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A função social da propriedade como princípio jurídico

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Agenda 22/02/2004 às 00:00

Procuraremos identificar, utilizando métodos de exegese constitucional, quais as linhas mestras da função social da propriedade que podem ser extraídas dos mandamentos constitucionais a ela referentes, apesar da fluidez presente nas normas superiores.

SUMÁRIO: 1 – Introdução; 2 - Direito de propriedade e urbanismo; 3 - A função social da propriedade; 4 - Conteúdo do princípio jurídico da função social da propriedade; 5 - Função social da propriedade e poder de polícia; 6 - A função social da propriedade como princípio jurídico; 7 – Conclusões; 8 - Bibliografia


1 - Introdução

Buscaremos, neste pequeno estudo, a começar pelo enfoque jurídico do direito de propriedade privada e de sua importância crucial para o Direito Urbanístico, traçar linhas, ainda que modestas, sobre a revolução operada em tal conceito, desde o exacerbado individualismo que o caracterizou no Estado liberal, até a atribuição de uma função social a ele, tido, por muitos, como o direito absoluto por excelência.

Após situarmos o direito de propriedade e a sua função social no contexto histórico que reputamos correto, e que consideramos fundamental para a correta apreensão do conteúdo do princípio jurídico, procuraremos identificar, utilizando métodos de exegese constitucional, quais as linhas mestras da função social da propriedade que podem ser extraídas dos mandamentos constitucionais a ela referentes, apesar da fluidez presente nas normas superiores.

Ingressaremos, então, no confronto entre a função social da propriedade e os tradicionais meios de intervenção na propriedade privada, baseados no conceito estrito - ou clássico - de poder de polícia. Procuraremos demonstrar uma contradição ideológica entre o surgimento da concepção da função social da propriedade e o Estado liberal, que deve influir decisivamente na solução do conflito escolhido como objeto do item estudado.

Por fim, de posse de todos os elementos estudados ao longo do trabalho, tencionaremos encarar a função social da propriedade como verdadeiro princípio jurídico, mola-mestra de um sistema que, muito mais do que simplesmente fundamentar novas formas de intervenção do Estado na propriedade privada, irradia seus efeitos sobre toda e qualquer atividade estatal que tenha por objeto a propriedade privada.

Extremando o princípio jurídico da função social daqueles instrumentos legais que se fundamentam nele e buscam dar-lhe concreção, temos como objetivo final atribuir o maior grau possível de efetividade [1] a tal mandamento constitucional, crédulos de que a aplicação reta, inovadora, destemida até, das normas legais, particularmente daquelas alçadas a nível constitucional, representa mecanismo incisivo de modificação da realidade social - que em nosso país, sobretudo no que se refere à propriedade urbana, precisa de uma remodelação que se proclama urgente há tempos.


2 - Direito de propriedade e urbanismo

Modernamente, o Urbanismo é entendido como um "conjunto de medidas estatais destinadas a organizar os espaços habitáveis, de modo a propiciar melhores condições de vida ao homem na comunidade" [2].

Como atividade estatal que é, a atividade urbanística está diretamente condicionada pela extensão do direito de propriedade, reconhecido pelo ordenamento jurídico aos particulares.

Isso já deixa clara a importância do direito de propriedade - e das implicações nele admitidas pelo ordenamento jurídico vigente em um determinado Estado - para a correta estruturação da disciplina jurídica que tem por objetivo, justamente, conhecer e sistematizar as normas jurídicas que incidem sobre a referida atividade: o Direito Urbanístico.

A propriedade privada, sobretudo após o influxo das idéias iluministas, que culminou com a Revolução Francesa, costumava ser encarada como um direito absoluto, diante do qual todos os outros deveriam envergar-se. Entretanto, é equivocado afirmar-se que a propriedade, até mesmo em seus mais remotos tempos, não tenha tido qualquer limite jurídico.

De início, tal afirmação seria uma negação de existência do próprio direito, "mesmo porque a idéia de poder absoluto não se coaduna com a idéia de direito. Qualquer direito será sempre limitado" [3]. Portanto, se a propriedade fosse reconhecida de forma absoluta por um determinado sistema, não estaríamos diante de um regime jurídico, mas sim diante do arbítrio [4].

"O direito de propriedade sempre foi assegurado na civilização ocidental, tendo seu apogeu na época da Revolução Francesa. Mas mesmo aí, não se pode dizer que era absoluto, totalmente isento de limites. Essa ausência de limites é estranha ao próprio conceito de direito, que, por natureza, é limitado" (5).

Em segundo lugar, convém termos em mente que a idéia de propriedade pode ser - e freqüentemente é - diversa do perfil que determinado sistema jurídico pode lhe dar. São coisas diversas a concepção filosófica de propriedade, e o reconhecimento, concreto, do direito de propriedade em um determinado sistema jurídico. Nas palavras de Celso Antonio Bandeira de Mello:

"Convém desde logo observar que não se deve confundir liberdade e propriedade com ''direito de liberdade'' e ''direito de propriedade''. Estes últimos são as expressões daqueles, porém, tal como admitidos em um dado sistema normativo" (6).

Sendo o direito um sistema de promoção da convivência social, e implicando tal convivência, necessariamente, na redução da esfera de liberdade dos indivíduos, podemos afirmar que a concepção do direito de propriedade como um direito absoluto é incompatível com a idéia mesma de direito.

O que não se pode negar, entretanto, é que o direito de propriedade, ainda que sempre limitado, teve, sobretudo após a Revolução Francesa, uma tendência marcadamente individualista. [7]

E nem poderia ser diferente, se analisarmos a conjuntura política que estava presente naquela época.

Com efeito, a classe burguesa do final do Século XVIII buscava traçar limites muitos claros à ação estatal, substituindo a figura do "súdito" pela do "cidadão". A guarida mais ampla possível da "propriedade privada", destarte, era pedra de toque do regime que se pretendia implantar.

Mas o que também é inegável é o fato de que o liberalismo não teve força suficiente para trazer à humanidade o oásis prometido pela economia de mercado, acarretando, sobretudo após a Revolução Industrial e os problemas dela advindos, uma crescente ação interventiva do Estado, com o objetivo de impedir - ou pelo menos minorar - a dominação do indivíduo por outros indivíduos.

"A acentuada divisão do trabalho bem como os diversos reflexos outros da Revolução Industrial haveriam de revolver os princípios tradicionais, máxime depois de se haver chegado à conclusão de que os detentores da propriedade dos meios de produção açambarcam também a mais-valia, munindo-se, destarte, de uma autoridade ou de um poder - para quem assim preferir - quase-público. Adquirem eles uma capacidade, às vezes desmensurada, de exercer influência política ou social" (8).

Nesse novo quadro, a oposição de limites mais estreitos ao direito de propriedade foi um desdobramento natural.

"Enquanto a consagração dos ''direitos individuais'' substancia uma defesa do indivíduo perante o Estado, a estatuição dos ''direitos sociais'' traduz uma defesa do indivíduo perante a dominação econômica de outros indivíduos. Passaram, assim, a ser limitados os direitos individuais, atribuindo-se a alguns, ''funções sociais''. Foi o que se verificou com o direito de propriedade, cuja expressão, agora, já não mais se cinge a um simples direito, mas a um ''direito-dever''" (9).

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Portanto, se com a Revolução Francesa o direito de propriedade foi prestigiado como uma forma básica de proteção do indivíduo frente ao Estado, prolongamento mesmo da personalidade humana, com o intervencionismo estatal tudo mudou, passando a sobressair um caráter social no direito de propriedade, até então obscurecido pela sua concepção marcadamente individualista.

Outro fator, também ligado à Revolução Industrial, que contribuiu decisivamente para o amesquinhamento da concepção individualista do direito de propriedade, foi o fenômeno da urbanização, do que decorreu uma necessidade imperiosa de mecanismos de intervenção estatal para frear o desenvolvimento irracional dos núcleos urbanos, cada vez mais inchados.

O objeto imediato, portanto, de tal intervenção estatal não poderia ser outro senão a propriedade urbana, ou, mais exatamente, as faculdades dadas pela lei àquele que detém a posição jurídica de proprietário de um imóvel urbano.


3 - A função social da propriedade

A modificação social acima descrita, por óbvio, influiu decisivamente na concepção jurídica da propriedade. E nem poderia ser diferente: o direito é manifestação cultural e, portanto, constantemente mutável, como o é a sua própria fonte, a sociedade.

A lição de Adilson Abreu Dallari merece ser reproduzida:

"Onde houver um grupo social aí estará presente o direito: ''ubi societas ibi jus''. Esta afirmação, de caráter axiomático, convida a uma meditação a respeito das repercussões no instrumental jurídico produzidas pelo aumento quantitativo e pelas alterações qualitativas havidas nos grupamentos humanos em geral e na sociedade humana como um todo.

(...)

"Portanto, parece também axiomática a afirmação de que o direito acompanha as mutações sociais e, dado o caráter dinâmico da sociedade humana, o direito jamais será algo estático, jamais poderá ser uma obra completa, acabada e consolidada, pois é, na verdade, um processo e não um ser" (10).

A concepção da função social da propriedade, como princípio jurídico, foi a resposta do mundo do direito às intensas modificações sociais então havidas por força da Revolução Industrial.

A redução do campo reservado ao domínio privado, aos poderes do proprietário, é decorrência da própria evolução do Estado, e de seu crescente grau de intervencionismo, objetivando exatamente frear os comportamentos particulares anti-sociais. Portanto, numa sociedade em que se busca cercear e dirigir o comportamento livre dos grupos econômicos privados no modelo capitalista, é perfeitamente natural que o Estado seja eleito para balizar tais comportamentos, e tal intervenção não pode deixar de influir decisivamente sobre a propriedade privada, "cerne do modelo capitalista" [11].

"Surge, assim, o princípio da função social da propriedade, representando um compromisso entre a ordem liberal e a ordem socializante, de maneira a incorporar à primeira certos ingredientes da segunda". (12)

Não há, como já se imaginou, qualquer incompatibilidade entre os conceitos de direito subjetivo e função. Tecnicamente, são noções absolutamente compatíveis, já que nada impede que a ordem jurídica condicione o exercício dos poderes do domínio (direito subjetivo) ao desempenho de uma atividade, pelo dominus, no interesse de outrem.

Sobre o tema escreve Eros Roberto Grau:

"Em verdade, consagrado no nível constitucional o princípio da função social dela, que se integra no seu conceito, deve, necessariamente, tal permissão ou autorização ser definida como tal: o direito subjetivo em causa, então, será concomitantemente, função - sem que aí se instale qualquer contradição dogmática". (13)

Mas, salta aos olhos, se não há contradição dogmática entre os termos, certamente há, aí, tanta contradição ideológica [14] - ou, melhor dizendo, confronto ideológico - quanto aquela existente entre as concepções sociais e liberais de Estado.


4 - Conteúdo do princípio jurídico da função social da propriedade

Chega-se, então, ao momento da difícil configuração do conteúdo do princípio da função social da propriedade.

A tarefa, já afirmaram iluminados autores [15], é das mais árduas.

Entre nós, as dificuldades são ainda maiores por se tratar de princípio constitucional, cuja interpretação é muito mais permeada por valores metajurídicos.

E convém, neste ponto, deixarmos consignado que, apesar de a função social da propriedade representar o núcleo fundamental do Direito Urbanístico, a determinação de seu conteúdo é operação típica de interpretação constitucional. Em outras palavras, o intérprete que traça linhas sobre tal princípio jurídico, alçado ao nível constitucional em nosso ordenamento jurídico, estará realizando interpretação das normas constitucionais - valendo-se, portanto, de instrumentos desenvolvidos no seio do Direito Constitucional -, apesar de influir diretamente nos cânones do Direito Urbanístico.

Assim, torna-se um imperativo inafastável termos em mente as vicissitudes do processo interpretativo, quando o objeto de nossas análises é o texto supremo, que representa, em suma, a moldura jurídica das relações políticas existentes na sociedade que lhe deu origem.

É oportuna a observação de Paulo Bonavides:

"Não vamos tão longe aqui a ponto de postular uma técnica interpretativa especial para as leis constitucionais, nem preconizar os meios e regras de interpretação que não sejam aquelas válidas para todos os ramos do Direito, cuja unidade básica não podemos ignorar nem perder de vista (doutra forma não se justificaria o longo exórdio que consagramos à teoria da interpretação e seus distintos métodos), mas nem por isso devemos admitir se possa dar à norma constitucional, salvo violentando-lhe o sentido e a natureza, uma interpretação de todo mecânica e silogística, indiferente à plasticidade que lhe é inerente, e a única, aliás, a permitir acomodá-la a fins, cujo teor axiológico assenta nos princípios com que a ideologia tutela o próprio ordenamento jurídico.

"O erro do jurista puro ao interpretar a norma constitucional é querer exatamente desmembrá-la de seu manancial político e ideológico, das nascentes da vontade política fundamental, do sentido quase sempre dinâmico e renovador que de necessidade há de acompanhá-la". (16)

Feita a observação preliminar, o cerne da questão, segundo pensamos, é definirmos se a função social seria apenas uma obrigação, a cargo do proprietário, de dar um destino socialmente útil ao seu bem, ou se, mais do que isto, seria a obrigação de dar-lhe um destino que atendesse aos postulados de uma "justiça social".

Uma análise restrita ao artigo 5º, incisos XXII e XXIII da Constituição Federal poderia fundamentar a adesão ao primeiro dos posicionamentos citados.

Realmente, nos dois dispositivos mencionados, apenas garante-se o direito de propriedade, com a inclusão, em seu conteúdo, de uma finalidade externa ao proprietário, ou seja, de uma função. Nada se dispõe a respeito do objetivo dessa função.

Entretanto, a análise de outras disposições constitucionais relativas ao tema nos leva a sustentar que a atribuição de uma função social à propriedade está umbilicalmente ligada a objetivos de Justiça Social.

Com efeito, começando nossa análise pelo artigo 3º da Carta Magna, constatamos que são elencados como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, bem como a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais. Uma interpretação finalística de qualquer disposição constante do texto da Constituição jamais poderá deixar de levar tais objetivos em consideração.

Mais à frente, no capítulo reservado à ordem econômica e financeira, tanto o direito de propriedade como a sua função social são submetidos a um objetivo expresso: assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social (artigo 170, caput e incisos II e III).

O genial trecho da lavra de José Afonso da Silva nos dá a compreensão exata do significado de tal disposição constitucional:

"Os conservadores da constituinte, contudo, insistiram para que a propriedade privada figurasse como um dos princípios da ordem econômica, sem perceber que, com isso, estavam relativizando o conceito de propriedade, porque submetendo-o aos ditames da justiça social, de sorte que se pode dizer que ela só é legítima enquanto cumpra uma função dirigida à justiça social" (17).

Na mesma sintonia estão as conclusões esposadas por eminentes estudiosos do tema:

"Parece fora de dúvida que a expressão ''função social da propriedade'' comporta não apenas o primeiro sentido, a que dantes se aludiu, mas também esta segunda acepção a que agora nos estamos reportando. Com efeito, se alguma hesitação pudesse existir quanto a isto, bastaria uma simples inspeção visual no art. 160 da Carta do País - tantas vezes referido - para verificar-se que nele está explicitamente afirmado ser finalidade da ordem econômica e social realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social. Ora bem, uma vez que estas finalidades hão de ser realizadas com base, entre outros princípios, no da ''função social da propriedade'' (item III), é óbvio que esta foi concebida tomando em conta objetivos de justiça social". (18)

"Como princípio da ordem econômica, a função social da propriedade assume formas diversas cujas características sujeitam-se à destinação do bem objeto da propriedade. Por conseqüência, a propriedade só se justifica enquanto instrumento para se atingir a finalidade da ordem econômica, ou seja, ''existência digna para todos, conforme os ditames da justiça social (art. 170)''". (19)

"A propriedade, como elemento fundamental da ordem econômica, há de servir à conquista de um desenvolvimento que realize a justiça social. Conseqüentemente, o regime jurídico que lhe for traçado deve ensejar o desenvolvimento e favorecer um modelo social que seja o da justa distribuição da riqueza". (20)

Pois bem, e o que significa a expressão "justiça social"? A resposta vem da pena privilegiada de Eros Roberto Grau:

"''Justiça social'', inicialmente, quer significar superação das injustiças na repartição, a nível pessoal, do produto econômico. Com o passar do tempo, contudo, passa a conotar cuidados, referidos à repartição do produto econômico, não apenas inspirados em razões micro, porém macroeconômicas: as correções na injustiça da repartição deixam de ser apenas uma imposição ética, passando a consubstanciar exigência de qualquer política econômica capitalista". (21)

Portanto, ao nosso ver, o princípio da função social da propriedade está umbilicalmente ligado a um objetivo maior: alcançar a justiça social, entendida esta como a necessidade de uma equânime repartição de riquezas.

A vinculação da expressão "justiça social" ao pensamento social Cristão, inaugurado de maneira formal pela Encíclica Rerum Novarum, de 1891, parece inegável. E os postulados de tal doutrina estão lastreados exatamente na necessidade de "inserir o homem num todo social que tinha por fim a plenitude da vida individual", sustentando a idéia de que "o interesse social qualificava os interesses individuais e impunha suas regras à autonomia de cada um". [22]


5 - Função social da propriedade e poder de polícia

Do esboço histórico traçado no item 3 supra já podemos extrair a idéia de que a função social da propriedade é uma construção que tem por objetivo retirar da noção de propriedade aquele caráter marcadamente individual, que foi exacerbado durante o Estado Liberal.

Daí a concluir-se que a adoção de tal princípio pela ordem jurídica dos Estados contemporâneos está a autorizar - senão exigir - atividades estatais (sobretudo a legislativa) muito mais incisivas e amplas sobre os tradicionais direitos do proprietário do que aquelas calcadas no Poder de Polícia (instrumento característico do Estado liberal), é apenas um passo.

Mas há grande divergência doutrinária sobre a amplitude dos instrumentos de intervenção estatal autorizados pelo princípio da função social da propriedade.

5.1 - Uma primeira diferenciação é apontada por José Afonso da Silva, que denuncia um obscurecimento do princípio da função social pela confusão, corrente, que dele é feita com os sistemas de limitação da propriedade. E conclui:

"Limitações dizem respeito ao exercício do direito, ao proprietário, enquanto que a função social interfere com a estrutura do direito". (23)

"Limitações, obrigações e ônus são externos ao direito de propriedade, vinculando simplesmente a atividade do proprietário, interferindo tão-só com o exercício do direito, e se explicam pela simples atuação do poder de polícia". (24)

Por certo, a adoção do princípio da função social da propriedade implica em uma remodelação do direito de propriedade, já que adiciona à noção tradicional de direito subjetivo um conceito até certo ponto amesquinhado no direito privado: a função.

Mas não nos parece que a distinção seja correta.

Tanto as imposições decorrentes da função social da propriedade, como as decorrentes do Poder de Polícia estatal (as limitações, v.g), servem para configurar o âmbito do direito de propriedade, tal como admitido em nosso vigente ordenamento jurídico. Todas essas imposições têm sede constitucional, e se assim não fosse, representariam uma violação do direito de propriedade, também garantido constitucionalmente.

Por outro lado, ambas as imposições conformam o conteúdo do direito de propriedade e repercutem, diretamente, no exercício dos poderes inerentes ao domínio.

Sustentando que as limitações à propriedade também delineiam o perfil do próprio direito de propriedade encontramos Celso Antonio Bandeira de Mello:

"O direito de propriedade é a expressão juridicamente reconhecida à propriedade. É o perfil jurídico da propriedade. É a propriedade, tal como configurada em dada ordenação normativa. É, em suma, a dimensão ou o âmbito de expressão legítima da propriedade: aquilo que o direito considera como tal. Donde, as limitações ou sujeições de poderes do proprietário impostas por um sistema normativo não se constituem em limitações de direitos, pois não comprimem nem deprimem o direito de propriedade, mas, pelo contrário, consistem na própria definição desse direito, compõem seu delineamento e, deste modo, lhe desenham os contornos. Na Constituição - e nas leis que lhe estejam conformes - reside o traçado da compostura daquilo que chamamos de direito de propriedade em tal ou qual país, na época tal e qual" (25).

E ainda, em outra obra:

"Portanto, as limitações ao exercício da liberdade e da propriedade correspondem à configuração de sua área de manifestação legítima, isto é, da esfera jurídica da liberdade e da propriedade tuteladas pelo sistema". (26)

Na mesma linha de raciocínio, a lição de Lúcia Valle Figueiredo:

"As limitações correspondem ao perfil do direito. São a própria conformação do direito. Daí por que são ''gerais'' (como necessariamente a lei é), ''abstratas'' (como a lei é) e atingem ou podem atingir a todos, ou a determinadas categorias" (27).

Não acreditamos residir aí, portanto, qualquer diferenciação. Tanto as limitações administrativas - baseadas na supremacia do interesse público sobre o privado -, quanto as providências estatais baseadas na função social da propriedade, configuram o perfil do próprio direito de propriedade, tal como é reconhecido em nosso sistema jurídico. Nenhuma delas representa "limitações" a um direito originariamente absoluto. Tanto que o texto constitucional determina que a propriedade atenderá a sua função social e não que o direito de propriedade a atenderá. Isso porque a função social, tanto quanto as limitações administrativas, delimitam o próprio direito de propriedade.

5.2 - Um outro ponto de divergência é apontado, com percuciência, por Carlos Ary Sundfeld, em linhas contundentes. Após afirmar que o princípio da função social da propriedade não é o fundamento das clássicas limitações administrativas à propriedade, pondera:

"Ora, se nunca se impugnou o poder de o Estado limitar a propriedade, adequando-a ao interesse público, mesmo quando esta era tida apenas por direito individual absoluto, por que achar agora que as limitações baseiam-se no princípio da função social?". (28)

E arremata, após observar que se a função social for tomada em tal sentido "equivocado", seu conteúdo restará obscurecido:

"Portanto, só se pode concluir que o princípio da função social é um ''novo instrumento'' que, conjugado aos normalmente admitidos (as limitações, as desapropriações, as servidões etc.), possibilitam a obtenção de uma ordem econômica e social que realize o desenvolvimento com justiça social". (29)

Sem entrarmos, aqui, na discussão acerca das imposições decorrentes do Poder de Polícia (se consubstanciam obrigação de fazer ou obrigação de não fazer) [30], temos para nós que a adoção do princípio da função social da propriedade em um ordenamento jurídico acarreta - ou, pelo menos, deveria acarretar - transformações consideráveis na compreensão da atividade estatal direcionada à disciplina da propriedade privada.

Como já averbamos anteriormente, a concepção da função social da propriedade nasceu exatamente em decorrência do desequilíbrio social causado pelas idéias liberais. Representa, pois, uma contraposição à ordem liberal, ao Estado mínimo, que apenas assegurava as condições básicas para o funcionamento das regras de mercado, que a tudo proveriam. Seria um contra senso afirmar que a sua adoção apenas serviria para legitimar as limitações administrativas, que historicamente sempre estiveram atreladas a uma concepção de Estado....liberal!

Assim entendido, é evidente que teríamos um esvaziamento do princípio, e, por decorrência, uma interpretação inaceitável do texto constitucional.

Mais uma vez, Eros Roberto Grau:

"Tenha-se bem presente, porém - e de todo enfatizado - que o princípio da função social da propriedade deve ser visualizado desde uma perspectiva muito mais ampla. Injustificável seja concebido apenas negativamente - isto é, como expressivo da imposição de um dever de não fazer ao proprietário. Correto fosse tal entendimento e estaríamos, quando diante dele, singelamente em presença de uma designação específica, atribuída à antiga noção de poder de polícia, herança da ideologia do Estado Liberal.

"A função social da propriedade é qualitativamente distinta do poder de polícia. A integração dela - repita-se - nos conceitos de propriedade de determinados bens importa a imposição, sobre os proprietários deles, de deveres de ação". (31)

No mesmo sentido:

"A função social da propriedade, pois, na atualidade, não é concebida, como foi à época do liberalismo, como ''princípio gerador da imposição de limites negativos, estabelecidos à atividade do proprietário'' - e que simbolizaram simples projeção do poder de polícia.

"Antes, imprime-se-lhe uma ''concepção positiva'', ''como princípio gerador da imposição de comportamentos positivos do proprietário''. Por força de preceito normativo, este não possui apenas o dever de não exercitar seu direito em detrimento de outrem, como sucedia anteriormente. Possui, de modo correlato, o dever de exercitar aquele direito em favor de outrem". (32)

Sobre o autor
Jivago Petrucci

Procurador do Estado de São Paulo e mestrando em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PETRUCCI, Jivago. A função social da propriedade como princípio jurídico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 229, 22 fev. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4868. Acesso em: 23 dez. 2024.

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