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Direito comunitário: a função judicial no Mercosul

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Agenda 25/02/2004 às 00:00

3.O Mercosul institucional

O MERCOSUL é o resultado de inúmeras tentativas de integração da América Latina. Seus dois maiores signatários, Brasil e Argentina, já mantinham relações, desde a primeira metade do século XX, e intentavam criar uma união aduaneira bilateral, que não se consubstanciou, primeiramente, por inadaptação dos interesses políticos, assimetrias econômicas, entre outros problemas. Depois, em virtude do contexto internacional da Guerra Fria e, posteriormente, as políticas de preferências comerciais estabelecidas pela CEPAL e as limitações em nível do GATT, inviabilizaram a inicial idéia de união aduaneira bilateral, o que resultou, porém, no surgimento da ALALC, com o primeiro Tratado de Montevidéu, de 1960, que previa uma zona de livre comércio da América Latina, porém demasiadamente instável política, comercial e economicamente. Neste tempo, ainda sofreu com a formulação do Pacto Andino, de 1969, que se mostrou bastante arrojado, dinâmico e competitivo no plano regional e hemisférico.

Após tais problemas acrescidos por uma severa crise econômica na América Latina gerada pela crise do petróleo, notabilizou-se, na década de 80, o insucesso da ALALC. Destarte, existia ainda nos países remanescentes (notadamente, Brasil e Argentina) o "animus" em continuar com projetos de integração, o que determinou que estes, através de novo Tratado de Montevidéu, de 1980, instituíssem a ALADI, com um quadro de objetivos mais modesto. Os anos que se seguiram foram extremamente penosos para a instituição, posto que houve nessa década grande turbulência da economia mundial. Tudo contribuía com a idéia de que se deveria abandonar o modelo atual de integração e partir para outro de caráter sub-regional e essencialmente pragmático, como ocorreu entre os Estados Unidos e o Canadá, em 1987, e, posteriormente, em 1993, com a entrada do México, na formação do NAFTA.

Em 1986, Brasil e Argentina retomam o projeto original de uma aliança bilateral através do Programa de Cooperação Econômica, que logo desdobrou-se no Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento, de 1988, mas devido a conjuntura política interna dos dois Estados, observou-se uma inflexão do processo. Porém, características presentes naquele Tratado, aqueceram as negociações, devido à agenda criada, conduzindo ao MERCOSUL, em 1991, por conta do Tratado de Assunção, do qual foram originalmente signatários Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. O Chile participou das negociações, mas declinou do convite; entretanto, posteriormente, passou juntamente com a Bolívia a condição de associado do MERCOSUL.

Nesse ínterim, no plano hemisférico, em 1990, os Estados Unidos intentaram um programa de integração americana, chamado de Iniciativa para as Américas, ressuscitando as idéias "bolivarianas" de integração do continente, porém com conteúdo implícito do doutrinado por Monroe. Com a implosão da União Soviética, findando a conjuntura bipolar, os Estados Unidos se tornaram a única superpotência mundial, mas forças diversas, internas e externas, têm impossibilitado o exercício pleno de uma completa hegemonia mundial, restando um cenário internacional unimultipolarizado (denominação atribuída por Samuel Huntington). Lembra-se que essas idéias de integração comercial e econômica das Américas permearam a ultima década do século passado, quando em 1994 foi reafirmada na Conferência de Miami, que propôs a ALCA.

Tendo em vista toda essa situação, em ritmo acelerado e intensas negociações, em 1991 se chegou a definição de um instrumento plurilateral de integração. A análise dos acontecimentos econômicos e comerciais à época levaram os dirigentes de Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai à optar por um projeto de integração da América Latina caracterizado por elementos dirigistas (políticas setoriais) com cobertura parcial (seleção de setores para a redução de barreiras tarifárias e não-tarifárias), que demandava negociação por acordos específicos constantemente. Afora essas características, a que mais fortemente caracteriza o MERCOSUL no plano político-jurídico é a opção pela intergovernabilidade.

De 1991 a 1994 o MERCOSUL se desenvolveu sem sofrer com crises internacionais, cumprindo em parte os objetivos fixados pelo Artigo 1º do Tratado de Assunção, que previa uma fase de transição. A partir de 1994, uma onda de crises financeiras mundiais ocasionara uma freada do progresso econômico e institucional do grupo. Por outro lado, foi esse período muito benéfico para o processo de afirmação dos valores democráticos no âmbito do MERCOSUL. Cita-se, como referencia, o Compromisso Democrático no Mercosul, de 1996, e o protocolo de Ushuaia, de 1998.

Outra questão que se faz necessária é a lembrança do fato de que a vontade de se formar um grupo que englobasse grande parte da América Latina não havia se perdido com a consecução do MERCOSUL, sendo claramente notada na propositura pelo Brasil da Iniciativa Amazônica que posteriormente, no primeiro Governo Fernando Henrique Cardoso, figurou como ALCSA (Área de Livre-Comércio Sul-Ameriana), apresentada pelo chanceler Celso Amorim. Alguns pesquisadores vêem na formação e instituição da ALCSA, com MERCOSUL e Comunidade Andina, a única forma de assegurar um destino histórico aos países do continente, renunciando, assim, a ALCA, pois, afirmam ser esta ultima completamente incompatível com a estrutura do MERCOSUL.

Atualmente, devido à atribuição de personalidade jurídica ao grupo quando da assinatura do Protocolo de Ouro Preto, em 1994, o MERCOSUL está vivendo uma fase de negociações externas quadripartite com terceiros países ou blocos, caso da União Européia, consubstanciada no Acordo de Cooperação Inte-regional MERCOSUL-EU, ou mesmo das negociações na OMC.

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4.A função judicial no Mercosul em perspectiva histórica

Como é possível observar no tópico anterior, o MERCOSUL foi instituído com o receio de perpetuar os erros dos processos de integração Latino-americanos que o antecederam, e, assim, primou por torná-lo o máximo singelo possível, isto é, uma estrutura simples para possibilitar a sua operacionabilidade e sua adequação de acordo com as necessidades futuras. O interesse pelos fundamentos comunitários sempre existiu, porém a estrutura comunitária se mostrava demasiadamente incompatível a realidade do grupo à época.

Diante do interesse estrutural humilde e do assustador receio dos fundadores do MERCOSUL de tornar infrutífera mais esta empreitada integracionista, optou-se, como era de se esperar, pela estrutura de intergovernabilidade, ao invés da supranacionalidade, que foi, de pronto, abandonada.

Esse posicionamento atingiu a esfera da sistemática da solução de controvérsias. Porém, nota-se que durante os anos que se passaram desde 1991, quando do Protocolo de Brasília, grandes mudanças foram sentidas nesse âmbito, sendo que as últimas novidades foram inseridas pelo Protocolo de Olivos, de 2002. Porém, é corrente entre a doutrina, além de fartamente comprovado nos instrumentos, a afirmativa da não existência de um órgão jurisdicional no MERCOSUL com a efetividade dada por uma autoridade de organismo internacional, legitimado pelos Estados-Parte.

O Tratado de Assunção, como tratado-quadro, não instituiu delimitações concretas, apenas discriminou os interesses do grupo, quando de sua constituição, formas de se alcançar o que fora proposto e algumas políticas de implementação institucional. No que tange a solução de controvérsias, em anexo próprio, previa apenas as negociações diretas e a via institucional, de forma muito superficial, e a indicação para que se fossem postuladas manifestações acerca de um Sistema de Controvérsia que deveria ser utilizado durante o período de transição.

O Protocolo de Brasília, que veio como resposta ao delimitado no anexo III do Tratado de Assunção, institui o Sistema de Solução de Controvérsias possibilitando a sua utilização num nível trifásico. Quando do surgimento de uma contenda poder-se-ia resolvê-la por três vias, a saber, a diplomática, a institucional e a jurisdicional, que são tidas, respectivamente, pela negociações diretas, pela intervenção do Grupo Mercado Comum, e por um Tribunal Arbitral Ad Hoc.

Este instrumento previa, no Artigo 21, a impossibilidade de apelação dos resultados do Laudo Arbitral, tendo força de coisa julgada após seu recebimento pelos Estados-Partes da controvérsia. Muito embora ele preveja essa obrigatoriedade no cumprimento do Laudo, com a aplicação das medidas afetas ao caso concreto, não especifica, porém, a forma adequada de se proceder. Com a entrada em vigor do Protocolo de Olivos, essa impossibilidade de apelação foi revogada, tendo em vista que se criou um órgão especifico de caráter permanente para apreciação de recursos de apelação.

Facultava também ao particular postular reclamações, justificado que viesse a sofrer com sanções ou aplicações, por qualquer Estado-Parte, de medidas legais ou administrativas de efeito restritivo, discriminatórias ou de concorrência desleal, em violação à algum documento jurídico do grupo, desde que esse particular fosse tutelado por seu Estado de origem, único ente legítimo para utilizar o Sistema de Solução de Controvérsias no âmbito do MERCOSUL.

Sua vigência estava prevista até a constituição de um sistema permanente de Solução de Controvérsias, o que ocorreu em 1994 com o Protocolo de Ouro Preto, que aperfeiçoou a estrutura institucional do Mercosul, com a criação e definição de alguns órgãos e adquiriu sua personalidade jurídica de Direito Internacional e a capacidade de celebrar acordos de sede.

O Protocolo de Olivos, de 2002, sinalizou grandes mudanças na estrutura jurídico-institucional do MERCOSUL, principalmente quanto à atividade jurisdicional, acrescentando ao grupo aspecto de maior institucionalização, denunciada através de um crescente grau de legalização do bloco, com novas regras para o procedimento de solução de controvérsias, além de revogar o Protocolo de Brasília no que tange aos procedimentos, restando em vigor, nesse particular, o Protocolo de Ouro Preto.

Este documento faculta às partes conflitantes a escolha do foro, que pode ser no âmbito deste Protocolo, ou no multilateral da OMC, ou em outros esquemas preferenciais de comércio dos quais participem os Estados-Partes do MERCOSUL, destarte cabe às partes analisar a competência do foro para redimir o caso concreto. O CMC é o órgão pertinente, dentro do MERCOSUL, para regulamentar os aspectos relativos à opção de foro.

Muito embora as mudanças referentes à legalização efetiva sejam relativas e condicionadas à ação dos Estados, a criação de uma instituição jurídica do porte da que foi efetivada no com o Protocolo de Olivos, que é o Tribunal Permanente de Recursos, é de grande importância para o futuro do MERCOSUL como instituição e demonstra o que grande parte dos pesquisadores vem afirmando quanto à necessidade de construção jurisprudencial. Este Tribunal, que representa um avanço na consecução de uma estrutura jurídico-institucional firme, tem competência para analisar questões de direito e as interpretações jurídicas desenvolvidas nos Laudos Arbitrais.

Como forma de assegurar o cumprimento dos Laudos Arbitrais, o Protocolo de Olivos explicita a forma de aplicação dos Laudos através das chamadas Medidas Compensatórias, que nada mais são do que meios de imposição coercitiva, através das sanções cabíveis aos ilícitos regionais, que serão tomadas pelo Estado prejudicado, com o prazo de até um ano após o transito em julgado do Laudo com força executiva lato sensu. Essas sanções residirão no setor objeto da lide e, em não sendo eficaz, poderá ser abrangido outro setor comercial.


5. CONCLUSÃO

Para o direito, a imprescindibilidade da delimitação do objeto e objetivo do MERCOSUL, como instituição, faz emergir grande discussão sobre a atual situação e o futuro jurídico do grupo. Isso, pois, em todos os instrumentos que compreendem o universo legal do bloco, não se tem nenhuma ocorrência explicita de manifestação volitiva quanto à formação de organismos de caráter supranacional. O que há é o apregoamento do sistema de intergovernabilidade, porém sem indícios hipotéticos de ser alterado, ao menos em curto prazo, resultando numa enorme lacuna para a esfera jurídico-institucional.

E é justamente na questão da formação do Mercado Comum que se colocam as divergências sobre a real natureza do Mercosul. O exemplo da União Européia nos mostra que quando se intenta um projeto do porte da formação de um Mercado Comum há que haver não só uma convergência de políticas econômicas comuns, mas uma verdadeira unificação entre os Membros e que estes suportem a sistemática federalista, objetivo ao qual se propuseram. Evidente que a história da formação da União Européia, até a forma como a vemos hoje, é bastante distinta do contexto histórico ao qual o MERCOSUL está inserido. Destarte, a análise histórica mostra que, mesmo em não se tomado como modelo o exemplo europeu, o aprofundamento das relações no plano regional trás consigo a necessidade de modificação nas estruturas institucionais para obtenção de maior efetividade e segurança, principalmente no campo jurídico.

O processo arbitral em muito evoluiu, inclusive, é bom que se diga, a busca pela via arbitral, que é a única possibilidade de formação de jurisdição dentro das três vias possíveis do Sistema de Solução de Controvérsias, começou a ser utilizada em 1999, sendo que hoje somam-se oito pareceres proferidos. O ano de 2002 foi o que mais registrou atuações do Tribunal Arbitral, com três pareceres. Isso contribui com a idéia de que há o interesse por uma efetiva tutela jurisdicional com força executória dos laudos cada vez maior.

Mesmo com o progresso na sistemática de solução de controvérsias do MERCOSUL, isso continua sendo bastante aquém do que realmente poderia ter sido conquistado nesses doze anos de Grupo. Isso, pode-se preliminarmente concluir, que, em primeiro, os Sistema de Solução de Controvérsias no MERCOSUL é estritamente político, pois não permitir que os cidadão comuns dos Estados-Membros acionem o Tribunal Arbitral, a não ser que tutelados pelos seus Estados. Em segundo, não estipula como obrigatoriedade, mas necessidade passar pelas duas outras visa do Sistema antes de se alcançar o Tribunal, que verdadeiramente é a prestação da tutela judicial. Nota-se, que o sistema só passou a ser utilizado oito anos após a instituição do MERCOSUL, o que demonstrava total insegurança na sua eficácia.

Outra grande modificação estrutural trazida pelo protocolo referido acima é a constituição de um Tribunal Permanente de Recursos. A nosso ver, deu maior sustentação à estrutura institucional do MERCOSUL, principalmente à jurídico-institucional, permitindo um estabelecimento mais firme.

Grande parte dos estudiosos do tema, muito embora forte corrente contraria, apontam para a necessidade de uma construção jurisprudencial comunitária ou pelo menos comum entre os Estados em algumas matérias. Indicam o imperativo de que o Sistema de Solução de Controvérsias deve ser implementado para um Tribunal que coadune o espírito associativo entre os Membros e o respeito às decisões comuns, mesmo que não se institua, nessa oportunidade ainda, uma federação de Estados comunitários.

Afora essa questão jurídica, é importante a análise das relações regionais, hemisféricas e mundiais, como guia para as tomadas de decisões no campo político. Os interesses internacionais dos Membros do MERCOSUL, como prova a história de suas relações diplomáticas e de suas políticas externas que sempre foram diversas, quando não divergentes. Porém, cumpre sinalizar na direção de que é hoje tendência mundial a regionalização como frente à globalização e à hegemonia do mercado norte-americano. Dessa forma, deve os países do cone sul, não somente os Países-Membros do MERCOSUL, como também os membros da Comunidade Andina, fortalecerem-se e se posicionarem firmemente quanto ao futuro de suas políticas externas, juntos, com a formação da tão aclamada ALCSA, como frente ao processo de formação da ALCA.

Porém, no que concerne ao MERCOSUL e sua instituição como comunidade, e, assim, à efetivação da sistemática comunitária, há autores afirmando que seguramente esse será o futuro do MERCOSUL. Compartilhamos desse entendimento também. O que ainda é impossível de se esboçar uma previsão é quanto ao momento que essa constituição comunitária se efetivará. Isso devido a problemas de cunho político, econômicos e jurídico.

Muito embora a opção em prática seja a de estrutura intergovernamental, resta claro que o MERCOSUL, tendo em vista seu caráter muito mais comunitário que meramente cooperativo-comercial, terá que aprofundar os laços para que se consiga ver um futuro tal qual seus objetivos. Como dissemos, é impossível prever quando isso acontecerá. Destarte, isso fica claro pela crescente necessidade de aperfeiçoamento das instituições, como é o caso de um Parlamento e do Tribunal de Justiça, que tanto estudamos e apresentamos argumentos nesse sentido. As instituições que estão sendo praticadas hodiernamente já estão mostrando sinais de ineficiência, carecendo ser reestruturadas sobre novas bases. Talvez deva-se iniciar um estudo político visando realmente a aplicação comunitária, o que demonstra ser a médio e longo prazo a solução para o Grupo.


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Sobre a autora
Vivian Cristina Müller

acadêmica do curso de direito pela Universidade metodista de Piracicaba –UNIMEP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MÜLLER, Vivian Cristina. Direito comunitário: a função judicial no Mercosul. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 232, 25 fev. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4873. Acesso em: 23 dez. 2024.

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