O confuso processo disciplinar, como é desenvolvido no Brasil, depende muito de um exercício de engenharia jurídica. O Direito, sabidamente, é uma ciência relativa; as leis do universo jurídico diferem das leis da natureza substancialmente por não serem absolutas. Se, entretanto, essa relatividade caracteriza o Direito como um todo, no Direito Disciplinar, em particular, torna-se a grande regra. Nele, praticamente tudo depende. Depende de quem interpreta, depende de quem aplica; depende de quem é o acusado, depende de quem o defende.
Portanto, cientes da insegurança do terreno onde se caminha, passamos a examinar uma lacuna que existe no processo disciplinar e que precisa ser resolvida a partir de um trabalho de construção lógica e científica. Pode a comissão processante indiciar um servidor por fatos que vão além daqueles descritos na Portaria? No caso, a prova recolhida durante a instrução demonstra de forma cristalina que o agente, além da falta disciplinar apontada pela autoridade ao instaurar o processo, praticou outras faltas. Nesta hipótese, ele poderá ser indiciado por esse conjunto?
Dependendo de quem for examinar a matéria, a resposta poderá ser sim ou não.
O sim
Podemos entender que essa indiciação é possível, na medida em que examinarmos o que o legislador pretendeu ao estabelecer o processo disciplinar distribuído em fases, como está na Lei nº 8.112/90:
"Art. 151. O processo disciplinar se desenvolve nas seguintes fases:
I – instauração, com a publicação do ato que constituir a comissão;
II – inquérito administrativo, que compreende instrução, defesa e relatório;
III – julgamento."
Veja-se o que fez o legislador:
a)Estabeleceu a função do ato inauguratório do processo, a Portaria: indicar os membros da comissão processante (como se pode ler no inciso I). Não a vinculou ao apontamento dos fatos.
b)Criou uma fase a que chamou de inquérito administrativo. Ora, inquérito é um vocábulo com sentido técnico, que significa conjunto de diligências para esclarecimento de um fato. Em um inquérito, a autoridade recolhe provas para constatar a materialidade e identificar a autoria. A partir de então, indicia, se for o caso, o indivíduo investigado.
Pode-se, perfeitamente, portanto, concluir que o legislador sinalizou este caminho. A Portaria limita-se a formalizar o início do processo, com a indicação dos membros da comissão processante; e essa comissão, na fase do inquérito, irá recolher os elementos que permitam estabelecer os fatos certos e as respectivas violações estatutárias, para, só então, indiciar o servidor e abrir a oportunidade de defesa.
Seguindo esse raciocínio, que decorre da leitura atenta da Lei, a conclusão é esta: a comissão pode indiciar por fatos que vão além daqueles aos quais a Portaria se reporta.
O não
Se a leitura da Lei nº 8.112/90 – e dos estatutos estaduais que praticamente a copiam – assim sinaliza, outros elementos de interpretação exigem cautela. A começar pela crítica à situação crítica (é válido o trocadilho) criada pelo legislador com o então chamado Regime Jurídico Único dos servidores da União. Querendo ser prático, o legislador inventou um modelo que enlouquece os espíritos alinhados ao bom direito; mistura conceitos, atropela garantias constitucionais, impõe prazos irreais; ora determina a observância do óbvio, ora deixa em aberto pontos fundamentais, tanto na parte material quanto na parte processual. Por conseqüência disso, a doutrina e a jurisprudência foram ocupando espaços e é com elas que temos que trabalhar.
Assim, em que pese o legislador ter apontado que a função da Portaria é essencialmente a formalização do processo e a constituição da comissão, os tribunais têm decidido além. Atribuem à Portaria um valor equivalente à Denúncia no processo penal. Como tal, deve indicar quem é o acusado e qual é a acusação. A boa doutrina não é diferente. O eminente professor José Armando da Costa, com quem temos o privilégio de dividir o púlpito em conferências pelo país, ensina com propriedade que a Portaria deve indicar o que ele chama de raio apuratório. E lembra o jurista cearense que nós saímos do processo inquisitório para evoluirmos para o processo acusatório. Isso quer dizer que o processo só pode nascer de uma acusação certa. Não se pode mudar a acusação ao longo do caminho, especialmente ampliá-la.
Não é demasiado lembrar que o Direito Administrativo contempla dois institutos a serem usados na tarefa de controle de responsabilidades: a sindicância e o processo administrativo disciplinar. A sindicância é que é o verdadeiro inquérito. Nela, levanta-se a extensão dos fatos. Depois, processa-se com base nos fatos que foram exaustivamente investigados. O que vemos, entretanto, é o atropelo. Começa-se o processo sem uma base, sem fatos nítidos, sem a extensão devidamente apurada. Disso decorre, depois, o aparecimento de fatos novos, dando ensejo ao problema em tela.
Note-se, também, que o legislador, deu à fase do inquérito (inciso II do art. 151) três sub-fases: instrução, defesa e relatório. Ao incluir a defesa no inquérito, o legislador assinou o óbito da qualidade do seu texto. No art. 153, chega a dizer que o inquérito administrativo obedecerá ao princípio do contraditório, assegurada ao acusado ampla defesa... Isso é uma violência à técnica processual, para dizer-se o mínimo. É jogar em um caldeirão vários conceitos jurídicos, temperá-los com improviso e impaciência e, depois, atear fogo. A mistura poderá explodir. Mas irá explodir no rosto do cozinheiro, nunca irá explodir na face de quem deu a receita. Logo, experimente quem quiser!
Por derradeiro, é oportuna a advertência do eminente doutrinador Luis Vicente Cernicchiaro, que foi Ministro do Superior Tribunal de Justiça. Nenhum raciocínio jurídico pode ser feito sem levar em conta a Carta Política, costuma escrever. E a Carta de 1988 deixou claro que os litigantes em processos administrativos têm direito à ampla defesa. E a amplitude dessa defesa passa pela segurança da acusação, que deve ser posta no início do processo
Na confusão mental em que se envolveu o feitor da Lei nº 8.112/90, este criou a figura da notificação do acusado já no nascedouro da instrução. Quer dizer, o servidor pode, desde o início, contraditar. Mas contraditar o quê? Tudo o que aparece pela frente? Ou contraditar as provas dentro de um raciocínio lógico, estabelecido a partir de uma acusação definida?
Volta-se à fórmula adequada: não havendo contornos claros da acusação, proceda-se sindicância para apurar. Compreenda-se, portanto, o seguinte: o processo é um jogo com regras claras e cartas abertas sobre a mesa. Não pode haver surpresas.
Esse entendimento não é de excesso formal. Toma essa aparência unicamente para aqueles que enveredaram por um caminho equivocado e, ao terem que dar a volta, acham a distância longa. Madre Tereza de Calcutá, a propósito, ensinou: o caminho mais curso é sempre o caminho certo.
Em conclusão, tomamos postura ao lado do não. Não pode a comissão ampliar a acusação formatada em Portaria. O ato de indiciar é o de confirmar ou não a acusação, quiçá abrandando-a, e abrindo espaço para conhecimento da tese de defesa. Não mais do que isso. (Diante a novos fatos, ou fatos que alterem a acusação proposta na Portaria, deve a comissão deliberar pela remessa à autoridade instauradora para, querendo, fazer o aditamento.)
É a fórmula ideal? Talvez não. Ou certamente não. Mas é o que se pode recolher do modelo atual, confuso, intrigante. Quando sai-se de um labirinto, cai-se em um poço ou mergulha-se na escuridão. A maneira segura de sair-se do problema parece ser o acima apontado como segunda alternativa. No mínimo, é medida de cautela, até que o processo disciplinar no Brasil venha a ser tratado com ciência, com lógica e – por que não? – com responsabilidade.