constituição Federal, e de todo o ordenamento jurídico nacional, ao Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos, com uma concepção segundo a qual todo tratado internacional que verse sobre Direitos Humanos passaria, após ratificação, a ter status constitucional, passando, o seu conteúdo, a fazer parte do rol de direitos e garantias inscritos no artigo 5º da Constituição Federal. Ou, nas palavras de Valério de Oliveira Mazzuoli:

"A cláusula aberta do § 2º do art. 5º da Carta da República de 1988, dessa forma, está a admitir visivelmente que os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados pelo governo ingressem no ordenamento jurídico brasileiro no mesmo grau hierárquico das normas constitucionais, e não em outro âmbito de hierarquia de normas."

Flávia Piovesan, para justificar este raciocínio, lembra que:

"[...] A esse raciocínio se acrescentam o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais referentes a direitos e garantias fundamentais e a natureza materialmente constitucional dos direitos fundamentais, o que justifica estender aos direitos enunciados em tratados o regime constitucional conferido aos demais direitos e garantias fundamentais. Essa conclusão decorre também do processo de globalização, que propicia e estimula a abertura da Constituição à normação internacional – abertura que resulta na ampliação do "bloco de constitucionalidade", que passa a incorporar preceitos asseguradores de direitos fundamentais."

Apesar de não se referir ao §2º do artigo 5º, mas, ao contrário, de utilizar-se de uma explicação jus-filosófica, Fábio Konder Comparato – com quem concorda Flávia Piovesan – também afirma que, em caso de conflitos entre as normas internas e os tratados internacionais de Direitos Humanos, deva prevalecer a norma mais favorável.

Em suas próprias palavras:

"Sem entrar na tradicional querela doutrinária entre monistas e dualistas, a esse respeito, convém deixar aqui assentado que a tendência predominante, hoje, é no sentido de se considerar que as normas internacionais de direitos humanos, pelo fato de exprimirem de certa forma a consciência ética universal, estão acima do ordenamento jurídico de cada Estado [...] Seja como for, vai-se firmando hoje na doutrina a tese de que, na hipótese de conflito entre as regras internacionais e internas, em matéria de direitos humanos, há de prevalecer sempre a regra mais favorável ao sujeito de direito, pois a proteção da dignidade da pessoa humana é a finalidade última e a razão de ser de todo o sistema jurídico."

Ainda no tocante ao §2º do artigo 5º, escreveu Paulo Gustavo Gonet Branco:

"O parágrafo em questão dá ensejo a que se afirme que se adotou um sistema aberto de direitos fundamentais no Brasil, não se podendo considerar taxativa a enumeração dos direitos fundamentais no Título II da Constituição. Essa interpretação é sancionada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que, ao apreciar a ação direta de inconstitucionalidade envolvendo a criação do IPMF, afirmou que o princípio da anterioridade (art. 150, III, b, da CF) constitui um direito ou garantia individual fundamental.

É legítimo, portanto, cogitar de direitos fundamentais previstos expressamente no catálogo da Carta e de direitos materialmente fundamentais que estão fora do catálogo. Direitos não rotulados expressamente como fundamentais no título próprio da Constituição podem ser como tal considerados, a depender da análise do seu objeto e dos princípios adotados pela Constituição. A sua fundamentalidade decorreria da sua referência a posições jurídicas ligadas ao valor da dignidade humana, que, por sua importância, não podem ser deixadas à disponibilidade absoluta do legislador ordinário. (grifos nossos)"

Vamos mais longe que o referido autor, e afirmamos que é possível a existência de direitos, não expressos em momento algum pela Constituição, e que, pelos argumentos acima, seriam, apesar desta circunstância, fundamentais. Esta abertura é dada pelo citado § 2º do artigo 5º, que estabelece a possibilidade de direitos fundamentais não expressos pela Constituição.

Assim, por apresentar direitos da terceira gestação – no caso o direito ao meio ambiente equilibrado, art. 225 –, e ainda, por abrir a possibilidade de criação de novos direitos não expressos em seu texto – a abertura do §2º do art. 5º –, a Constituição dá mostras de acompanhar a idéia de não-estabilização dos Direitos Humanos – analisada nos títulos 2.5 a 2.7 do presente trabalho.

Por outro lado, o §1º do artigo 5º estabelece que "as normas definidoras de direitos ou garantias fundamentais têm aplicação imediata". Assim, mais uma vez, a Constituição Federal dá mostras de ter acolhido o paradigma de proteção aos Direitos Humanos.

Combinando os parágrafos 1º e 2º deste artigo 5º, Valério de Oliveira Mazzuoli chega à afirmar que:

"Ora, se as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, uma vez ratificados, por também conterem normas que dispõem sobre direitos e garantias fundamentais, de igual maneira, terão, dentro do contexto constitucional brasileiro, idêntica aplicação imediata [...]

Atribuindo-lhes a Constituição a natureza de "norma constitucional" e passando tais tratados a ter aplicabilidade imediata tão logo ratificados, fica dispensada, por isto, a edição de decreto de promulgação, a fim de irradiar seus efeitos tanto no plano interno como no plano internacional [...]"

Flávia Piovesan, mais uma vez, concorda com o referido autor, afirmando que:

"[...] No que se refere à incorporação automática, diversamente dos tratados tradicionais, os tratados internacionais de direitos humanos irradiam efeitos concomitantemente na ordem jurídica internacional e nacional, a partir do ato da ratificação. Não é necessária a produção de um ato normativo que reproduza no ordenamento jurídico nacional o conteúdo do tratado, pois sua incorporação é automática, nos termos do art. 5º, § 1º, que consagra o princípio da aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais."

Cumpre lembrar, ainda, que o artigo 60, em seu parágrafo 4º que estabelece o que os autores chamam de "cláusulas pétreas", proíbe, em seu inciso IV, Emendas Constitucionais tendentes a abolir os direitos e garantias individuais; daí Valério de Oliveira Mazzuoli, continuando o raciocínio já mencionado acima, afirmar que:

"Além do mais, todos os direitos inseridos nos referidos tratados internacionais, cuja incorporação é automática, passam, também, a constituir cláusulas pétreas do texto constitucional, não podendo ser suprimidos, sequer, por Emenda Constitucional [...]

[...]

Disso se tira uma outra conclusão: os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, uma vez incorporados no direito brasileiro, pelo ato da ratificação, passam a ser insuscetíveis de denúncia, pois, se nem mesmo por Emenda à Constituição esses acordos podem ser abolidos – em face das cláusulas pétreas –, nem se diga, então, por simples ato unilateral do Chefe do Poder Executivo."

Com relação ao citado artigo 60, §4º, IV da Constituição Federal, escreveu Paulo Gustavo Gonet Branco:

"A Constituição cogita, no art. 5º, de direitos individuais e coletivos. Distingui-los a partir dos critérios da Constituição em vigor não é tarefa tranqüila, mas pode produzir conseqüências relevantes, na medida em que o art. 60, § 4º, da Constituição fala apenas nos direitos individuais como cláusulas pétreas."

Sem desejar adentrar-se na discussão, mas apenas como contra-argumento à reste raciocínio, cumpre lembrar que uma das características dos Direitos Humanos, e que é defendida por diversos autores – como visto anteriormente – é justamente a interdependência destes direitos, de forma que, se não existe direito à liberdade – no sentido de direitos de primeira gestação – sem o direito à igualdade – no sentido de direitos de segunda gestação – sendo a recíproca verdadeira, então conclui-se que, apesar de não expressamente estabelecido pelo Poder Constituinte, claro está a proibição de Emenda Constitucional que enfraqueça os direitos fundamentais não-individuais, pois, pela interdependência que existe entre todos os Direitos Humanos, esta possível supressão – ou simples enfraquecimento – de direito não-individual possuiria uma "tendência de abolir" – para utilizar-se expressões constitucionais – os Direitos e garantias individuais, sendo, portanto, proibida pelo preceito constitucional em questão.

É bom lembrar, também, que o caput do artigo 5º, garante os direitos fundamentais, nos termos que estabelece, não só aos brasileiros, mas também aos estrangeiros residentes no país, existindo quem pregue – acertadamente – a possibilidade de exigência dos referidos direitos também para os estrangeiros não-residentes no país.

Outro importante aspecto referente aos Direitos Humanos dentro da Constituição Federal de 1988 é lembrado por Alexandre de Morais:

"[...] também é função do Ministério Público, juntamente com os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, garantir ao indivíduo a fruição de todos os seus status constitucionais. Essa idéia foi consagrada pelo legislador constituinte de 1988, que entendeu por fortalecer a Instituição, dando-lhe independência e autonomia, bem como a causa social para defender e proteger. Um órgão, no dizer de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, "de promoção da defesa social desses direitos" [...]

Essa idéia de Ministério Público como defensor dos direitos e garantias fundamentais é defendida também por Salvador Alemany Verdaguer [...]

Corroborando a idéia da importância da atuação do Ministério Público na efetividade dos direitos fundamentais, Smanio afirma que "rompeu o constituinte de 1988 com o imobilismo da tradicional teoria da separação de poderes, atribuindo função de atuação a determinado órgão do Estado, que é o Ministério Público, para assegurar a eficácia dos direitos indisponíveis previstos pela própria Constituição" [...] (grifo no original)"

Sobre o autor
Enéas Castilho Chiarini Júnior

advogado e árbitro em Pouso Alegre (MG), especialista em Direito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (IBDC) em parceria com a Faculdade de Direito do Sul de Minas Gerais (FDSM)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHIARINI JÚNIOR, Enéas Castilho. Alguns apontamentos sobre direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 242, 6 mar. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4836. Acesso em: 19 dez. 2024.

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