A antiga redação do artigo 366, do Código de Processo Penal destoava, por completo, das garantias processuais insculpidas na Constituição Federal, quais sejam: a ampla defesa, o contraditório e o devido processo legal. O dispositivo em sua redação original instituía que o acusado, citado por edital, não comparecendo, ou não constituindo advogado, sem motivo justificado, seria condenado à revelia e o processo seguiria seu curso após a nomeação de defensor técnico.
Argumenta-se que até 1996, quando decretada a revelia, os processos seguiam em sistema similar ao inquisitorial, não sendo oportunizado ao réu condições reais de defesa pessoal ou técnica. Os processos tramitavam sem que os réus deles tivessem conhecimento e os defensores técnicos os nomeados, sem contato com o acusado, findavam inaptos a propiciar defesa eficiente[1].
Guilherme de Souza Nucci[2] informa que “ quando assim ocorria, muitos erros judiciais eram concretizados, pois não havia defesa efetiva, podendo a pessoa ser processada em lugar de outra”.
Mara Regina Trippo[3] afirma que os princípios da ampla defesa, contraditório e devido processo legal, em razão do disposto no texto original do artigo 366, do CPP, findavam desrespeitados e inefetivos, quando das condenações à revelia.
De acordo com Ada Pellegrini Grinover[4], o exame cauteloso do texto constitucional era suficiente para denunciar a incompatibilidade da condenação à revelia, sem a devida observância ao devido processo legal e às garantias constitucionais.
Ante a insustentável disciplina dada a matéria, a Lei 9.271/96, com o fim de “salvaguardar a mais ampla defesa do acusado”[5], alterou o texto do artigo 366, do Código de Processo Penal.
Fernando Capez explica:
O fundamento de tal inovação reside no direito à informação. Derivado dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, tal direito encontra-se previsto na Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, a qual foi assinada em 22 de novembro de 1969 e ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992, passando a ter força de lei. Referida Convenção, em seu art. 8°, b, assegura a todo acusado o direito à comunicação prévia e pormenorizada da acusação formulada. Assim, não mais se admite o prosseguimento do feito, sem que o réu seja informado efetivamente, sem sombra de dúvida, da sua existência[6].
Após a reforma legal o dispositivo passou a ter a seguinte redação: “Se o acusado, citado por edital, não comparecer, nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso, decretar a prisão preventiva, nos termos do disposto no art. 312[7]”[8].
Foi instituída não só uma causa suspensiva do processo, como também uma nova causa suspensiva da prescrição. A estipulação da suspensão do processo firmou-se como um benefício para o acusado e a suspensão do curso do prazo constitucional uma medida instituída a fim de recobrar o equilíbrio, posto que não haveria lógica sustar o curso do processo e autorizar o curso da prescrição, pois nessa situação haveria a contagem do prazo para o exercício do direito de punir estatal, ao mesmo tempo em que se impediria, em razão da suspensão do processo, que o Estado efetivamente fizesse uso desse poder.
Fernando da Costa Tourinho Filho[9] ensina que a suspensão simultânea do processo e do prazo prescricional foi uma medida encontrada pelo legislador para conciliar os interesses da sociedade, perturbada com a violação da ordem jurídico-penal, em razão do cometimento do ilícito, e a ampla defesa. Por isso, uma das justificativas para a suspensão simultânea do processo e da prescrição é justamente a promoção de equilíbrio.
Ademais, a criação da nova causa de suspensão da prescrição almeja, também, coibir que a suspensão do processo decorrente da “inatividade processual ficta”[10] incentive a impunidade[11].
Nesse ponto, importante registrar a crítica que Tourinho Filho[12] dirige a instituição dessa nova causa suspensiva da prescrição pois, embora entenda que a suspensão da prescrição consta no texto do artigo 366 do Código de Processo Penal para compensar a suspensão do processo e coibir a impunidade, o autor opina no sentido de que o legislador foi excessivamente severo, na medida em que poderia ter proposto outra solução mais adequada e proporcional.
Suscita-se, ainda, que a alteração legislativa também teve viés de política judiciária, partindo do pressuposto que a nova redação do artigo 366, do CPP, garante maior eficiência à provocação do judiciário. Antes da vigência da Lei 9.271/96, muitos casos de condenação à revelia findavam alcançados pela prescrição, ou seja, o Estado tinha todo um gasto com a persecução criminal, investigação, produção de provas e todos os demais custos decorrentes de um processo, para ao final esse findar inócuo com a extinção da punibilidade. Tendo estipulado a suspensão da prescrição, os novos contornos dados à situação buscam, também, evitar a movimentação inútil do judiciário[13]. Somado a isso, frisa-se que a atenção a ampla defesa, ao devido processo legal e ao contraditório também atendem ao interesse público ao passo em que garante sentenças mais justas.
Justificativas para alteração do dispositivo em exame existiam e a mudança era uma real necessidade do ordenamento pátrio, entretanto a omissão do poder legislativo em não fixar limite temporal para a suspensão do processo resultou no alastramento de discussões e divergências quanto a correta interpretação do texto legal, ainda não pacificadas.
As interpretações dadas ao texto do artigo 366, do CPP se dividem em três blocos, quais sejam: 1) O dos que acusam a inconstitucionalidade da previsão do dispositivo legal; 2) O dos que pregam que a interpretação teológica da Lei 9.271/96 sana a lacuna deixada pelo legislador e garantem a constitucionalidade da nova redação dada ao artigo 366 do Código de Processo Penal; 3) O dos que defendem que a interpretação literal da norma é constitucional, tendo em vista que condicionar o fim da suspensão a evento futuro e incerto não se equipara a imprescrição. Passa-se a análise de cada orientação.
Até meados de 1988, o ordenamento nacional não admitia a imprescritibilidade, assim, todo ato ilícito estava sujeito a ação do tempo, à prescrição. O panorama mudou quando a Constituição trouxe expressamente em seu texto dois casos nos quais o tempo não era hábil a limitar o poder de punir do Estado, assim, a Magna Carta, para uns inovou, para outros retrocedeu, ao instituir a imprescrição do crime de racismo (artigo 5º, inciso XLII, da CF/88) e do crime de ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.
Sendo a imprescritibilidade uma realidade a ser enfrentada pelo ordenamento do país, dos muitos questionamentos levantados sobre a questão, discute-se, até os dias atuais, sobre a possibilidade de ampliar as hipóteses de crimes imprescritíveis.
Para maior parte dos doutrinadores brasileiros, o rol de crimes imprescritíveis é taxativo, sendo inadmissível a criação de novas hipóteses. Assim, os autores que argumentam a inconstitucionalidade do artigo 366, o fazem por conceberem a nova causa de suspensão da prescrição como um camuflado modo de instituir novos casos de imprescritibilidades.
Nesse sentido, Guilherme de Souza Nucci[14] argumenta a impossibilidade de a prescrição ser suspensa indefinidamente, pois referida situação equivaleria a tornar o ato ilícito imprescritível.
O raciocínio é simples, quando a lei não fixa termo final para o fim da suspensão da prescrição, faz concluir que o prazo prescricional só voltará a transcorrer quando o réu comparecer ou constituir advogado, fato que pode nunca vir a acontecer. Caso o acusado nunca apareça, a prescrição ficará suspensa, o prazo prescricional não voltará a correr, e o processo poderá só ter termo quando extinta a punibilidade pelo óbito do réu.
Nesse sentido Damásio E. de Jesus afirma:
O prazo da suspensão da prescrição não pode ser eterno. Caso contrário, estaríamos criando uma causa de imprescritibilidade. As hipóteses que não admitem a prescrição estão enumeradas na Constituição Federal, não podendo ser alargadas ela lei ordinária. Ora, permitindo-se a suspensão da prescrição sem limite temporal, esta, não comparecendo o réu em juízo, jamais ocorreria, encerrando-se o processo somente com sua morte, causa extintiva da punibilidade (CP, art. 107, I)[15].
Ademais, defende-se que desse modo se experimentaria a ampliação da imprescritibilidade com uma agravante, qual seja: qualquer crime, incluídos os de menor potencial lesivo, poderiam ser abrangidos pela imprescrição, ao passo que a nova causa suspensiva trazida pelo artigo 366, do CPP, aplica-se a qualquer processo penal em curso no judiciário pátrio.
Por isso, além da violação aos preceitos constitucionais, os opositores da nova causa suspensiva da prescrição sustentam o desrespeito ao princípio da proporcionalidade, ao passo em que, possibilitando que a imprescrição atinja desde os tipos penais leves ao mais gravosos, gera excesso punitivo[16].
Convencido da inconstitucionalidade da suspensão por tempo indeterminado da prescrição, Mathias Coltro, em seus julgados, decidiu por aceitar apenas a constitucionalidade da suspensão do processo, tendo deixado de suspender o curso do prazo prescricional, embora tenham suspendido os processos[17].
No segundo bloco estão os jurisconsultos que defendem que a interpretação teológica da Lei n 9.271/96 garante a constitucionalidade da alteração legal. Para esses, a interpretação literal da redação do artigo 366, do CPP, em razão da inexistência de limitação temporal para a suspensão da prescrição, consubstancia a ampliação da imprescritibilidade, todavia, arguindo os fins a que a Lei n 9.271/96 se prestou, adequar o processo penal às garantias constitucionais, aduzem que o objetivo do legislador não foi instituir novas hipóteses de imprescritibilidade e que a melhor interpretação da norma é a que entende que a suspensão da prescrição será por tempo limitado.
Contrariamente, os opositores argumentam que a estipulação de limite temporal para a suspensão da prescrição e a consequente legitimação da contagem do prazo prescricional ante a suspensão do processo, nega o propósito da reforma legal, que criou a nova causa de suspensão da prescrição justamente para evitar que acusados se beneficiassem da sustação do processo para restar impunes.
Conforme Mara Regina Trippo[18], “ a coerência dos fins do diploma impõe a definição de termo final para a paralisação do jus puniendi, espancando a oblíqua imprescritibilidade”. Marcelo Roberto Ribeiro[19], opondo-se a esse entendimento, argumenta que seguindo a orientação predominante “estar-se instituindo a figura inusitada da prescrição da suspensão da prescrição e, o que é pior, sem respaldo legal algum”.
Os autores que sustentam a delimitação de um prazo para a suspensão da prescrição, embora concordem que a omissão do legislador, referente a fixação do prazo de duração da suspensão prescricional, não é suficiente para a caracterização da inconstitucionalidade da norma, divergem quanto aos parâmetros que deverão ser adotados para a delimitação temporal. Divergência que resultou em várias orientações das quais 3 se destacam.
A primeira e a segunda “estabelecem relação de proporcionalidade entre o tempo da suspensão e o prazo para a consumação da prescrição (artigo 109 do Código Penal) ”[20]. A primeira defende que os parâmetros para a fixação da duração da suspensão deveriam ter por base o prazo prescricional estipulado para a pena mínima em abstrato. A segunda pondera que a melhor interpretação é a que propõe a equivalência entre a suspensão da prescrição e o prazo prescricional para a pena máxima em abstrato.
Trippo[21] defende que a segunda orientação é a mais adequada, sendo a única que atende à proporcionalidade penal. Fernando Capez, partidário dessa orientação, diz que “o período máximo da suspensão deve ser o da prescrição calculada com base no máximo cominado abstratamente para a espécie”[22]. Do mesmo modo, Andrei Zenkner Schmidt[23] se posiciona no sentido de que é o prazo prescricional em abstrato que deverá determinar a duração da suspensão e que, consoante funciona para o prazo prescricional, para a estipulação do prazo da suspensão deverá ser considerado a pena máxima em abstrato.
Sidio Rosa de Mesquita Júnior[24], embora argumente que o melhor cenário seria a análise fática de cada caso, finda rendendo-se a orientação majoritária e sustenta que “a suspensão do lapso prescricional, decorrente da suspensão do processo, tomará por base o máximo da pena cominado na lei penal”.
O Superior Tribunal de Justiça se posicionou a favor da delimitação do prazo de duração da suspensão da prescrição e, seguindo a tendência doutrinária majoritária, editou em 09 de dezembro de 2009 a Súmula 415[25] instituindo a máxima pena como parâmetro.
De outro lado, a terceira orientação é no sentido de que a melhor solução seria a delimitação de parâmetros fixos, “X” anos equivaleria ao tempo de duração da suspensão independente do tipo penal imputado ao acusado.
A terceira orientação sobre o texto do artigo 366 do Código de Processo Penal argumenta que a interpretação literal da norma é constitucional. Para os defensores dessa visão, a redação do aludido dispositivo nao pretende obliquamente instituir novos casos de imprescritibilidade, pois a definição de imprescrição não equivale a condicionar a prescrição a ocorrência de evento futuro e incerto.
Assim, esses autores concebem ser constitucional a suspensão do prazo prescricional por tempo ilimitado, ou seja, admitem a suspensão ter como termo final o dia em que o acusado comparecesse em juízo ou constituísse advogado.
Sustentam, ainda, que o entendimento majoritário, de que deverá ser fixado prazo para a duração da suspensão da prescrição, foi rejeitado pela reforma processual promovida pela Lei n 11.79/08, quando do veto integral do artigo 363, §2°, do Código de Processo Penal.
Opondo-se, Fernando Capez opina:
Poderia a prescrição ficar suspensa indefinidamente por trinta, quarenta, cinquenta anos, até que o acusado seja localizado? Não nos parece razoável este entendimento. As hipóteses de imprescritibilidade encontram-se elencadas taxativamente no Texto Constitucional no ar. 5°, XLII (racismo) e XLIV (ações de grupos armados civis ou militares contra a ordem constitucional e o estado democrático), de modo que não se admite sejam ampliadas pela legislação infraconstitucional. É necessário buscar-se um período máximo, após o qual o processo continuaria suspenso, mas a prescrição voltaria a correr pelo tempo restante (estava apenas suspensa).[26]
Instado a manifestar-se sobre a matéria, o Supremo Tribunal Federal afirmou a constitucionalidade da suspensão da prescrição por prazo indeterminado, sob o fundamento de que ela não se confunde com a imprescritibilidade, não havendo impedimento a aplicação do artigo 366[27].
Contudo, a bem da verdade, a atual redação do artigo 366 do Código Penal, interpretada segundo a orientação do Supremo Tribunal Federal, cria novas hipóteses de crimes imprescritíveis, ao passo em que pode ser que no caso concreto, não havendo o comparecimento do réu, o processo nunca prescreva.
Nesse sentido, defende-se ser inconcebível a orientação que prega a suspensão da prescrição por tempo ilimitado, afinal admitir essa possibilidade encaminharia o ordenamento jurídico nacional a ampliação dos casos de crimes imprescritíveis sem a mínima atenção à proporcionalidade, ao princípio da segurança jurídica, ao princípio da razoável duração do processo e à vedação de penas perpétuas ou quaisquer outros critérios merecedores de exame quando se discute a imprescrição.
Ante tudo o que foi exposto, defende-se que a melhor solução é a “mudança legislativa que trate da questão com mais acerto” [28], pois enquanto o texto legal permanecer omisso, haverá espaço para entendimentos diferentes e a discussão persistirá.