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Teoria Geral do Direito e o fato jurídico processual.

Uma proposta preliminar

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Agenda 17/02/2004 às 00:00

CAPÍTULO 5

A Teoria do Fato Jurídico

A Teoria do Fato Jurídico, aplicada ao Direito Privado brasileiro, foi desenvolvida, no Brasil, por Pontes de Miranda, embasada no direito alemão, especificamente na produção científica dos pandectas. O seu objeto cerne, o suporte fático (Tatbestand) ou conjunto de fatos, é o material sem o qual não existiria o Direito, pois este, como a vida, não existiria sem fatos, nem mesmo na esfera do pensamento, onde os fatos são substituídos por hipóteses de fatos. Portanto, como não existem normas que, na sua aplicação, não tenham a intenção de regular a vida, real, dos seres humanos, pode-se afirmar que absolutamente tudo que se refere ao mundo jurídico, mesmo que em hipótese (abstrato), tem um suporte fático. Esse termo, tão querido por uns e odiado por outros, representa a mais fina flor do Direito, pois é o germe a partir do qual tudo acontece. No entanto, para o cansaço e impaciência de alguns, ele exige uma profunda acuidade analítica, não só do jurista, mas de todo o "operador das normas" que não queira tratar o Direito de forma grosseira e superficial.

A Teoria do Fato Jurídico pode ser considerada, de fato, uma metateoria, pois sua função transcende o âmbito teórico de normatização, integração e homogeneização dos conceitos e proposições. Como metateoria ela tem uma função de organização cognitiva dos caracteres de existência, validade e eficácia, que são definidos num âmbito normativo.

Esses níveis - metateórico e teórico - ou, a gosto do leitor - teórico e infrateórico - têm suas existências indiscutivelmente diferenciadas. Isso se prova pela preexistência dos requisitos de existência, validade e eficácia à teoria em questão, e esses conceitos são encontrados em obras sobre o Direito Romano.

Segundo Moreira Alves,

"A teoria dos negócios jurídicos é criação moderna: data da obra dos pandectistas alemães do século XIX. Os jurisconsultos romanos (embora haja opiniões em contrário, como a de Dulckeit) não a conheceram. No entanto, tendo em vista que essa teoria foi elaborada com base nos textos romanos, e que ela põe em relevo, de modo sistematizado, conhecimentos jurídicos de que os jurisconsultos romanos tiveram intuição, tanto que emanam de suas obras, os autores modernos geralmente a utilizam no estudo do direito romano".

Imaginemos, como exemplo, objeções de inexistência jurídica levantadas por jurisconsultos da antiga Roma, quando solicitados a resolver conflitos de interesse não tutelados pelo ordenamento da época. Que fariam os juízes, de ontem e de hoje, para apaziguar contendas entre duas senhoras disputando a exclusividade dos modelos de seus vestidos? Da mesma forma, pode-se intuir que os critérios de validade e eficácia das declarações de vontade surgiram com os primeiros negócios jurídicos na época das tribos. Será que não havia a discussão sobre a validade da venda (ou troca) de arco e flechas furtados?

A Teoria do Fato Jurídico surgiu muito tempo depois, no século XIX, e apenas identificou, como critérios fundamentais, a existência e validade jurídica dos fatos. Não houve criação de critérios, portanto, se ela tivesse surgido em um ramo jurídico diferente do Privado, a T.F.J. poderia ter identificado critérios diferentes.

Enfim, já discutida a sua função cognitiva, passemos ao estudo de sua finalidade e aplicação.

Pergunta-se: qual a finalidade de se ter uma forma organizada de observar os planos do suporte fático sendo que, antes de surgir uma teoria geral, os requisitos já eram observados do mesmo modo?

Após passar o choque causado em quaisquer ouvidos, tanto da esquerda como da direita, pelo tom "careta", retrógrado e formalista da resposta que o leitor já intuiu, enfim, responde-se: não do mesmo modo.

Sem entrar nas questões teóricas já abordadas em outro capítulo, mas dando uma "pincelada" inevitável, digamos que a clareza da percepção, assim como das lentes dos óculos, é fundamental para a observação melhor possível dos objetos, ainda que estejamos vivendo no mundo de Alice, onde a realidade nada mais é do que a projeção de sonhos apriorísticos. Observar com cuidado é apenas um esforço de não turvar a vista com as confusões da própria mente, e não, como pode ter pensado o estômago em sua primeira reação: tentar organizar o mundo em quadradinhos dentro das gavetas numeradas. Até para perceber-se o verdadeiro estado caótico das coisas é necessário uma mente não confusa.

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Portanto, ao se analisar as condições de um suporte fático, é importante definir anteriormente o que será analisado, até por uma questão de honestidade retórica. A identificação ou não de um vício em um negócio jurídico pode decidir uma causa, e erros desse tipo podem causar sérias injustiças. Como já foi dito anteriormente, a clareza da retórica na concatenação dos nexos lógico, argumentos teleológicos ou hermenêuticos dificultam, não só os erros de boa-fé, como os acertos de má-fé nos processos decisórios judiciais (é claro que supomos a má-fé como mera hipótese).

Quanto à aplicação, a doutrina sobre o fato jurídico é clara e pacífica (pressupõe-se que o leitor já domina o assunto), o que se reflete na eficácia e eficiência das soluções jurídicas na esfera jurisdicional. É o que podemos observar nas seguintes ementas jurisprudenciais:

-Se a escritura pública de compra e venda é lavrada com base em venda que não existiu e obtida por meio fraudulento, é de ser anulada por vício de consentimento. (Ap. 1.500/89, 1.11.89, 2ª TC TJMS, Rel. Des. Nelson Mendes Fontoura. RJTJMS, v. 56, p. 14).

- Uma coisa é vício de consentimento, consentimento defeituoso, e, aí, muito diferente, a ausência absoluta desse consentimento. Num caso, o ato existe, ainda que imperfeito e, no outro caso, o ato não se constitui, não existe, não se forma, por faltar-lhe a própria viagens. (RE 9.941, 25.6.46, 2ª T STF, Rel. Min. Orozimbo Nonato. Justiça, v. 30, p. 59).

- Comprovada a transmissão ilícita, é de se declarar a nulidade dos registros das averbações e de todos os instrumentos admitidos da transmissão viciada. (Ap. 10.877, 10.12.84, 1ª TC TJMT, Rel. Des. Licínio Carpinelli Stefani. Revista dos Tribunais, n. 601, p. 174).

- Ato jurídico. Defeito. Erro pretendido. Escritura de Compra e Venda. Vício de consentimento inexistente. Alienação, ademais, declarada para fins de imposto de renda. Tendo o próprio vendedor afirmado em suas declarações para fins de imposto de renda que o imóvel havia sido alienado, dúvida não paira sobre de que não houve o assoalhado "erro" que, como vício de consentimento, pudesse invalidar o ato jurídico perfeito e acabado (Ap. 61.945-1, São Paulo TJSP, 6ª Câm. Revista dos Tribunais, n. 605, p. 86).

- Constatando-se, pelas provas, ter havido artifício astucioso levando os autores a produzirem declaração de vontade que sem esse artifício não teriam produzido, é de se dar pela procedência da ação, com a anulação do ato, nos termos dos arts. 92 e 95, c/c o Art. 147, II, todos do CC. (Ap. 447/77, 18.10.77, 1ª CC TJPR, Rel. Des. Ossian França. Revista dos Tribunais, n. 522, p. 232)

- Erro essencial, (Art. 88 do CC). Comprovação. Anulação do contrato e dos títulos de Crédito, emitidos em decorrência dele. Restituição, ainda, das quantias já pagas por conta do preço. (Ap. 19.278-2, 4.3.82, 9ª CC TJSP, Rel. Des. Salles Penteado. JTJ, v. 79, p. 81).

- Por que ocorra, destarte, erro substancial, basta que, como obstáculo ou como vício, interesse à natureza do ato, o objeto principal da declaração, ou alguma das qualidades a ele essenciais (artigo 87, do Código Civil), pouco importando seja, ou não, muito evidente. Ser, ou não, evidente é questão de valoração da prova, não da substancialidade do erro. (EI 53.068-1, 1.7.86, 2ª CC TJSP, Rel. Des. Cezar Peluso. JTJ, v. 105, p. 384).

- É anulável o ato jurídico por erro substancial, escusável e real, capaz de viciar a vontade de quem o pratica (Art. 147, II do CC). Há necessidade, contudo, de ser demonstrado por quem o invoca, mas, por ser fenômeno de ordem subjetiva, que muitas vezes não comporta prova direta, essa demonstração pode ser feita através de indícios e presunções, devendo ser reconhecido se emergir cristalino de elementos subjetivos. (Ap. 27.016, 24.5.90, 4ª CC TJSC, Rel. Des. Gaspar Rubick. Revista dos Tribunais, n. 666, p. 147).

- Ato jurídico. Defeito. Assinatura de documentos em branco por subgerente, empregado da ré, dispondo de seus bens sob grave ameaça. Conduta decorrente de acusação dos diretores do estabelecimento comercial de desfalques em seus cofres. Ocorrência do uso irregular das vias de direitos. Art. 98 do CC. Coação configurada. Anulatória procedente. (Ap. 390.375, 9.8.88, 7ª C 1º TACSP, Rel. Juiz Francisco de Assis Vasconcelos. ITA(RT), v. 113, p. 206).

- Propriedades imobiliárias negociadas com enorme desproporção de preço. Fato decorrente do aproveitamento do estado psíquico desequilibrado do autor-varão alcoólatra, transmitindo-lhe informação errada sobre o valor de seu imóvel, envolvendo também sua mulher, semi-analfabeta. (Ap. 34.381-2, 2 1.8.85, 11ª CC TJSP, Rel. Des. Bueno Magano. JTJ, v. 98, p. 28).

- Hipótese em que o dolo mesmo essencial não basta para ensejar a indenização. Possibilidade, apenas, de invalidação do ato jurídico. (Ap. 334.997, 28.8.85, 2ª C 1º TACSP, Rel. Juiz Wanderley Racy. JTA, v. 98, p. 104).

- Dolo de Advogado. Hipótese em que este não pode ser considerado terceiro. Anulação do negócio, independentemente de o representado ou mandante ter ou não conhecimento do dolo. Ocorrência deste que torna desnecessária a existência do erro essencial. (Ap. 107.413-2, 17.9.86, 16ª CC TJSP, Rel. Des. Mariz de Oliveira. JTJ, v. 104, p. 84).

- O dolo essencial, isto é, o expediente astucioso empregado para induzir alguém à prática de um ato jurídico que o prejudica, em proveito do autor do dolo, sem o qual o lesado não o teria praticado, vicia a vontade deste e conduz à anulação do ato. (Ap. 1.627/79, 11.3.80, 1ª CC TJPR, Rel. Des. Nunes do Nascimento. Revista dos Tribunais, n. 552, p.219)

Esses são exemplos que ilustram uma verdadeira teoria geral, onde se vê perfeita harmonia e confluência entre teoria e prática. A legislação sobre a existência, validade e eficácia não é extensa, tampouco o é sua doutrina. Mas a sua inteligência e precisão (da teoria) de âmbito de incidência são tão perfeitos que dispensam que o legislador seja muito específico. A previsão teórica sobre a tipificação em abstrato encontra um ponto de apoio na legislação apenas para que seja legitimada. É isso o que devemos tomar como exemplo de um verdadeiro (sub)sistema jurídico. Guardemos essa impressão para analisar os mesmos planos no Direito Processual Civil.


CAPÍTULO 6

Teoria Geral do Processo

Dando seguimento ao ato de remar contra a correnteza contemporânea da especialização em detrimento do estudo dos objetos em sua totalidade, nossa postura não poderia ser outra, no Direito Processual, que a de ressaltar a importância da teoria geral.

Ninguém melhor que Cândido Rangel Dinamarco para explicar a função da Teoria Geral do Processo:

"A complexa diversidade de espécies de processos é responsável, como facilmente se compreende, pelo estado de desagregação metodológica no estudo de cada um, contra o qual se volta a teoria geral do processo. Sem esta, prevalecia a natural tendência a observar cada ramo processual em particular, como se fosse conceitual e metodologicamente isolado dos demais. Essa fragmentariedade é alimentada pelas origens diferentes que os diversos tipos de processos tiveram, evoluções distintas, ao que se soma o próprio caráter instrumental do processo, na medida em que, conferindo-lhe permeabilidade às influências do modo de ser do direito substancial posto à base da pretensão deduzida, induz a ter de cada processo uma visão associada aos parâmetros jurídico-substanciais do seu objeto; além disso, a construção diferenciada das diversas espécies de processos segundo a natureza jurídico-substancial do provimento pedido concorre para fragmentar os conceitos e estruturas, até mesmo dentro do mesmo ramo do direito processual".

É unânime a compreensão do grande valor do ensino da Teoria Geral do Processo, nos cursos jurídicos, como propedêutica ao estudo do Processo propriamente dito. Porém, seria um curioso objeto de estudo investigar quantos desses alunos, após aprenderem a fazer a distinção entre ação, processo e procedimento e alguns outros conceitos, após tornarem-se juristas, utilizem em sua prática algo mais que o conhecimento de requisitos, pressupostos e alguns princípios gerais do Direito Processual.

Sobre a utilidade dos conceitos gerais sobre o processo, não somos nós o culpado pela crítica, e sim, mais uma vez, o nosso ilustre professor Dinamarco:

"Ora, a teoria geral do processo propõe-se a colher os elementos da diversidade representada pelas variadas espécies de processos e reduzi-los à unidade, numa escalada que principia com a sistematização de determinado ramo do direito processual (v. g., direito processual civil) e tende à universalização. A preocupação pela unidade metodológica é signo de maturidade científica. Mas é indispensável definir os limites da síntese útil, sem chegar a extremos de generalização dos quais nada de proveitoso possa retornar a cada ramo do processo: a exagerada extensão dos conceitos e princípios seria propícia à diluição da força de agregação, que cada qual tem, como elemento retor de institutos e critério interpretativo de disposições endereçadas ao objetivo eleito. A teoria geral do processo, vista pelo estudioso do processo civil, só é metodologicamente válida na medida em que sirva de apoio a soluções seguras em processo civil".

Convido agora todos reclamam da necessidade do estudo da TGP, mesmo que não tenham coragem para uma manifestação acadêmica, a pensarem em como seria uma TGP com uma presença mais viva na prática processual. Talvez poderíamos dizer que essa ciência (seja por sua juventude ou outro motivo) tem sido eficiente, porém insuficiente. Seria mais polido dizer que é uma ciência incompleta, ou então, que está faltando o "princípio da instrumentalidade da teoria geral do processo".

O professor explica o que seria a TGP ideal:

"Ela não pretende unificar soluções, mas o raciocínio. Os grandes princípios, as grandes garantias, os grandes conceitos, os grandes esquemas lógicos são comuns. Servem como leito lógico disciplinador do raciocínio do processualista".

"O que a teoria geral do processo postula é, a visão metodológica unitária do direito processual. Unidade de método não implica homogeneidade de soluções. Pelo método indutivo, ela chegou à instrumentalidade do processo como nota central de todo o sistema e tendência metodológica do direito processual contemporâneo como um todo; a visão instrumentalista, alimentada pela comprovação que a teoria geral fornece, é o vento mais profícuo da atualidade, em direito processual. A teoria geral sabe indicar também, com segurança e generalidade, o modo de ser da relação funcional entre o processo e o direito substancial, além de definir princípios e seu significado jurídico-político e sua amplitude, indicando os institutos fundamentais do direito processual jurisdicional, definindo o "módulo processual" e construindo os grandes diagramas da ciência do processo (competência; ação, elementos, condições; procedimento, atos processuais, forma, vícios, invalidade; partes, capacidade; prova, instrução, decisão; provimento recurso etc).".

É lamentável ver o desperdício de obras de brilhantes juristas, grandes teóricos do processo, pela falta de aplicação das suas idéias. Seja o motivo a falta de continuidade desses trabalhos, ou a falta de sistematicidade, o fato é que o jurista (prático) não tem segurança para simplesmente ler o Tratado das Ações e sair aplicando a teoria dos pesos de eficácia. Isso seria temerário, pra não dizer inoperante.

Portanto, a idéia de ser a Teoria Geral do Processo uma "ciência do dever ser feito" é otimista e visa estimular o pesquisador a desenvolver essa área, cuja importância já foi ressaltada nos capítulos precedentes. Nossa sugestão, como começo, é o aprofundamento e sistematização dos planos de existência, validade e eficácia do fato jurídico processual, aproveitando a oportunidade de ter-se como exemplo a obra magnífica de Pontes de Miranda: a Teoria do Fato Jurídico.

Sobre a autora
Cristiane Szynwelski

professora em Brasília DF

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SZYNWELSKI, Cristiane. Teoria Geral do Direito e o fato jurídico processual.: Uma proposta preliminar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 224, 17 fev. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4837. Acesso em: 18 nov. 2024.

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