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A eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídico-privadas:

a perspectiva lusitana da questão

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Agenda 20/06/2016 às 13:24

3. As diversas teorias

3.1. Considerações gerais

De fora parte a doutrina da State Action americana[19], cujo caráter vacilante termina, por vezes, a negar a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, é tida como pacífica hoje, na maioria dos sistemas jurídicos de origem romano-germânica[20], a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. Como dito alhures, o ponto nevrálgico da questão é saber a forma pela qual se opera essa eficácia, isto é, como e com que intensidade estão os particulares vinculados aos direitos fundamentais.

O início da discussão sobre tal questão remonta a década de cinquenta na Alemanha, quando, batizado por Ipsen[21] como Drittwirkung (eficácia perante terceiros), deu azo a grande celeuma na doutrina e jurisprudência alemã, passando logo a ser objeto de discussão em vários países do mundo.

Das diversas teorias criadas em torno dessa problemática, convém, num esforço de síntese, apontar as principais.

3.2. A doutrina da State Action

Antes, porém, de adentrar nas citadas teorias, cabe dar uma breve mostra de como a questão é vista no âmbito do direito constitucional norte-americano[22].

Com exceção da décima terceira emenda, que diz respeito à escravidão, entende a Suprema Corte Americana que os direitos fundamentais previstos na Carta Estadunidense dirigem-se apenas contra o Estado.

Argumenta-se que nas cláusulas relativas aos direitos fundamentais constantes da Carta Magna Americana não haveria qualquer remissão aos particulares, de modo que tais direitos somente seriam oponíveis aos poderes públicos. Subjaz a essa aparente interpretação literal da Constituição o entendimento de que estender a eficácia dos direitos fundamentais às relações privadas seria comprometer demasiadamente a liberdade individual, com risco de malferir a autonomia privada.

Por outro lado, coloca-se como obstáculo à dita eficácia o fato de que nos Estados Unidos, com exceção das questões relacionadas ao comércio internacional e interestadual, cabe aos Estados Federados legislar sobre Direito Privado. Desde a década de sessenta, contudo, já se reconhece à União competência legiferante em tema de direitos fundamentais, independente da presença de um ente estatal[23].

Com vistas a contornar os absurdos a que exclusão total da eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares poderia levar, desenvolveu-se, na Suprema Corte, a doutrina da “public function theory”, segundo a qual, exercendo o particular funções típicas do Estado, ficará ele vinculado as limitações constitucionais, inclusive no que tange aos direitos fundamentais.

Diversos são os casos[24] em que a Suprema Corte, dando aplicabilidade a essa doutrina, fez valer entre particulares a proteção constitucional dos direitos fundamentais. Em outros[25], todavia, deixou de reconhecer tal eficácia.

Dessa forma, a doutrina da State Action, mesmo com os temperamentos dados pela public function theory, devido ao seu caráter vago e aos erros a que conduzia, não dá resposta satisfatória à necessidade de proteger os direitos fundamentais de atores privados, quando ofendidos ou ameaçados por outros de mesma natureza.

De mais a mais, como nos dá notícia Daniel Sarmento[26], a própria doutrina constitucional americana encarregou-se de derrubar a base em que se assentava a teoria da State Action. Nesse sentido, segundo o professor Erwin Chemerinsky, “afirmar que a doutrina da state action é desejável porque preserva a autonomia e a liberdade é olhar apenas para um dos lados da equação (...). De fato, de acordo com a doutrina da state action, os direitos do violador privado são sempre favorecidos em relação aos direitos das vitimas. Dessa forma, a state action só promove a liberdade se se considerar que a liberdade de violar a Constituição é sempre mais importante do que os direitos individuais que são infringidos”[27].

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Quanto à questão federalista, o mesmo autor americano objeta que a autonomia dos Estados encontra limite na Constituição, não podendo a esta ser oposta.

Assim, a tendência da doutrina americana mais moderna aponta no sentido de substituir tal modelo por um que priorize a ponderação, no caso concreto, sobre o que deve prevalecer, se a proteção ao direito fundamental da vitima supostamente ofendida ou a liberdade do sujeito particular acusado (Chemerinsky), ou por um modelo de ponderação de interesses (Ronald D. Rotunda e John E. Nowak). Segundo estes últimos, seria “sempre possível encontrar uma ação estatal, ainda que omissiva, por detrás da violação de direitos constitucionais”[28], pois se a conduta do particular, não coibida pelas leis, agride direitos fundamentais de outro indivíduo, existe uma falha omissiva do Estado.

3.3. A teoria da eficácia direta e imediata

Embora não goze de muito prestígio na Alemanha, a teoria da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais tem prevalecido na península ibérica[29].

Criada por Hans Carl Nipperdey, no principio da década de cinquenta, e desenvolvida por Walter Leisner, a teoria sob análise pregava a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas de forma direta, imediata, sem a necessidade da mediação de qualquer órgão estatal[30] [31].

Convém, nesse passo, destacar os principais fundamentos utilizados pelos defensores dessa concepção para justificar suas conclusões.

Em linha de princípio, costuma-se enfatizar que a visão do constitucionalismo de matriz liberal burguesa, de acordo com a qual a Constituição seria o estatuto do Poder Público, regulando apenas as relações do indivíduo com o Estado, resta hoje superada pela doutrina constitucional contemporânea.

A Constituição, com efeito, apresentaria-se como a norma sobre a qual se assenta todo o ordenamento jurídico, cuja força normativa deveria atuar também nas relações privadas. O Direito Privado, sob essa perspectiva, não estaria à margem da Constituição.

Precisa, a esse respeito, a colocação de Bilbao Ubillos, para o qual “la constituición ha dejado de ser, simplemente, el estatuto del poder público para convertirse en el ‘orden jurídico fundamental de la comunidad’, de acuerdo con la conocida fórmula de Hesse”[32].

Nesse diapasão, cumpriria reconhecer aos direitos fundamentais a qualidade de ordem de valores, cuja influência se operaria por toda a ordem jurídica, em decorrência do postulado da unidade desta[33].

Demais disso, a constatação de que a ameaça aos direitos fundamentais, atualmente, não está sempre ligada à ação do Estado, mas, ao contrário, provém, cada vez mais, de atores privados detentores de poder social, reafirmaria, a par dos argumentos alinhados, a necessidade de estender o âmbito de proteção dos direitos fundamentais.

Precisas, nesse sentido, as palavras de Vasco Pereira da Silva: “Na verdade, tendo sido os direitos fundamentais concebidos para defesa do cidadão face ao poder e tendo deixado este de ser privilégio do Estado, não faria, mais, sentido, não alargar a protecção dos cidadãos através dos direitos fundamentais a todas as situações de poder [34].”

Com esses fundamentos, abrir-se-ia a possibilidade de os atores particulares, nas relações jurídicas com outros sujeitos de mesma natureza, invocarem diretamente as normas constitucionais relativas aos direitos fundamentais, independentemente da intermediação de qualquer órgão estatal[35].

Importante deixar claro que os defensores da teoria em foco não propõem sua aplicação radical em todas as situações, de modo que se corra o risco de restringir indevidamente a autonomia pessoal e a liberdade negocial, ao revés, advogam uma concepção que permita a conciliação, no caso concreto, destes valores e daqueles subjacentes aos direitos fundamentais[36].

A eficácia direta teria que ser posta de modo a não sacrificar a autonomia privada, devendo ser aplicada com temperamentos, a fim de não ofender a lógica do direito privado. E não seria pelo fato desta possuir limites, quanto à sua aplicabilidade, que se poderia negar sua eficácia direta[37].

3.4. A teoria da eficácia indireta e mediata

Criada por Günter Dürig, a teoria da eficácia indireta e mediata dos direitos fundamentais (Mittelbare Drittwirkung) nas relações privadas é, atualmente, a que goza de maior prestígio na Alemanha, sendo adotada pela maioria dos juristas e pelo Tribunal Constitucional do referido país, tendo prevalecido também na França e na Áustria[38].

A teoria em tela posicionando-se entre aqueles que negam a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas e os que reconhecem a sua eficácia direta e imediata, não nega que tais direitos vinculam os particulares, mas, por outro lado, assevera que esta vinculação não se daria de forma imediata, derivada diretamente da Constituição, antes se realizaria através da mediação de um órgão estatal.

Esta mediação ou, nas palavras de Vasco Pereira da Silva, essa “recepção dos direitos fundamentais pelo direito privado”[39] encontraria justificativa na “necessidade de coordenação dos direitos fundamentais com os direitos subjetivos privados, levando em conta as especificidades das relações interprivadas”[40].  

Ao legislador caberia, em primeira linha, ante ao dever de proteção dos direitos fundamentais que lhe incumbe - obrigação derivada da dimensão objetiva destes direitos[41], a função de determinar, a nível legal, a amplitude com que devem atuar na esfera privada.

Ao realizar tal operação, o Legislativo deveria fazer a ponderação dos valores constitucionais passíveis de conflito, fixando “pautas para uma correta articulação” entre estes, de modo a conseguir uma “acomodação razoável” dos mesmos[42].

Em termos porventura mais claros, assevera Daniel Sarmento que “dentre as várias soluções possíveis no conflito entre direitos fundamentais e autonomia privada, competiria à lei a tarefa de fixar o grau de cedência recíproca entre cada um dos bens jurídicos confrontantes”[43].

Note-se, assim, que os preceitos consagradores dos direitos fundamentais penetrariam nas relações privadas de forma indireta, “pegando carona” nas normas e princípios de direito privado.

Sob essa perspectiva, os direitos fundamentais não seriam direitos subjetivos (privados) dos cidadãos, invocáveis diretamente da Constituição. A rigor, seriam normas objetivas que apenas irradiariam seus efeitos sobre a legislação privada[44]. Parte-se da concepção de que os direitos fundamentais fariam parte de uma ordem de valores objetiva que influenciaria todo o sistema jurídico[45].

Na ausência de normas jurídico-privadas, a mediação, ou melhor, a operatividade dos direitos fundamentais na relação privada objeto de discussão, seria feita através das cláusulas gerais e dos conceitos indeterminados (boa fé, bons costumes, ordem pública etc.) introduzidos pelo legislador exatamente com o fito de dar maior flexibilidade à atividade do juiz[46].

Nesse sentido, essas cláusulas e conceitos seriam preenchidos no caso concreto pelo juiz, em interpretação que privilegiasse os valores constantes das normas veiculadoras de direitos fundamentais[47], mas sempre mantendo o espírito privado, de maneira que a influência do Direito Constitucional sobre o Direito Privado se desse de forma suave, por meio dessa espécie de depuração procedida pelos magistrados[48].

Aos juízes, então, caberia um duplo papel: a uma, havendo normas de direito privado referentes à controvérsia, deveria o magistrado aplicá-las, interpretando-as à luz dos direitos fundamentais, ou declará-las inconstitucionais, caso sejam inconciliáveis com tais direitos; a duas, inexistindo normas privadas específicas sobre a questão, cumpriria ao julgador dar conteúdo, no caso concreto, aos conceitos indeterminados e cláusulas gerais cunhadas pelo legislador privado, observando igualmente os preceitos constitucionais relativos aos direitos fundamentais.

Somente em hipóteses raríssimas, isto é, quando não houvesse norma de Direito Privado regulando a questão, nem mesmo cláusula geral ou conceito indeterminado, passível de ser preenchida segundo os direitos fundamentais, é que, segundo os defensores dessa teoria, poder-se-ia admitir a eficácia direta dos direitos fundamentais na relação entre privados.

Esses direitos, então, preencheriam as lacunas do ordenamento (Wertschutzlückenschliessung), mas sempre de acordo com o “espírito” jusprivatista[49] [50].

Para os defensores da corrente em foco, admitir a eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais nas relações entre particulares seria matar a autonomia da vontade e tornar o Direito Privado mero vassalo do Direito Constitucional, além de que representaria a atribuição de muito poder ao Judiciário, visto que as cláusulas relativas aos direitos fundamentais seriam dotadas de grande generalidade.

3.5. Teoria dos deveres de proteção

Defendida por autores de grande envergadura como Claus-Wilhelm Canaris, Joseph Isensee e Klaus Stern, aproxima-se, em grande medida, da teoria da eficácia indireta.

De acordo com autorizadas vozes da doutrina constitucional contemporânea[51], a vinculação do Estado aos direitos fundamentais compreenderia duas vertentes. Se por um lado, na qualidade de sujeito passivo de tais direitos, está obrigado a respeitá-los e a não atentar contra eles, bem como promover a sua efetiva realização (todas dimensões de um dever principal), por outro, cabe-lhe protegê-los de quaisquer ameaças (dever de proteção).

Por força desse dever de proteção, derivado da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, não só a atividade do Poder Executivo (Administração) deve estar conforme os preceitos relativos aos direitos fundamentais (dever principal), como também a atividade dos poderes Legislativo e Judiciário deve caminhar no sentido de assegurar a efetiva proteção que eles encartam.

É dizer, os direitos fundamentais, num primeiro momento, teriam como destinatário o Estado, que, além de estar obrigado a respeitá-los (dever de abstenção), e a criar condições para a efetiva realização desses, tem o dever de defendê-los, por meio de todos os seus órgãos, de quaisquer ameaças que lhes sejam dirigidas, inclusive das advindas de outros particulares[52] [53].

Desse modo, ao legislador caberia disciplinar as condutas privadas — e poderia fazê-lo de forma bastante densa —, levando em conta os preceitos relativos aos direitos fundamentais, de modo a evitar a ocorrência de ofensas aos direitos fundamentais por parte de atores não estatais.

Sob essa perspectiva, os atos dos particulares teriam de observar os parâmetros estabelecidos na legislação e não aqueles estabelecidos diretamente na Constituição[54]. Para Claus-Wilhelm Canaris, essa intermediação ainda poderia ser feita pelo juiz através do preenchimento das cláusulas indeterminadas.

Nesse diapasão, quando o legislador falhasse no exercício desse dever de proteção, seja por disciplinar mal a questão, seja por omitir-se quanto a ela, caberia ao Judiciário, por estar igualmente obrigado a atender a esse imperativo, proceder ao controle de constitucionalidade das normas de Direito Privado.

O dever de proteção apresentar-se-ia, visto de outro ângulo, como imperativo de proteção suficiente, visto no seu sentido negativo, isto é, como principio da proibição do déficit (Untermassverbot), que constituiria um critério orientador no sentido de que o Estado, ao engendrar a proteção aos direitos fundamentais, deve fazê-lo com atenção ao princípio da proporcionalidade (quando estes colidirem com outros direitos ou interesses relevantes, especialmente com a autonomia privada).

Nessa conformidade, não se poderia deixar de levar em consideração a liberdade constitutiva que o legislador deve possuir para graduar essa proteção segundo a dimensão da ameaça, a possibilidade de autodefesa do sujeito privado e os valores em questão[55].

Como se percebe, embora formulada sob outra roupagem, possui a presente teoria elementos estruturais comuns à teoria da aplicabilidade indireta dos direitos fundamentais, na medida em que estes, para ambas, somente vinculam os particulares por intermédio da legislação privada.

Sobre o autor
Fabrício Torres Nogueira

Fabrício Torres Nogueira. Graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra. Professor de Direito Administrativo da Faculdade Ruy Barbosa (Grupo DeVry). Procurador do Banco Central do Brasil. E-mail: efabricioe@gmail.com

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NOGUEIRA, Fabrício Torres. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídico-privadas:: a perspectiva lusitana da questão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4737, 20 jun. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/49560. Acesso em: 22 dez. 2024.

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