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Análise do filme “Histórias Cruzadas”, sob o prisma do direito de igualdade

Agenda 25/04/2016 às 16:33

O presente artigo tem como objetivo fazer uma breve explanação acerca do filme “Histórias Cruzadas”, de Tate Taylor, tendo em vista a perspectiva do direito de igualdade e sua aplicação na sociedade brasileira atual.

O filme se passa em Jackson, capital do estado do Mississipi, Estados Unidos, na década de 1960. Apesar de diferirem o lugar e a época, há de se fazer comparações com o Brasil do século XXI.

Pode-se observar o direito fundamental em questão sendo violado em ambas as datas e lugares. Atingido pelo racismo e pelo machismo, o direito de igualdade ainda se encontra fragilizado, apesar do respaldo que a lei positiva lhe confere.

Assim, pretende-se também apontar algumas falhas da garantia constitucional de um direito tão essencial à convivência humana, que quando não respeitado ofende a incontáveis outros direitos e princípios.

“Histórias Cruzadas” mostra o cotidiano das mulheres negras na década de 1960 em uma pequena cidade dos Estados Unidos, onde a desigualdade é nítida e até mesmo perturbadora, especialmente em razão da cor de pele.

Narrado por Aibileen, personagem principal da trama, o filme conta a história das empregadas domésticas chamadas “de cor”. Tudo começa quando Skeeter, uma jovem da elite branca com o sonho de ser escritora, interessa-se pela situação degradante dessas mulheres.

Skeeter não se enquadra aos padrões machistas da época, falta-lhe o interesse de casar e ser dona de casa, o que era algo estritamente fadado e esperado das mulheres brancas da época. Suas pretensões envolviam estudo e trabalho, atividades restritas aos homens.

Incomodada com o tratamento insignificante e por vezes ofensivo das patroas, Skeeter vai à procura de Aibileen para retratar a mundivivência das empregadas domésticas. Esta se sente amedrontada, mas acaba concedendo as entrevistas que deram início ao polêmico livro “The Help”, contendo dezenas de depoimentos de tais mulheres e seus sofrimentos.

Dentre suas tarefas estavam limpar a casa, fazer comida e cuidar dos filhos das famílias brancas. Eram consideradas objetos, facilmente substituíveis, como se não tivessem sentimentos ou vontades, indignas de respeito e nem mesmo de atenção. Alguns até mesmo as consideravam outra espécie, com doenças diferentes, o que levou à criação de uma norma na qual deveriam ter banheiros separados, fora da casa.

Tudo era separado em função da cor, Minny, uma das empregadas negras, ao ensinar sua jovem filha que teve de largar os estudos para seguir os mesmos caminhos da mãe, explica que nem mesmo os talheres dos brancos podiam ser tocados pelos negros. As igrejas, as escolas, os bairros, sempre divididos, pelo costume e pela própria lei.

Verdadeiras atrocidades foram cometidas com os afrodescendentes ao longo da história, o filme retrata apenas uma pequena parte do que aconteceu na década de 1960, época de luta pelos direitos civis na América.

Antes da instituição realizada por Martin Luther King, a segregação racial, principalmente no Mississipi – estado onde a escravidão foi grande fonte de comércio, e no qual preconceito racial estava enraizado na cultura dos habitantes locais – era extremamente forte. Martin Luther King lutava para o fim da segregação racial na América assim como Nelson Mandela lutava pelo fim do apartheid na África.

Quanto ao Brasil, o preconceito com os afrodescendentes tem sido um problema desde a colônia, e afeta a sociedade atual. Ainda há uma divisão evidente entre pessoas com a cor de pele distinta. Cristovam Buarque argumenta que "o Brasil é um país dividido, que abriga a maior concentração de renda do mundo e um modelo de apartheid: o apartheid social brasileiro."

Pode-se observar a diferença econômica, o salário de um homem branco no Brasil é, em média, 46% superior em relação ao de um homem negro. São dadas mais oportunidades aos caucasianos, que acabam por conquistarem empregos melhores e consequentemente uma vida mais estável.

Metade da população brasileira é negra, mas essas pessoas ainda se encontram em ambientes hostis e marginalizados, enquanto que a população branca está presente em lugares melhores. E isso pode ser visto com muita clareza no dia a dia de qualquer cidadão, até mesmo na Universidade Mackenzie, onde os professores e alunos são em sua maioria brancos. Mais de 70% dos brasileiros vivendo na miséria são negros ou pardos.

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E não é somente a questão econômica que é alarmante, em relação à segurança, o percentual de negros assassinados no Brasil é 132% maior que o de brancos. A diferença é severa. O jornalista Kevin G. Hall aponta que os afro-brasileiros estão atrás dos brasileiros brancos em quase todos os indicadores sociais, incluindo renda e educação, e aqueles que vivem em cidades são muito mais propensos a serem abusados, mortos ou presos pela polícia.

O Brasil é conhecido como um dos países que mais passou por miscigenação, e, consequentemente, tornou-se livre das perseguições públicas às raças, mesmo assim, o racismo continua evidente em nossa sociedade.

A Lei no 12.288/10 - Estatuto da Igualdade Racial, de autoria do Senador Paulo Paim, encontra-se em vigor e tem como objetivo: “combater a discriminação racial e as desigualdades raciais que atingem os afro-brasileiros, incluindo a dimensão racial nas políticas públicas desenvolvidas pelo Estado”.

A legislação brasileira tenta diminuir, desde a década de 50, a triste realidade gerada pelo fim da escravatura, que, de uma hora para outra, deixou os ex-escravos à mercê da sorte, sem qualificação, sem emprego remunerado, graças ao preconceito pela sua cor e condição que viviam até então.

Aproximadamente 90 anos depois que A Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel, libertou os escravos é que foi incluído no Código Penal Brasileiro, por meio da Lei Afonso Arinos (Lei 1390/51, de 3 de julho de 1951), considerando contravenção penal atos preconceituosos contra a raça ou a cor do indivíduo. Mesmo assim, com diversas falhas e sem a devida estrutura, considerando apenas lugares públicos e em casos de flagrantes com testemunhas.

Há mais de 20 anos entrou em vigor a Lei Caó (Lei no. 7716/89, de 5 de janeiro de 1989), regulamentando a Constituição Federal, tornando inafiançável e imprescritível o racismo, ao dizer que todos são iguais, sem discriminação de qualquer natureza, definindo como crime o ato de praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

O racismo é amplamente discutido no meio jurídico. Podemos citar o jurista constitucional Calil Simão, o primeiro no Brasil a escrever sobre o Estatuto da Igualdade Racial:

“Com base no Estatuto da Igualdade Racial é possível exigir do Estado medidas concretas para atender um interesse individual ou coletivo, bem como pode um ente político exigir do outro a sua contribuição nos projetos e ações destinadas a combater a “discriminação racial” e as “desigualdades raciais” que atingem os afro-brasileiros.

Desse modo, o argumento de alguns de que o Estatuto da Igualdade Racial é um texto de compromisso ou simplesmente sugestivo sem qualquer característica de coercitividade não procede, já que ele trata do dever do Estado, regulamentando a Constituição Federal e definindo qual a postura do Estado com relação à proteção e promoção dos interesses dos afro-brasileiros.

Se a proteção dos direitos fundamentais, a teor do § 2º do artigo 5º da Constituição Federal, tem aplicação imediata, podendo-se exigir do Estado, por meio do Poder Judiciário, o exercício de qualquer direito fundamental, independentemente de lei ou ato normativo infraconstitucional, o Estatuto da Igualdade Racial serve para delimitar e direcionar esse dever fazendo surgir ao Estado um dever comissivo específico, consequentemente, inaugurando sua responsabilidade em razão de uma omissão, bem como norteando a atuação do Poder Judiciário e dos titulares da proteção dos direitos difusos e coletivos”1

A Constituição Federal de 1988 teve como uma de suas principais pretensões assegurar o respeito à dignidade humana e aos direitos fundamentais. Assim, a isonomia encontra-se em uma posição de destaque, afinal é algo que o Estado deve buscar alcançar.

A igualdade é uma meta, objetivo positivado no diploma citado:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Talvez o preconceito racial no Brasil não seja tratado exatamente como no filme “Histórias Cruzadas”, mas é certamente tão revoltante e absurdo como no passado. Políticas afirmativas e programas visando combater esse problema têm sido implantados durante os anos, mas ainda não são suficientes. A isonomia, além de ser garantida por normas positivas que devem ser eficazes, é preciso estar enraizada no país, todo brasileiro deve ter a plena consciência de que a cor da pele não diferencia ninguém.


Bibliografia

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1998.

SARMENTO, Daniel. “Direito Constitucional e Igualdade Étnico-Racial”. in Ordem jurídica e igualdade étnico-racial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008

https://pt.wikipedia.org/wiki/Lei_Afonso_Arinos

https://arquivo.geledes.org.br/racismo-preconceito/defenda-se/22744-lei-n-7-716-89-lei-cao-25-anos-no-combate-ao-racismo

https://pt.wikipedia.org/wiki/Estatuto_da_Igualdade_Racial

https://super.abril.com.br/ciencia/luta-racismo-corrida-ingloria-440661.shtml

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