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Prescrição e decadência contra as pessoas com deficiência após a promulgação da Lei nº 13.146/15: uma análise constitucional

Agenda 29/06/2016 às 11:30

Trata das repercussões da Lei nº 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) na prescrição contra os incapazes e, especialmente, contra as pessoas com deficiência. Conclui pela inconstitucionalidade da supressão do impedimento e da suspensão do prazo.

Este artigo trata das repercussões da Lei nº 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) na prescrição contra os incapazes e, especialmente, contra as pessoas com deficiência, haja vista as alterações feitas por este diploma legal no Código Civil. Analisa, em prosseguimento, os efeitos da referida lei sobre a prescrição, sob as luzes da Constituição e da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada pelo Congresso Nacional em conformidade com o procedimento previsto no § 3º do art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil. Conclui, então, que, não obstante as modificações perpetradas nos artigos 3º e 4º, do Código Civil, o prazo prescricional permanece tendo o seu curso impedido ou suspenso contra as pessoas com deficiência que não tenham o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil.


1. Impedimento/suspensão do curso do prazo prescricional contra os incapazes - regramento original do Código Civil

Em sua redação original, o art. 3º do Código Civil estabelecia o seguinte:

Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil:

I - os menores de dezesseis anos;

II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos;

III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.

Previa-se, então, três hipóteses de incapacidade civil absoluta. A primeira é uma decorrência da menoridade, pura e simplesmente, que faz presumir a imaturidade do indivíduo para tomar as decisões relevantes para a sua vida civil (inciso I). A segunda resultava da falta de discernimento do indivíduo, que tivesse como motivo uma enfermidade ou deficiência mental, para a prática de atos jurídicos em geral (inciso II). A terceira era reflexo da impossibilidade de a pessoa, ainda que dotada de discernimento e maturidade, manifestar a sua vontade (inciso III).

Todas essas hipóteses de incapacidade absoluta tinham em comum o fato de as pessoas por elas acobertadas não terem as mínimas condições de exercer, por si, os seus direitos, seja em razão da completa falta de capacidade para bem compreendê-los ou da impossibilidade de expressão da vontade.

Os absolutamente incapazes, nessas circunstâncias, praticavam os atos da vida civil, sempre, por meio de seus representantes legais, tutores ou curadores, que atuavam em nome dos representados, tutelados ou curatelados.

Justamente por não poderem exercer ou defender, por si mesmos, os seus direitos, para o que dependiam exclusivamente de terceiros, o art. 198, I, do Código Civil estabeleceu que não corre prazo prescricional contra os incapazes de que trata o seu art. 3º1. Com efeito, tratando-se de indivíduos que se encontram impossibilitados de deduzir as próprias pretensões jurídicas, nada mais razoável do que protegê-los contra os efeitos maléficos que o transcurso do tempo traz sobre elas, neste caso, a sua própria extinção pela prescrição.

O advento da Lei nº 13.146/2015, que alterou drasticamente o regime das incapacidades então previsto no Código Civil, veio, contudo, a tornar a questão do impedimento e da suspensão da prescrição contra os incapazes - ou melhor, daqueles que até então eram assim considerados - bastante tormentosa, como será demonstrado adiante.


2. As alterações promovidas pela Lei nº 13.146/2015 no Código Civil e suas repercussões nos efeitos da prescrição

A Lei nº 13.146/2015, autodenominada de Estatuto da Pessoa com Deficiência, alterou significativamente os artigos 3º e 4º do Código Civil, que passaram a ter as seguintes redações:

Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos. (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015)

I - (Revogado);

II - (Revogado);

III - (Revogado).

Art. 4º São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer:

I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;

II - os ébrios habituais e os viciados em tóxico;

III - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade;

IV - os pródigos.

Parágrafo único. A capacidade dos indígenas será regulada por legislação especial.

As mudanças operadas foram as seguintes:

A alteração mais significativa perpetrada pela Lei nº 13.146/2015 em relação ao regime das incapacidades, sem qualquer sombra dúvida, foi a atribuição de capacidade civil ilimitada às pessoas com deficiência mental, seja qual for a sua intensidade ou o grau de comprometimento do discernimento do sujeito. A lei foi bastante enfática, aliás, quanto a este propósito, conforme se depreende da leitura de seus artigos 6º e 84, caput, in verbis:

Art. 6º A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para:

I - casar-se e constituir união estável;

II - exercer direitos sexuais e reprodutivos;

III - exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar;

IV - conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória;

V - exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e

VI - exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.

(...)

Art. 84. A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas.

A nova estruturação do regime jurídico das incapacidades, feita pela Lei nº 13.146/2015, repercutiu diretamente na aplicação do instituto da prescrição contra as pessoas com deficiência. Isso se deve ao fato de o art. 198, I, do Código Civil, estabelecer que não corre a prescrição "contra os incapazes de que trata o art. 3º".

Sendo assim, se antes do advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência, tanto os menores de dezesseis anos quanto os deficientes que não tinham discernimento para a prática dos atos civis e os impossibilitados de exprimir sua vontade eram beneficiados com o impedimento ou a suspensão do curso do prazo prescricional, a partir da edição da Lei nº 13.146/2015, e seguindo uma interpretação literal das normas do Código Civil, somente os menores impúberes é que estariam contemplados com a regra protetiva do art. 198, I, do aludido Código, já que os demais deixaram de compor o rol de seu art. 3º.

A questão, todavia, é bastante complexa, e por isso demanda uma análise mais cuidadosa.

É o que se passa a fazer.


3. Análise da prescrição contra os incapazes frente à Constituição e à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência

Já de início, é preciso considerar o fato de que a Lei nº 13.146/2015, por ela mesma qualificada como Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, foi editada com o escopo de definir e de concretizar, na ordem jurídica interna, os ditames da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008, e promulgada pelo Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. É o que se depreende, com facilidade, a partir do art. 1º, parágrafo único, daquele primeiro diploma legal, que estabelece que:

Art. 1º É instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania.

Parágrafo único. Esta Lei tem como base a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, ratificados pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008, em conformidade com o procedimento previsto no § 3º do art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, em vigor para o Brasil, no plano jurídico externo, desde 31 de agosto de 2008, e promulgados pelo Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, data de início de sua vigência no plano interno.

A referida Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência foi ratificada pelo Congresso Nacional de acordo com o procedimento previsto no art. 5º, §3º, da Constituição de 1988, segundo o qual "os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais ". Desta maneira, as normas contidas na Convenção de que se trata possuem status constitucional.

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Neste contexto, é clarividente que os dispositivos da Lei nº 13.146/2015 devem ser cotejados e interpretados, inevitavelmente, em conformidade com as normas e princípios constantes na Convenção das Pessoas com Deficiência, o que, a rigor, corresponde ao raciocínio de que as leis ordinárias devem ser interpretadas de acordo com a Constituição.

Pois bem.

Não se pode negar que a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência objetivou promover a completa e integral inserção dos indivíduos por ela protegidos no seio da sociedade civil, afastando todos os obstáculos sociais, culturais, históricos, jurídicos, físicos ou de quaisquer outra ordem ainda existentes na atualidade e que possam restringir o pleno exercício da cidadania, em condições dignas. Foi esta, consequentemente, a linha adotada pela Lei nº 13.146/2015.

Não há dúvida, também, de que a busca pela plena equiparação de direitos, bem como da possibilidade de exercê-los, entre as pessoas em geral e aquelas que possuem deficiências de toda ordem é um dos principais mecanismos preconizados pela Convenção e pela lei de que se trata para o cumprimento de seus objetivos. Pretende-se, em síntese, a igualdade.

Essa busca pela igualdade, contudo, não se faz apenas pela equiparação plena e pela absoluta ausência de discriminação entre pessoas com ou sem deficiência. O que não se pode admitir é um tratamento prejudicial, mais rigoroso ou restritivo àqueles que devem ser incluídos na sociedade. Por outro lado, a discriminação benéfica, vale dizer, o uso das denominadas ações afirmativas ou de tratamentos favorecidos aos que se encontram à margem de seus direitos à dignidade e à cidadania não é apenas aconselhável, mas até mesmo imposto ao Estado. Essa é a razão pela qual o art. 2º da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência dispõe que:

Art. 2º: Para os propósitos da presente Convenção:

(...)

Discriminação por motivo de deficiência” significa qualquer diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, com o propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar o reconhecimento, o desfrute ou o exercício, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais nos âmbitos político, econômico, social, cultural, civil ou qualquer outro. Abrange todas as formas de discriminação, inclusive a recusa de adaptação razoável;

Essa norma foi reproduzida, em linhas gerais, pelo art. 4º, §1º, da Lei nº 13.146/2015, deixando-se explícito que a discriminação vedada é aquela que restringe a aquisição, o reconhecimento ou o gozo de direitos pelas pessoas com deficiência.

No que respeita diretamente ao gozo dos direitos civis, o regime das incapacidades até então previsto nos arts. 3º e 4º do Código Civil sujeitava as pessoas com deficiência, em muitos casos, à vontade e à atuação de terceiros. Trata-se, especialmente, daqueles que, em decorrência de enfermidade ou deficiência mental, não tinham discernimento para a prática dos atos da vida civil - considerados como absolutamente incapazes na redação original do art. 3º e, portanto, dependentes de seus representantes legais para a prática de atos jurídicos - e dos que, também em razão de enfermidade ou deficiência, possuíam seu discernimento reduzido - tidos, antes da Lei nº 13.146/2015, como relativamente incapazes pelo art. 4º do Código Civil, de maneira que deveriam ser assistidos por seus tutores ou curadores nos atos por eles praticados.

Principalmente pelo fato de que as pessoas com deficiência acabavam sendo estigmatizadas socialmente por não poderem exercer, na plenitude, sua capacidade civil, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, no constante propósito de igualdade, estabeleceu, em seu art. 12.2, que "os Estados Partes reconhecerão que as pessoas com deficiência gozam de capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida".

Nesta mesma trilha é que seguiram os arts. 6º e 84 da Lei nº 13.146/2015, acima transcritos. Determinou-se, em suma, que a deficiência não pode ser motivo de qualquer restrição na capacidade civil de quem a possui.

A rigor, esses preceitos da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e do Estatuto da Pessoa com Deficiência não impunham uma modificação tão drástica do regime das incapacidades do Código Civil, tal como foi feito, porquanto a deficiência em si não era causa de qualificação da pessoa que a detinha como absolutamente incapaz, nos termos da redação originária de seu art. 3º.

Com efeito, o que tornava o indivíduo absolutamente incapaz, conforme o previsto no inciso II, era a ausência de discernimento para a prática dos atos da vida civil, a qual resultasse da deficiência. Este era o critério de discriminação. Sendo assim, a pessoa com deficiência que, não obstante isso, mantivesse o discernimento, não era considerada absolutamente incapaz.

Da mesma maneira, a deficiência também não era a razão pela qual pessoas que a portassem fossem consideradas relativamente incapazes, na forma do art. 4º, II, do Código Civil, em sua redação primitiva. O que as tornava sujeita à assistência de terceiros na prática de atos jurídicos era a redução do discernimento eventualmente causada pela enfermidade ou doença mental.

Enfim, em ambas as hipóteses, o motivo da incapacidade era o comprometimento da aptidão de discernimento dos indivíduos. Quando total, tornava-os absolutamente incapazes. Sendo parcial, a incapacidade era relativa.

Diferentemente, o inciso III do art. 4º do Código Civil, em sua redação originária, classificava "os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo" como relativamente incapazes. Aqui, sim, seria possível concluir que o critério de discriminação para essa redução de grau da capacidade civil foi exclusivamente a deficiência, o que servia para justificar a sua revogação pela Lei nº 13.146/2015.

Como se pode perceber, então, bastaria a revogação do art. 4º, III, do Código Civil para que ele se tornasse compatível com a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e com o Estatuto da Pessoa com Deficiência. O legislador ordinário, todavia, foi mais longe para excluir dos elencos de pessoas doravante incapazes - seja absoluta ou relativamente - aquelas que, por qualquer razão, não tenham discernimento suficiente para a prática dos atos da vida civil, seja qual for o seu grau de intensidade. Justamente neste ponto, na ânsia de afastar qualquer restrição que pudesse colocar as pessoas com deficiência em um patamar inferior às demais em relação à capacidade civil, sempre em nome da igualdade, a lei acabou por desamparar aqueles que necessitavam de sua proteção, especialmente no que toca à prescrição.

É importante, neste momento, considerar que as pessoas com deficiência, por mais que mereçam ser tratadas com a mesma dignidade dispensada aos demais indivíduos, muitas vezes, por suas próprias condições, necessitam da intervenção de terceiros que as auxiliem na prática dos atos da vida civil, já que, em inúmeras situações, não possuem completo discernimento sobre aquilo que lhes é ou não é vantajoso. A própria Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência reconhece essa limitação daqueles que busca proteger quando dispõe, em seu art. 12.3. e 12.4, que:

Art. 12. (...)

(...)

3.Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para prover o acesso de pessoas com deficiência ao apoio que necessitarem no exercício de sua capacidade legal.

4.Os Estados Partes assegurarão que todas as medidas relativas ao exercício da capacidade legal incluam salvaguardas apropriadas e efetivas para prevenir abusos, em conformidade com o direito internacional dos direitos humanos. Essas salvaguardas assegurarão que as medidas relativas ao exercício da capacidade legal respeitem os direitos, a vontade e as preferências da pessoa, sejam isentas de conflito de interesses e de influência indevida, sejam proporcionais e apropriadas às circunstâncias da pessoa, se apliquem pelo período mais curto possível e sejam submetidas à revisão regular por uma autoridade ou órgão judiciário competente, independente e imparcial. As salvaguardas serão proporcionais ao grau em que tais medidas afetarem os direitos e interesses da pessoa.

Na verdade, mais do que reconhecer a situação de vulnerabilidade das pessoas com deficiência em relação ao exercício da capacidade civil, a Convenção - cujas normas, é importante relembrar, são dotadas de hierarquia constitucional, na forma do art. 5º, §3º, da Constituição - impõe a adoção de medidas de salvaguarda destinadas a proteger os indivíduos acometidos por deficiência que prejudique a sua plena capacidade de discernimento. Isso para que não se permita que essas pessoas, sob o pretexto de terem exatamente os mesmos direitos das demais, vejam-se jogadas à própria sorte na prática de atos jurídicos cujas consequências não possam avaliar com um mínimo grau de segurança.

Imagine-se, somente a título de exemplo, um recibo de quitação passado por uma pessoa com deficiência que, por essa razão, não tenha a capacidade de somar o dinheiro; ou um contrato de financiamento bancário celebrado por um indivíduo que, por conta de sua deficiência, não consiga compreender o significado de juros ou de reajustamento das prestações. Erigir, simplesmente e sem quaisquer ressalvas, as pessoas com deficiência à condição de capazes, sem que tenham as necessárias salvaguardas, significa permitir que situações como essas, além de muitas outras, propaguem-se em prejuízo daqueles que deveriam ser tutelados pela ordem jurídica.

Certamente no propósito de evitar que o auto exercício, pleno e incondicional, da própria capacidade venha em prejuízo das pessoas com deficiência é que a Lei nº 13.146/2015 manteve o instituto da curatela e criou um novo instituto de assistência a esses indivíduos, denominado de decisão apoiada. Sobre isso, os parágrafos do art. 84. da lei estabelecem o seguinte:

Art. 84. A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas.

§ 1º Quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei.

§ 2º É facultado à pessoa com deficiência a adoção de processo de tomada de decisão apoiada.

§ 3º A definição de curatela de pessoa com deficiência constitui medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível.

§ 4º Os curadores são obrigados a prestar, anualmente, contas de sua administração ao juiz, apresentando o balanço do respectivo ano.

Especificamente em relação à decisão apoiada, o Estatuto da Pessoa com Deficiência acrescentou o art. 1.783-A ao Código Civil, que dispõe que:

Art. 1.783-A. A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade.

É preciso um certo esforço para bem compreender o sentido do novo regime jurídico da incapacidade em relação às pessoas com deficiência, porquanto ao mesmo tempo em que se retira do rol dos incapazes os indivíduos sem o necessário discernimento para os atos da vida civil, ou com discernimento comprometido, assegurando-lhes a capacidade plena em igualdade de condições com as demais pessoas, reconhece-se, de outro lado, que os que possuem algum tipo de deficiência muitas vezes necessitam da intervenção ou do auxílio alheio para a prática dos atos jurídicos. Como, então, conciliar a ideia de capacidade plena com a determinação de assistência de terceiros em determinadas hipóteses? Como impor a submissão de alguém tido como plenamente capaz a um regime de curatela?

Parece claro que tanto a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência como a Lei nº 13.146/2015 buscaram, a um só tempo, afastar, em relação aos indivíduos com deficiência, as restrições decorrentes da incapacidade, na busca pela igualdade com as pessoas sem deficiência, mas mantendo medidas de proteção aos que carregam deficiência que afete a capacidade de discernimento. Ocorre que essas restrições resultantes da incapacidade absoluta ou relativa, muitas vezes, tinham justamente o propósito de proteger os incapazes. Tanto é assim que o instituto da curatela foi mantido pela legislação atual, que passou a prever também a tomada de decisão apoiada para o auxílio aos que dela necessitam.

Buscando, contudo, encontrar algum sentido nas inovações trazidas pela Lei nº 13.146/2015, pode-se concluir que a sua utilidade jurídica, o seu avanço na proteção dos direitos das pessoas com deficiência, consiste em clarificar que a curatela desses indivíduos, vale dizer, a intervenção de terceiros na exteriorização de sua vontade, "constitui medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível", nos exatos termos do parágrafo terceiro de seu artigo 84. Desta maneira, a regra deve ser a de que as pessoas com deficiência podem exercer livremente os seus direitos, somente sendo admitida interferência alheia em hipóteses excepcionais. Trata-se, ainda assim, de uma interpretação sistemática do ordenamento civil e constitucional que já poderia defluir das redações originárias dos artigos 3º e 4º do Código Civil, porquanto, como visto, a incapacidade absoluta ou relativa somente se fazia presente quando comprometido o discernimento da pessoa com deficiência, o que parece permanecer atualmente, com a diferença de que a assistência ou representação dessa pessoa é feita, doravante, ainda que ela se qualifique como plenamente capaz.

O que causa alguma perplexidade é que, com o advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência, as intervenções alheias na formação ou na exteriorização de sua vontade não mais seriam acompanhadas das respectivas regras de proteção dos interesses do representado ou assistido contra terceiros. Exemplo concreto disso é o que sucedeu com a prescrição.

Como visto anteriormente, antes da Lei nº 13.146/2015, contra as pessoas com deficiência que, por conta dela, não tivessem o discernimento necessário para a prática dos atos da vida civil, não corria prescrição, conforme o art. 198, I, c/c art. 3º, ambos do Código Civil. Atualmente, não figurando mais essas pessoas desprovidas de discernimento no rol dos absolutamente incapazes, o prazo prescricional fluiria normalmente em seu desfavor, ainda que estiverem submetidas a um regime de curatela ou de tomada de decisão apoiada (e certamente estarão ou deveriam estar, haja vista as restrições mentais impostas). Em síntese, esses indivíduos ver-se-iam em uma situação mais gravosa, porquanto, mesmo com a interferência alheia na formação ou exteriorização de sua vontade, não estariam protegidos contra a prescrição, ao contrário do que ocorria anteriormente.

Não bastasse isso, é difícil compreender a razão pela qual uma pessoa que não tem condições de exercer, por conta própria, os seus direitos e as pretensões contra as suas violações não mais estará resguardada contra a fluência do prazo prescricional. Em outros termos, não há como admitir que se exija de alguém sem discernimento jurídico algum a defesa de seus direitos, sob pena de ter as respectivas pretensões fulminadas pela prescrição. Esse era o sentido da proteção anteriormente conferida pelos arts. 3º e 198, I, do Código Civil, aos absolutamente incapazes em razão de deficiência que comprometia o referido discernimento, proteção essa suprimida pela Lei nº 13.146/2015.

O que não se pode, em absoluto, é permitir que normas jurídicas que vieram a lume para proteger o direito das pessoas com deficiência sirvam para agravar a sua situação, deixando-as em um estado (ainda maior) de vulnerabilidade que não existia anteriormente. É exatamente por essa razão que o art. 4.4. da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência dispõe, textualmente, que:

Art. 4º (...)

(...)

4. Nenhum dispositivo da presente Convenção afetará quaisquer disposições mais propícias à realização dos direitos das pessoas com deficiência, as quais possam estar contidas na legislação do Estado Parte ou no direito internacional em vigor para esse Estado. Não haverá nenhuma restrição ou derrogação de qualquer dos direitos humanos e liberdades fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer Estado Parte da presente Convenção, em conformidade com leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob a alegação de que a presente Convenção não reconhece tais direitos e liberdades ou que os reconhece em menor grau.

O que a Convenção pretende deixar claro, com isso, é que as suas disposições jamais poderão servir para a redução da esfera de proteção das pessoas com deficiência quando as normas internas do Estado Parte sejam mais favoráveis.

Esta espécie de cláusula interpretativa é bastante comum em Convenções relacionadas à proteção de direitos humanos. Ela consta, por exemplo, no art. 29. da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), e sobre ela VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI (Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos - em coautoria com Luiz Flávio Gomes - 4ª ed., ed. RT, p. 240/241) ensina o seguinte:

(...) a Convenção está a admitir que as fontes do Direito não se excluem mutuamente, mas antes se complementam, podendo haver no Direito interno estatal disposições mais benéficas que as existentes na própria Convenção Americana e que devem ser aplicadas em detrimento dela, uma vez que o que pretende a Convenção não é a sua utilização em todos os casos, mas naqueles em que a sua aplicação se faça necessária, quando não existe no plano interno ou em outros tratados ratificados pelo Estado norma protetiva para determinado caso concreto. Mas quando tal norma existe no plano do direito interno estatal (por disposições legislativas internas ou em virtude de outros instrumentos internacionais de direitos humanos em que o Estado em causa seja parte), a Convenção Americana não vê problema na aplicação desse direito interno em detrimento dela, uma vez que a regra de interpretação que nela se contém é a da não exclusão de direitos, a qual, a contrario sensu, se transforma na regra da inclusão de direitos.

Nunca é demais reiterar que as normas da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência foi recebida na ordem interna com status constitucional, de maneira que devem ser observadas pela legislação ordinária. Ante o teor de seu art. 4.4, portanto, uma regra legal que venha, com base em determinada interpretação da própria Convenção, a restringir ou suprimir um direito ou uma garantia das pessoas com deficiência até então existente, passa a ser inconstitucional.

A própria Lei nº 13.146/2015, a propósito, deixa claro que não pretende, a partir de suas disposições, restringir direitos das pessoas com deficiência. É o que se conclui de seu art. 121:

Art. 121. Os direitos, os prazos e as obrigações previstos nesta Lei não excluem os já estabelecidos em outras legislações, inclusive em pactos, tratados, convenções e declarações internacionais aprovados e promulgados pelo Congresso Nacional, e devem ser aplicados em conformidade com as demais normas internas e acordos internacionais vinculantes sobre a matéria.

Parágrafo único. Prevalecerá a norma mais benéfica à pessoa com deficiência.

A título de conclusão, o raciocínio jurídico a ser empreendido a respeito da questão posta, então, é o seguinte:

Sendo assim,

É importante deixar claro que a inconstitucionalidade não reside na regra que atribuiu capacidade civil plena a todas as pessoas com deficiência, ainda que, em razão dela, não tenham discernimento para a prática de atos da vida civil. O que é acometida de inconstitucionalidade, por desrespeito ao art. 4.4. da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, é a supressão da norma que assegurava que contra essas pessoas desprovidas de capacidade cognitiva não correria prazo prescricional.

Não se pode, desta maneira, taxar de plenamente inconstitucional o art. 114. da Lei nº 13.146/2015, que alterou os arts. 3º e 4º do Código Civil, mas deve-se reconhecer uma inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, da norma que, em decorrência dele, suprime a garantia das pessoas com deficiência contra o fluxo do prazo prescricional.

Consequência de tudo isso é que, mesmo após a alteração do art. 3º do Código Civil, não corre prazo prescricional contra as pessoas com deficiência que, por essa razão, não tenham o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil.


Nota

1 Art. 198. Também não corre a prescrição: I - contra os incapazes de que trata o art. 3º ;

Sobre o autor
Bruno Henrique Silva Santos

Juiz Federal Substituto do Tribunal Regional Federal da 4ª Região desde 2008. Anteriormente, foi advogado e Procurador da Fazenda Nacional. Autor do livro "Prescrição e Decadência no Direito Previdenciário" e de inúmeros outros artigos jurídicos

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