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A Lei Maria da Penha sob os efeitos da ADI 4.424

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Agenda 07/06/2016 às 17:03

Lei Maria da Penha, e os efeitos da ADI 4.424, a qual tem por objetivo determinar que o crime de lesão corporal de natureza leve cometido contra mulher seja processado mediante ação penal pública incondicionada.

1 INTRODUÇÃO

Historicamente, a construção dos direitos humanos ocorreu, inicialmente, com a exclusão da mulher, daí a importância da explicitação desses direitos e garantias fundamentais, visto que, por mais que os Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos e as Constituições mais modernas proclamem a igualdade de todos, é sabido que, infelizmente, ainda se insiste em compreender essa igualdade apenas sob o aspecto formal, tornando-se assim a necessária criação de mecanismos capazes de acelerar uma igualdade substantiva entre homens e mulheres. Não por outro motivo, constou expressamente da Declaração e Programa de Ação de Viena que: "os direitos humanos das mulheres e das meninas são inalienáveis e constituem parte integral e indivisível dos direitos humanos universais" (ONU, 1993).

O objetivo desta pesquisa é analisar os avanços e a efetiva aplicação da Lei Maria da Penha sob efeitos da ADI 4.424, se a ação penal pública incondicionada nos casos de lesão corporal leve aplica-se apenas aos crimes que envolvam violência doméstica e familiar contra a mulher (nos termos dos artigos 5º e 7º), permanecendo a exigência de representação, portanto, para todas as demais situações.

Para tanto, cabe demonstrar a possibilidade da prisão do agressor quando em flagrante, mesmo sem o registro formal da ofendida, bem como a substituição da prova pericial (exame de corpo de delito), pela prova testemunhal, uma vez que a vítima por não ter interesse no feito, não se submeteria a perícia, com o intuito de não produzir provas contra o agente agressor.

A metodologia empregada foi pesquisa bibliográfica em obras jurídicas e sítios eletrônicos dos Tribunais de Justiça brasileiros, com o fim de verificar o posicionamento dos tribunais nesses casos.


2 REFERENCIAL TEÓRICO

2.1 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER

Segundo a ministra Carmen Lúcia: ”Quando há violência do homem contra a mulher não se tem uma relação de afeto e, sim, uma relação de poder” (apud BIANCHINI, 2013).

A lei n° 11.340/06, referente à violência doméstica e familiar contra a mulher, entrou em vigor no dia 22 de setembro de 2006. Esta lei ficou conhecida como Lei Maria da Penha em virtude da grave violência de que foi vítima Maria da Penha Maia Fernandes:

Fortaleza, Ceará. Maio de 1983. Um casal, com três filhas pequenas, chega em casa. O marido é economista e professor universitário. A mulher, farmacêutica bioquímica com mestrado em parasitologia. Ela põe as crianças para dormir. Ele vai para sala e liga a tv. Ela toma banho e vai se deitar. De repente, acorda com um tiro nas costas. Imediatamente pensa: "Acho que meu marido me matou". Desmaia. Mas o terror não acabou naquela noite. Depois de várias cirurgias e meses de hospital, presa para o resto da vida a uma cadeira de rodas, o marido tentará eletrocutá-la no banheiro de sua casa, não consegue, pois ela grita e a babá dos filhos aparece (MEIO NORTE, 2013).

A referida lei foi criada com o intuito de coibir, prevenir e erradicar a violência doméstica e familiar contra a mulher, conforme o seu artigo 1º que estabelece:

Esta lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do §8º do artigo 226 da CRFB/88, pela Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Doméstica contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar (BRASIL, 2006).

A proteção diferenciada contemplada pela Lei Maria da Penha para o gênero feminino terá incidência apenas quando a violência contra a mulher for executada em situações de vulnerabilidade elencadas pelo artigo 5°, quais sejam: ambiente doméstico; ambiente familiar e relação íntima de afeto.

No entanto, para Pedro Rui da Fontoura Porto:

Parte minoritária da doutrina sustenta que não se justifica a aplicação da Lei Maria da Penha quando, no ambiente doméstico, familiar ou afetivo, a violência for perpetrada por uma mulher contra outra, pois não estaria presente uma pressuposta superioridade de forças, já que, nesse caso, a violência seria perpetrada entre pessoas supostamente iguais, o que não justificaria a aplicação das restrições da Lei Maria da Penha, criada para proteger o gênero feminino apenas quando presente uma situação de vulnerabilidade (PORTO, 2007, p. 31).

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Para caracterização da violência doméstica e familiar contra a mulher, não é necessário que a violência seja perpetrada por pessoas de sexos distintos. O agressor tanto pode ser um homem (união heterossexual) como outra mulher (união homoafetiva). Basta atentar para o disposto no art. 5°, parágrafo único, da Lei n° 11.340/06, que prevê que as relações pessoais que autorizam o reconhecimento da violência doméstica e familiar contra a mulher independem de orientação sexual.  Desse modo, lésbicas, travestis, transexuais e transgêneros de identidade feminina estão ao abrigo da Lei Maria da Penha, quando a violência for perpetrada entre pessoas que possuem relações domésticas, familiares e íntimas de afeto. De se lembrar que o Supremo Tribunal Federal reconheceu as uniões homoafetivas como entidade familiar:

Terminou o Ministro relator por julgar parcialmente prejudicada a ADPF 132, transformando-a, na parte remanescente em ADI. No mérito, julgou procedentes as duas ações constitucionais, dando ao art. 1.723 do Código Civil brasileiro interpretação conforme a Constituição para do mesmo apartar qualquer entendimento que obste o reconhecimento da "união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar”. Importa ressaltar que tal reconhecimento está sujeito às mesmas regras e possui as mesmas conseqüências da união estável entre homem e mulher. Assim, restaram, para todos os fins de direito, as uniões homoafetivas equiparadas às uniões heteroafetivas (CHAVES, 2011).

Afinal, o objetivo da Lei Maria da Penha não foi o de conferir uma proteção indiscriminada a toda e qualquer mulher, mas apenas àquelas que efetivamente se encontrarem em uma situação de vulnerabilidade, que a vítima esteja em situação de hipossuficiência física ou econômica, enfim, que a infração penal tenha como motivação a opressão à mulher (LIMA, 2014).

Em relação ao sujeito passivo da violência doméstica e familiar, há uma exigência de uma qualidade especial: ser mulher. Por isso, estão protegidas pela Lei Maria da Penha não apenas esposas, companheiras, amantes, namoradas ou ex-namoradas, como também filhas e netas do agressor, sua mãe, sogra, avó, ou qualquer parente do sexo feminino com a qual haja uma relação doméstica, familiar ou íntima de afeto.

2.1.1 Âmbito da unidade doméstica

A primeira situação prevista pela Lei Maria da Penha em que se presume a maior vulnerabilidade da mulher diz respeito ao âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas.

É indispensável que o agressor e a vítima façam parte dessa mesma unidade doméstica.

Especificamente em relação à violência contra empregadas domésticas, há de se ficar atento à situação fática. Como o artigo 5°, inciso I, da Lei Maria da Penha, faz menção expressa às pessoas esporadicamente agregadas, se se tratar de uma empregada doméstica que mora com a família empregadora, para eles prestando serviços há vários anos, tratada por todos como verdadeira integrante da família, não dispondo de uma fuga eficaz e imediata local de trabalho na hipótese de ser vítima de algum tipo de violência, não se pode afastar a possibilidade de aplicação dos benefícios e restrições comtemplados pela Lei Maria da Penha (JESUS; SANTOS, 2007).

2.1.2 Âmbito familiar

A segunda hipótese que autoriza o reconhecimento da violência doméstica e familiar contra a mulher ocorre quando a agressão é cometida no âmbito da família, compreendida como unidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa.

A violência praticada no âmbito da família engloba aquela praticada entre pessoas unidas por vínculo jurídico de natureza familiar, podendo ser conjugal, parentesco ou por vontade expressa.

2.1.3 Qualquer relação íntima de afeto, independente de coabitação

A última situação fática que autoriza o reconhecimento da violência doméstica e familiar contra a mulher diz respeito à existência de qualquer relação íntima de afeto, na qual agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

No entanto, não é um entendimento pacífico:

De um lado, há quem entenda que o artigo 5°, inciso III, faz referência às relações de afeto de forma ampla, rotulando como violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer agressão inserida em um relacionamento estreito entre duas pessoas, fundado em camaradagem, confiança, amor, etc. (CUNHA; PINTO, 2007, p. 55).

2.2 FORMAS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

Na esfera penal, a expressão "violência" designa apenas a violência física ou corporal, ou seja, o emprego de força física sobre o corpo da vítima de modo a facilitar a execução de determinado crime (LIMA, 2014).

A Lei Maria da Penha utiliza o termo "violência" em sentido amplo, abarcando não apenas a violência física, como também a violência psicológica, sexual, patrimonial e moral (BRASIL, 2006).

A caracterização da violência doméstica e familiar contra a mulher não exige a presença simultânea e cumulativa de todos os requisitos do art. 7°. Ou seja, para o reconhecimento da violência contra a mulher, basta a presença alternativa de um dos incisos do art. 7°, em combinação alternativa com um dos pressupostos do artigo 5°.

2.2.1 Violência física

A primeira espécie de violência explicitada pelo art. 7° é a violência física, compreendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade e saúde corporal.

Como se percebe, violência física é o emprego de força física sobre o corpo da vitima, visando causar lesão à integridade ou à saúde corporal da vítima. São exemplos de violência física, ofensivas à integridade, as fraturas, fissuras, escoriações, queimaduras, luxações, equimoses e hematomas. A ofensa à saúde corporal, por sua vez, compreende as perturbações fisiológicas (desarranjo no funcionamento de algum órgão do corpo humano) ou mentais (alteração prejudicial da atividade cerebral).

2.2.2 Violência psicológica

A violência psicológica é conceituada pela Lei Maria da Penha como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique ou perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.

Por meio desta espécie de violência, vez por outra inclusive mais grave que a violência física, o agressor procura causar danos emocionais à mulher, geralmente por meio de ameaças, rejeições, humilhações ou discriminações, objetivando não apenas diminuir sua autoestima, como também prejudicar seu pleno desenvolvimento.

2.2.3 Violência sexual

A terceira forma de violência doméstica e familiar contra a mulher explicitamente descrita pelo art. 7° é a sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anele o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos.

2.2.4 Violência patrimonial

A violência patrimonial deve ser compreendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valore se direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.

Como o art. 7° da Lei Maria da Penha aponta a violência patrimonial como uma das formas de violência, há certa controvérsia na doutrina quanto à possibilidade de aplicação das imunidades absolutas e relativas aos crimes patrimoniais praticados em um contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher sem o emprego de violência ou grave ameaça à pessoa (CP, art. 183, I). Sobre o assunto, há duas posições antagônicas.

Uma primeira corrente entende que ás hipóteses de violência doméstica e familiar contra a mulher não são aplicáveis as imunidades absolutas (art.181) e relativas (art. 182) previstas no Código Penal. É nesse sentido a lição da Maria Berenice Dias:

Como a violência patrimonial é uma das formas de violência doméstica e familiar contra a mulher (Lei n° 11.340/06, art. 7°, IV), quando a vítima for mulher e mantiver com o autor da infração vínculo de natureza familiar, não será possível a aplicação das referidas imunidades (DIAS, 2012, p. 71).

Uma segunda corrente doutrinária sustenta que, diante do silêncio da Lei Maria da Penha, que não contém qualquer dispositivo expresso vedando a aplicação dos artigos 181 e 182 do CP, o ideal é concluir que as imunidades absolutas e relativas continuam sendo aplicáveis às infrações penais praticadas no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher (CUNHA; PINTO, 2007).

2.2.5 Violência moral

A última forma de violência prevista no art. 7° da Lei Maria da Penha é a moral, conceituada como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

Assim, quando o agressor, ao término do relacionamento, fizer exposição na internet de vídeos e fotos íntimas do casal, além da responsabilização criminal, admite-se ainda o ajuizamento da demanda na esfera cível, visando à reparação por eventuais danos materiais e morais.

2.3 AÇÃO PENAL NOS CRIMES DE LESÃO CORPORAL LEVE E LESÃO CORPORAL CULPOSA PRATICADOS NO CONTEXTO DE  VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

Havia, até bem pouco tempo atrás, intensa controvérsia doutrinária acerca da espécie de ação penal – pública condicionada à representação ou pública incondicionada.

Como o dispositivo do artigo 16 da Lei n° 11.340/06, refere-se à representação, há quem entenda que, mesmo nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, continuaria sendo exigível o implemento da representação em relação aos crimes de lesão corporal leve e lesão corporal culposa.

Lado outro, o artigo 41 da Lei n° 9.099/95 dispõe que, aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei n° 9.099/95. Ora, se a Lei dos Juizados não é aplicável às situações de violência doméstica e familiar contra a mulher, e se é a Lei n° 9.099/95 que dispõe que os crimes de lesão corporal leve e de lesão corporal culposa são de ação penal pública condicionada à representação (art. 88), conclui-se que, se acaso praticados no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher, tais delitos seriam de ação penal pública incondicionada.

A controvérsia foi levada ao Superior Tribunal de Justiça. Em um primeiro momento, ora se entendia que se tratava de crime de ação penal pública incondicionada, ora se entendia que a lesão corporal leve com violência doméstica e familiar contra a mulher era crime de ação penal pública condicionada à representação. Após decisões distintas das turmas criminais, a 3ª Seção, por maioria, concluiu tratar-se de crime de ação penal pública condicionada à representação da vítima.

Ocorre que, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 4.424, o Supremo deu interpretação conforme a Constituição aos artigos 12, inciso I, 16 e 41, todos da Lei n° 11.340/06, para assentar a natureza incondicionada da ação penal nos casos de lesão corporal leve e/ou culposa envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher (STF, 2012).

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