1. A IGREJA CATÓLICA E O DIREITO CANÔNICO
A Igreja tem um papel de extrema importância na sociedade, percebendo seu poder, sentiu a necessidade de um Direito próprio, um conjunto de normas. Nesse sentido, a igreja começou a formação do Direito Canônico, onde, as fontes se encontravam nas decretais pontifícias, nos cânones oriundos de concílios, nos mais variados estatutos promulgados por bispos, e nas inúmeras regras monásticas com seus livros penitenciais.
O Papa Paulo VI, chamado de “Teólogo do Direito”, afirmou a necessidade de uma relação cada vez mais íntima do Direito e a Teologia, assim, o objeto de estudo do direito canônico é o direito da igreja, portanto, confunde-se com a Teologia, porque não teria como estudar um (direito canônico) separado do outro (teologia).
Segundo o Canonista LLANO CIFUENTES, podemos conceituar o direito canônico como:
“conjunto de normas jurídicas, de origem divina ou humana, reconhecidas ou promulgadas pela autoridade competente da Igreja Católica, que determinam a organização e atuação da própria Igreja e de seus fiéis, em relação aos fins que lhe são próprios” (Curso de Direito Canônico. São Paulo, Saraiva, 1971, p. 10)
Nesse contexto, podemos dizer que o direito canônico é o conjunto de normas (cânones) que orientam a disciplina eclesiástica, definem a hierarquia administrativa, os direitos e deveres dos fiéis católicos, os sacramentos e possíveis sanções por transgressão das normas (leis próprias da igreja).
O termo “cânon” vem do grego kanoon (= regula, regra), empregado nos primeiros séculos da Igreja para designar as decisões dos concílios.
Tal direito precede o direito comum, dos povos, sendo assim muitas Instituições que são hoje do direito nacional do direito brasileiro, principalmente do direito civil e processual, elas foram “inspiradas” nas regras nas normas do direito canônico.
Nesse diapasão, podemos citar alguns normativos eclesiais que serviram de base norteadora para a santa igreja desenvolver sua missão:
1.1. Decreto de Graciano
É uma obra de direito canônico que compila a totalidade das normas canônicas existentes desde os séculos anteriores, muitas delas contraditórias entre si. O seu autor foi o monge e jurista Graciano, que a redigiu entre 1140 e 1142. Constitui a primeira parte de uma série de seis obras jurídicas canônicas conhecidas como Corpus Juris Canonici.
O Decreto de Graciano representa um passo importante na consolidação do Direito da Igreja Católica durante a Idade Média. A obra, monumental pela sua extensão, foi um contributo fundamental para a unificação jurídica, tratando-se, portanto, do resultado de uma atividade doutrinal de um canonista e não de uma política legislativa pontífica, caminho que vinha a ser o mais utilizado até então para esse fim.
Conforme nos ensina o Canonista STARLINO, em sua conceituada obra “Direito Eclesial: Instrumento da Justiça do Reino – Ed. Paulinas, 2004”, originalmente a obra de Graciano era intitulada Concordia Discordatium Canonum (Concórdia dos Cânones Discordantes), que pretendia oferecer um tratado no qual se reconcilassem as tensões no Direito Canônico.
1.2. Concílio de Trento
O Concílio de Trento foi o décimo nono conselho ecumênico reconhecido pela Igreja Católica Romana. Foi convocado pelo papa Paulo III, em 1542, e durou entre 1545 e 1563. Teve este nome, pois foi realizado na cidade de Trento, região norte da Itália.
Foi nesse período o desenvolvimento do Corpus Iuris Canonici (Corpo de Leis Canónicas), uma compilação de fontes relevantes de direito canônico da Igreja Católica que se aplicava às Igrejas do rito latino ou rito oriental e que entrou em vigor em 1582. Podemos dizer que tais instrumentos normativos dessa época, eram o Decreto de Graciano e as Coleções de decretais de Gregório IX e Bonifácio VIII.
Como decisões advindas do Concílio de Trento, podemos relatar:
Condenação à venda de indulgências (um dos principais motivos da Reforma Protestante, que foi duramente questionada por Martinho Lutero);
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Confirmação do principio da salvação pelas obras e pela fé;
A importância da missa dentro da liturgia católica;
Confirmou o culto aos santos e à Virgem Maria;
Reativação da Inquisição (Tribunal do Santo Ofício);
Reafirmou a doutrina da infalibilidade papal;
Confirmou a existência do purgatório;
Confirmação dos sete sacramentos;
Proibição do casamento para os membros clero (celibato clerical);
Criação de seminários para a formação de sacerdotes;
Confirmação da indissolubilidade do casamento;
Medidas e decretos visando à unidade católica e o fortalecimento da hierarquia.
1.3. Códigos de Direito Canônico de 1917 e 1983
Depois de Pio IX e Leão XIII ordenarem algumas partes do Direito Canônico à maneira de codificação, Pio X, pelo Motu Proprio de 19.03.1904, passou a rever toda a elaboração multi-secular do citado Direito e a selecionar o material aproveitável, expurgando-o de elementos antiquados e reduzindo-o a fórmulas claras, adaptando-o às necessidades de então. Falecendo Pio X em 1914, seu sucessor, Bento XV, anunciou ao mundo em 04.12.1916 a conclusão da codificação canônica. No dia 27.05.1917, solenidade de Pentecostes, foi promulgado o Código de Direito Canônico pela constituição "Providentissima Mater Ecclesia"; entretanto, passou a vigorar somente um ano depois, isto é, a partir de 19.05.1918.
Este código foi revogado em 1983, com a promulgação de um novo Código Canônico pelo papa João Paulo II.
Nesse contexto, na apresentação do Código de 1983, o Santo Padre João Paulo II, asseverou que:
“No decorrer dos tempos, a Igreja Católica costumou reformar e renovar as leis da disciplina canônica, a fim de, na fidelidade constante a seu Divino Fundador, adaptá-las à missão salvífica que lhe é confiada.”
Ambos os normativos tiveram sua importância na igreja e na sociedade dentro do momento que viveram e vigeram, porém, o atual código (1983) tem como finalidade criar na sociedade eclesial uma ordem eu, dando primazia ao amor, a misericórdia, à graça e aos carismas, facilite a vida de seus membros e fiéis.
A vida da comunidade eclesial é diretamente regulada pelos chamados Direitos Canônicos, os quais se relacionam com os católicos espalhados pelo mundo. Todas as suas características estão regulamentadas no Código do Direito Canônico e a Igreja Católica mantém um Tribunal Eclesiástico que faz julgamentos baseados no mesmo.
2. AS NOVAS COMUNIDADES NO ÂMBITO DA IGREJA E O CARISMA FUNDACIONAL DAS MESMAS
O Concílio Vaticano II deu uma contribuição fundamental à revalorização da “vida fraterna em comum” e a compreensão da comunidade religiosa, afirmando que a vida religiosa pertence à vida e a santidade da Igreja.
A comunidade religiosa é célula de comunão fraterna, chamada a viver animada pelo carisma fundacional, sendo parte orgânica de toda a igreja, sempre enriquecida pelo Espírito Santo com variedades de ministérios, dons e carismas.
Ressalta-se também, que o Concílio Vaticano II, faz-se uma profunda reflexão sobre a Igreja, mostrando a face laical e seus aspectos no contexto eclesial.
A Constituição Dogmática Lumen Gentium, descreve que:
“O sentido da fé e dos carismas no povo cristão
12. O Povo santo de Deus participa também da função profética de Cristo, difundindo o seu testemunho vivo, sobretudo pela vida de fé e de caridade oferecendo a Deus o sacrifício de louvor, fruto dos lábios que confessam o Seu nome (cfr. Hebr. 13,15). A totalidade dos fiéis que receberam a unção do Santo (cfr. Jo. 2, 20 e 27), não pode enganar-se na fé; e esta sua propriedade peculiar manifesta-se por meio do sentir sobrenatural da fé do povo todo, quando este, «desde os Bispos até ao último dos leigos fiéis» (22), manifesta consenso universal em matéria de fé e costumes. Com este sentido da fé, que se desperta e sustenta pela acção do Espírito de verdade, o Povo de Deus, sob a direcção do sagrado magistério que fielmente acata, já não recebe simples palavra de homens mas a verdadeira palavra de Deus (cfr. 1. Tess. 2,13), adere indefectivelmente à fé uma vez confiada aos santos (cfr. Jud. 3), penetra-a mais profundamente com juízo acertado e aplica-a mais totalmente na vida.”
Tudo isso confirmado na Exortação Apostólica Christifideles Laici, pelo Santo Padre à época, hoje São João Paulo II, onde reitera a participação do fiel leigo no múnus sacerdotal, real e profético de Cristo, enquanto membro da Igreja, como ramo da única videira, em corresponsabilidade na comunhão orgânica e missionária, tendo recebido carismas do Espírito Santo para produzir frutos.
Nesse contexto, o “povo de Deus”, são os leigos, maioria dos membros das novas comunidades, que, impulsionados pelo Espírito Santo e com o aval legal da Santa Igreja, estão cada vez mais buscando o seu lugar ao sol (na igreja).
Para o Apóstolo Paulo, a comunidade é obra de Deus e da Sua graça, que se manifesta visivelmente nos carismas e dons, aí compreendido o ministério apostólico (Rm 12, 3-5; 1 Cor 12, 12-31a; Ef 4, 13-16), por obra do Espírito Santo e de Sua livre vontade, para a utilidade e conveniência do único corpo de que são membros os cristãos.
Papa Bento XVI disse: “Os movimentos eclesiais e as novas comunidades são uma das novidades mais importantes suscitadas pelo Espírito Santo à Igreja pela atuação do Concílio Vaticano II.”
Portanto, as Novas Comunidades (associações, fundações, etc) são uma nova primazia à igreja, trazidas pelo Espírito Santo, como forma de inovação, com carismas particulares dentro universalidade do mistério eclesial.
Canonicamente falando, às realidades associativas de fiéis leigos, hoje costuma-se utilizar os termos “associações”, “movimentos eclesiais” e “novas comunidades”.
O Concílio Vaticano II assegurou o direito de associação dos fiéis àqueles que, em função do batismo e participando na missão da Igreja, o façam com fins espirituais e apostólicos.
Este direito de associação legitima os fiéis para constituir e dirigir associações dentro da Igreja e para aderir-se às já existentes.
As “novas comunidades”, criadas sob a forma de Associação de Fiéis, Institutos de Vida Consagrada, etc, na grande maioria são oriundas da Renovação Carismática Católica (por exemplo, Comunidade Canção Nova, Comunidade Católica Shalom, Comunidade Consolação Misericordiosa, etc.), podem distinguir-se bem pelo forte sentido de comunidade, reunindo sacerdotes, homens e mulheres leigos – celibatários ou casados – que compartilham um estilo de vida.
Um ponto basilar é o “carisma fundacional”, pois, as “novas comunidades” possuem semelhanças entre si, como a vontade de servir Jesus Cristo. Ao mesmo tempo, vivem uma diversidade de carismas, ou seja, cada comunidade evangeliza de uma forma, sempre determinada por inspiração do Espírito Santo.
Nesse sentido, vale citar as sábias palavras de Dom Roberto Lopes, no Congresso Nacional das Novas Comunidades em 2012, onde disse que:
“A beleza da diversidade dos carismas é que se completam segundo as necessidades de cada Igreja particular, a maneira como isso vai se expressar, seja no meio da comunicação, como na Canção Nova, ou a questão também da maneira como a Shalom faz, dentro dos seus serviços diversificados, dentro da comunidade”.
O carisma fundacional nasce a partir do coração de Deus, que, por meio do seu Espírito Santo, inspira e inquieta uma pessoa, fazendo-a buscar vivenciar aquela inspiração. Essa pessoa é chamada, “Fundador”, onde, numa mistura de oração, desejo pessoal e obediência, busca materializar o sonho de Deus para aquele tempo, momento ou para sempre.
São João Paulo II, em seu discurso para os participantes do Congresso Mundial dos Movimentos Eclesiais em 1998, esclarece que a passagem do carisma originário acontece pela atração misteriosa exercida pelo fundador sobre quantos se deixam envolver na sua experiência espiritual sob a ação do Espírito. Esses membros caminham para a realização de uma missão dentro da evangelização, graças ao vigor missionário proveniente do carisma original e da vivência da comunhão, convergindo com o fim apostólico da Igreja toda.
E mais ainda disse o São João Paulo II naquele dia:
“Os verdadeiros carismas não podem senão tender para o encontro com Cristo nos Sacramentos. As verdades eclesiais a que aderis ajudaram-vos a redescobrir a vocação baptismal, a valorizar os dons do Espírito recebidos na Confirmação, a confiar-vos à misericórdia de Deus no Sacramento da Reconciliação e a reconhecer na Eucaristia a fonte e o ápice da inteira vida cristã. E de igual modo, graças a essa forte experiência eclesial, surgiram esplêndidas famílias cristãs abertas à vida, verdadeiras «igrejas domésticas», desabrocharam muitas vocações ao sacerdócio ministerial e à vida religiosa, assim como novas formas de vida laical inspiradas nos conselhos evangélicos. Nos movimentos e nas novas comunidades aprendestes que a fé não é questão abstracta, nem vago sentimento religioso, mas vida nova em Cristo, suscitada pelo Espírito Santo.”
https://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/laity/documents/rc_pc_laity_doc_27051998_movements-speech-hf_po.html
Nesse diapasão, tanto para o fundador como para os seguidores, acontece um kairós, um encontro pessoal com Cristo, que pode ser uma primeira ou segunda conversão. E a convivência comunitária é experiência concreta da comunhão que conduz à maturidade na fé e deve ser acompanhada pelo fundador.
Não obstante, essa nova realidade da igreja católica, com as “novas comunidades”, onde tem trazido “de volta” os fiéis e arrebanhado outros tantos, a santa igreja tem buscado ter o máximo de cuidado com esse “novo”, e, sobre o tema, foi tornado público agora no dia 11 de Maio de 2016, um Rescrito de S. S. o Papa Francisco, concedido ao Card. Pietro Parolin, Secretário de Estado, com o qual o Romano Pontífice determina que a consulta prévia à Santa Sé para erigir um novo Instituto de Vida Consagrada, por parte do Bispo de uma Diocese e previsto no cân. 579. do Código de Direito Canónico, se torna obrigatória ad validitatem. Esta determinação entrou em vigor no dia 1 de Junho de 2016.
Destarte, em que pese o desejo concreto do fundador, dos membros consagrados, do povo e o apoio do Clero local, qualquer Bispo Diocesano que deseje erigir um novo Instituto de Vida Consagrada na sua Diocese deverá, obrigatoriamente, consultar previamente a Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica antes de poder emanar o Decreto de criação desse Instituto diocesano. A omissão dessa consulta prévia torna nulo esse Decreto de criação.
CONCLUSÃO
A Igreja tem um papel de extrema importância na sociedade, entretanto, necessita de um Direito próprio, um conjunto de normas, para harmonizar sua missão.
Dentre outros documentos normativos, a igreja católica mantém o Código de Direito Canônico como arcabouço legal principal para regular a sua vida comunitária eclesial.
As “novas comunidades” surgiram no seio da igreja como um sopro advindo do coração de Deus, por meio do Espírito Santo, para oxigenar a instituição e disseminar carismas que espelham e transmitem o Evangelho nas mais diversas formas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CIFUENTES, Rafael Llano, Curso de Direito Canônico. São Paulo, Saraiva, 1971;
SATARLINO, Roberto Natali, Direito eclesial instrumento da justiça do Reino, Ed. Paulinas, 2004;
Código de Dirieto Canônico de 1983;
Lumen Gentium - https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19641121_lumen-gentium_po.html
Exortação Apostólica Christifideles Laici, https://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/apost_exhortations/documents/hf_jp-ii_exh_30121988_christifideles-laici.html;
https://canonicum.org/2016/05/20/rescrito-sobre-o-can-579-do-codigo-de-direito-canonico/
https://pt.wikipedia.org/wiki/Decreto_de_Graciano.