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O valor jurídico do abandono paternal à luz do princípio da afetividade.

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2. LAÇOS FAMILIARES À LUZ DO NOVO DIREITO DAS FAMÍLIAS

O ordenamento jurídico pátrio se enlaça na contínua missão de consagrar os direitos humanos no seio da família, mas, nem sempre foi assim, pois o direito de família, durante séculos, serviu como instrumento de discriminação e sofrimento, privilegiando a manutenção do casamento em detrimento do sentimento e da felicidade de seus componentes, bem como instaurando a desigualdade entre marido e mulher, em notória discriminação em relação à mulher e, ainda, penalizando os filhos não havidos na constância do matrimônio ao considerá-los como filhos ilegítimos.

No entanto, a transformação sofrida pelo indivíduo, desde o século XVIII, produziu modificações no pensamento e na postura social, com a mudança interior do ser humano, conforme demonstrado na obra “A invenção dos direitos humanos: uma história”, de Lynn Hunt, culminando com a gradativa aceitação e elaboração dos direitos humanos que, na contemporaneidade, bate às portas do direito de família, uma vez que não se pode mais negar a luzente existência dos direitos humanos no seio das famílias.

Prova disso é que não se enxerga em nenhuma outra seara do ordenamento jurídico pátrio um direito que seja mais humano que o direito de família. O fato é que a concepção de família evoluiu junto com a transformação social promovida pelo indivíduo, em prol da proclamação dos direitos humanos no bojo da família, o que pôde propiciar o nascimento de novos fundamentos no direito das famílias, hoje menos sujeito à regra e mais fiel ao compromisso de felicidade e de dignidade humana de seus componentes.

2.1. O conceito moderno de família

O elemento estruturante dos laços familiares é o elo afetivo que une as almas e confunde os patrimônios (DIAS, 2013, p. 10), produzindo deveres e obrigações recíprocos na sublime missão de assegurar o direito de todos à felicidade.

Sendo o ramo do direito que condiz com a vida das pessoas, seus sentimentos, enfim, com a alma do ser humano, há quem diga que o direito das famílias seja o mais humano de todos os direitos (GONÇALVES, 2012, p. 22).

O conceito de família sofreu múltiplas modificações ao longo dos últimos séculos. A família contemporânea é fruto de um processo histórico que, lentamente, se desenvolveu em prol de assegurar direitos humanos no seio das relações familiares.

Para Mariano (2009, p. 01), a evolução social trouxe alterações legislativas diretamente voltadas para a família, “Estas mudanças trouxeram à tona um novo conceito de família, denominado eudemonista, que prima pelo afeto entre os integrantes da família”.

Afinal, a família, no século XIX, era marcadamente patriarcal, privilegiando o patrimônio em detrimento do afeto, possuindo como escopo a finalidade econômica. A mulher se limitava à execução de tarefas domésticas e criação dos filhos.

A família matrimonializada do início do século passado era tutelada pelo Código Civil de 1916. Este código tinha uma visão extremamente discriminatória com relação à família. A dissolução do casamento era vetada, havia distinção entre seus membros, a discriminação, às pessoas unidas sem os laços matrimoniais e aos filhos nascidos destas uniões, era positivada. A chefia destas famílias era do marido e a esposa e os filhos possuíam posição inferior a dele. Desta forma a vontade da família se traduzia na vontade do homem que se transformava na vontade da entidade familiar. Contudo, estes poderes se restringiam à família matrimonializada, os filhos, ditos ilegítimos, não possuíam espaço na original família codificada, somente os legítimos é que faziam parte daquela unidade familiar de produção. Ainda, a indissolubilidade do casamento era regra, e a única maneira de solucionar um matrimônio que não havia dado certo era o desquite, que colocava um fim a comunhão de vida, mas não ao vínculo jurídico. (Mariano, 2009, p. 03)

Assim, com o passar do tempo, a estrutura familiar foi sofrendo gradativas modificações em prol da valorização da dignidade de seus membros e da consagração do valor jurídico do afeto no seio familiar.

Até o antigo Código Civil de 1916, a família era constituída tão somente pelo matrimônio, sendo esta a única família legítima e protegida pelo Código Civil e pelas Constituições brasileiras de 1934 até a de 1967, havendo uma discriminatória visão de qualquer outra forma de se constituir família.

Do mesmo modo, não havia a dissolução do casamento, bem como era luzente as distinções feitas entre os cônjuges, consagrando ao marido maiores direitos do que à mulher, em uma postura notadamente discriminatória.

Essa antiga concepção da família ainda trazia qualificações discriminatórias em relação aos filhos havidos de relacionamentos extramatrimoniais, taxando-os de filhos ilegítimos ou adulterinos, penalizando o próprio filho que de nada tinha culpa, sacrificando seu direito ao afeto e à igualdade com os outros filhos legítimos na vã tentativa de preservar o casamento.

Por sua vez, o advento do Código Civil de 2002, a princípio, não produziu significativas alterações no ordenamento jurídico pátrio no que concerne à humanização do direito das famílias, pois não guardava consonância com os princípios constitucionais trazidos pela Carta Magna de 1988, senão vejamos.

O Novo Código Civil de 2002, que entrou em vigor no dia 11 de janeiro de 2003, e que teve seu projeto original traçado de 1969-1975 (antes da lei do divórcio de 1977), como estava em desacerto com a Constituição de 1988 que privilegia a dignidade da pessoa humana, foi submetido a inúmeras mudanças, assim nas palavras de DIAS: “o novo código, embora bem vindo, chegou velho”. (MARIANO, 2009, p. 04)

Sendo assim, as normas de direito das famílias estampadas pelo Código Civil de 2002, desde logo, tiveram que ser interpretadas sob a ótica dos princípios constitucionais, através da chamada “filtragem constitucional”, aplicando-se os princípios constitucionais da família à subsunção das normas de direito civil, fenômeno esse que produziu uma verdadeira “oxigenação” do direito das famílias.

A evolução pela qual passou o homem e, consequentemente, a família, culminou em profundas alterações legislativas e jurisprudenciais. Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 acabou com séculos de sofrimento e discriminação ao instaurar a igualdade entre homem e mulher e a igualdade entre os filhos, havidos ou não do casamento, bem como reconhecendo como entidade familiar a união estável entre o homem e à mulher.

A evolução constitucional também alcançou a sociedade e a família. A constitucionalidade conduziu o país do Estado Liberal para o Social e esta realidade surgiu com a Constituição Federal de 1988. O sistema jurídico estabeleceu regramentos segundo a realidade social e esta alcançou diretamente o núcleo familiar, regulamentando a possibilidade de novas concepções de família, instaurando a igualdade entre homem e mulher, ampliando o conceito de família e protegendo todos os seus integrantes (MARIANO, 2009, p.02).

Por sua vez, Lobo (2008, p. 05) acrescenta que,

O consenso, a solidariedade, o respeito à dignidade das pessoas que a integram são os fundamentos dessa imensa mudança paradigmática que inspiram o marco regulatório estampado nos artigos 226 a 230 da Constituição de 1988.

A respeito do novo olhar trazido pela Constituição à família, nas palavras de Calderón (2013, p. 347), “As alterações são de tal monta que parte considerável da doutrina prefere utilizar o termo famílias no plural, para bem destacar este novo momento. Uma das precursoras dessa opção terminológica é a professora Maria Berenice Dias”.

Com efeito, como bem elucida Dias (2013, p. 64), “O moderno enfoque dado à família pelo direito volta-se muito mais à identificação do vínculo afetivo que enlaça seus integrantes”, rompendo, assim, com uma tradição que privilegiava o núcleo em detrimento da felicidade de seus membros, em que o casamento estava acima dos interesses das pessoas.

Assim, a transformação do indivíduo e a expressiva modificação de sua postura, ocorrida desde o século XVIII, possui papel fundamental na aceitação e na elaboração dos direitos humanos, sobretudo, no seio da família, ante a indivisibilidade dos direitos humanos, concebendo a família sob um novo viés, introduzindo a afetividade ao direito das famílias como princípio fundamental de todo e qualquer lar em decorrência da introdução dos princípios constitucionais no bojo da família.

2.1.1. Uma feição contemporânea do direito das famílias

Manter vínculos afetivos é inerente à condição humana, pois “parece que as pessoas só são felizes quando têm alguém para amar” (DIAS, 2013, p. 27). O fato é que o afeto foi consagrado como requisito imprescindível para a identificação das relações familiares, pois é a presença de elementos afetivos que subtraem um relacionamento do âmbito do direito obrigacional e o conduz para o direito de família.

A família se apresenta como sendo um fenômeno biológico e social de formação espontânea e cuja estruturação ocorre através do direito, tanto que, nas palavras de Farias e Rosenvald (2010, p.2),

É certo que o ser humano nasce inserto no seio familiar – estrutura básica social – de onde se inicia a moldagem das suas potencialidades com o propósito da convivência em sociedade e de busca de sua realização pessoal.

Ainda, Dias (2013, p. 27), citando Hironaka, aduz que,

Não importa a posição que o indivíduo ocupa na família, ou qual a espécie de grupamento familiar a que ele pertence – o que importa é pertencer ao seu âmago, é estar naquele idealizado lugar onde é possível integrar sentimentos, esperanças, valores e se sentir, por isso, a caminho da realização de seu projeto de felicidade.

No mundo contemporâneo, a família deixa de ser tão somente um fato natural, em que os pares se unem por uma química biológica, e assume uma nova feição, mais arraigada em fenômenos culturais.

Para Pereira (1997, p. 35), a família se encontra tão umbilicalmente relacionada ao meio cultural e social que,

Somente após a passagem do homem da natureza para a cultura que se torna possível estruturar a família. Esta, como já se demonstrou, é uma estrutura psíquica e que possibilita ao ser humano estabelecer-se como sujeito e desenvolver relações na polis.

A própria organização da sociedade se dá em torno da estrutura familiar. Mas, “a sociedade contemporânea é marcada por relações complexas, plurais, abertas e globalizadas” (FARIAS; ROSENVALD, 2010, p. 2), de forma que a realidade se modifica, o que necessariamente acaba por refletir na família.

Para Dias (2013, p. 27), “a lei vem sempre depois do fato e procura congelar a realidade, tem um viés conservador”, mas como a sociedade é dinâmica e rapidamente se transforma, produzindo reflexos na organização da família, “a família juridicamente regulada nunca consegue corresponder à família natural, que preexiste ao Estado e está acima do direito”.

Porém, ainda segundo o escólio da aludida autora, faz-se imprescindível “adequar a justiça à vida e não engessar a vida dentro de normas jurídicas, muitas vezes editadas olhando para o passado na tentativa de reprimir o exercício da liberdade” (DIAS, 2013, p. 11).

No dizer de Pereira (2012, p. 23), “O Direito de Família é um dos ramos do Direito que mais sofreu e vem sofrendo alterações no último século, em todo o mundo ocidental”. Isso, porque, em nossa contemporaneidade o Direito Civil se voltou à valorização da pessoa, abandonando sua finalidade patrimonial, colocando a pessoa e sua felicidade no coração do Direito de Família.

As principais mudanças relacionadas ao direito de família estão associadas ao declínio do patriarcalismo, o qual se originou na Revolução Industrial e na Revolução Francesa, que marcaram o advento da Idade Contemporânea (PEREIRA, 2004, p. 12).

Com a derrocada do patriarcalismo, surge o movimento feminista na década de 60, no século XX, trazendo à mulher a condição de sujeito de direitos, abalando a estrutura e a organização da família (PEREIRA, 2004, p.12). Todas as mudanças na estrutura da organização familiar tiveram no declínio do patriarcalismo um fruto de uma evolução histórica iniciada há muitos séculos. Nesse sentido, Perrot (1993, p. 78) assevera que,

Ele está ligado, em particular, ao desenvolvimento do individualismo moderno no século XIX. Um imenso desejo de felicidade, essa felicidade que o revolucionário Saint-Just considerava uma ideia nova na Europa – ser a gente mesmo, escolher sua atividade, sua profissão, seus amores, sua vida, apoderou-se de cada um. Especialmente das categorias mais dominadas da sociedade – os operários, por exemplo – e da família: os jovens, as mulheres.

E as transformações não pararam por ai, ocorreram concomitantemente às transformações sofridas pelo meio social, o qual produziu reflexos nas relações familiares.

Portanto, a feição da família passou por transformações juntamente com o meio social, não sendo possível fixar um modelo familiar homogêneo ao longo da história, sendo imprescindível compreender a família de acordo com os movimentos que influenciaram as relações sociais ao longo do tempo e, principalmente, os fenômenos que produziram o advento dos direitos humanos, os quais possuem presença fundamental na estrutura familiar, berço de afeto e respeito.

Para Farias e Rosenvald (2010, p.3), mencionando a historiadora francesa Perrot, “a história da família é longa, não linear, feita de rupturas sucessivas”, e partilhando do mesmo entendimento, Bilac (2000, p. 32) reforça que, “a variabilidade histórica da instituição família desafia qualquer conceito geral”.

Entre as inúmeras transformações pela quais passa a contemporaneidade, nenhuma delas se afigura mais significativa, nem sentida de maneira tão intensa, quanto aquelas que se desenvolvem no seio da família, no casamento e na afetividade das pessoas. Nesse sentido Farias (2010, p. 03) destaca que,

A pluralidade, dinâmica e complexidade dos movimentos sociais (multifacetários) contemporâneos trazem consigo, por óbvio, a necessidade de renovação dos modelos familiares até então existentes. Os casamentos, divórcios, recasamentos, adoções, inseminações artificiais, fertilização in vitro, clonagem, etc., impõem especulações sobre o surgimento de novos status familiares, novos papéis, novas relações sociais, jurídicas e afetivas.

O mundo contemporâneo pós moderno se vê diante de descobertas científicas sem precedentes que propiciaram novas maneiras de constituir família. Enfim, o direito de família abre espaço a um novo direito das famílias, não sendo mais esta constituída somente pelo matrimônio, tendo ocorrido um alargamento conceitual levado a efeito pela própria Constituição Federal, que abarcou no conceito de entidade familiar outras formas de convívio entre pessoas.

Como muito bem lembra o jurista Fachin (2003, p. 327):

Os fatos acabam se impondo perante o Direito e a realidade acaba desmentindo esses mesmos códigos, mudanças e circunstâncias mais recentes que têm contribuído para dissolver a ‘névoa da hipocrisia’ que encobre a negação de efeitos jurídicos. Tais transformações decorrem, dentre outras razões, da alteração da razão de ser das relações familiares, que passam agora a dar origem a um berço de afeto, solidariedade e mútua constituição de uma história em comum.

A família, antes enxergada sob o viés do modelo patriarcal, hierarquizado e matrimonializada, admitia o sacrifício da felicidade de seus membros em nome da manutenção dos laços do casamento. Mais ainda, a família possuía como finalidade não a realização do projeto de felicidade de seus membros, mas sim a formação de patrimônio, daí o motivo de que os casamentos eram arranjados e pactuados pelos pais dos nubentes, pouco se importando os laços afetivos.

No entanto, a sociedade avançou, entraram em vigor novos valores, ganhando destaque a proteção da pessoa humana, de forma que “ruiu o império do ter, sobressaindo a tutela do ser” (CHAVES; ROSENVALD, 2010, p. 4).

Desta feita, a sociedade contemporânea, fruto de um processo histórico que caminhou à luz da crescente valorização dos direitos humanos, rompeu com a antiga concepção da família, delineando os anseios de indivíduos que desejavam valorizar sua dignidade e sua felicidade.

Os novos valores que inspiraram o meio social impuseram uma família mais humana, descentralizada, em que os membros passam a ter mais relevância que o núcleo, e em que homem e mulher possuem papéis iguais, não sendo mais protegido apenas o matrimônio, mas também outras entidades também suscetíveis de formar família e, sobretudo, em que o princípio de afetividade é erigido a valor jurídico fundamental. Enfim, a finalidade da família passa ser a concretude da felicidade de seus membros, da afetividade e da solidariedade recíproca entre eles, em prol do progresso humano.

Nesse sentido, Cunha, mencionado por Pereira (2004, p. 13), aduz que a família contemporânea, além de ser plural, se encontra em contínuo desenvolvimento em prol da superação de valores e empecilhos antigos.

Não se pode dizer em que direção, mas certamente na direção contrária de uma história de infelicidades. A economia do desejo pode até ser questionável em sua sede incontornável de prazeres imediatos. Mas talvez seja melhor apostar que homens e mulheres amadurecem na procura, do que aceitar sentimentos fenecidos como destino inevitável.

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Com o declínio do patriarcalismo, houve a valorização das mulheres como sendo sujeitos de direitos e de desejos, ruindo a resignação história das mulheres e a tradicional indissolubilidade do casamento, deixando a família de ser essencialmente um núcleo econômico e de reprodução, tendo, finalmente, sido aprovada no Brasil, em 1977, apesar das forças religiosas, a Lei do Divórcio.

Assim, os casais já não precisavam permanecer casados a qualquer preço. Do mesmo modo, compreendeu-se que os filhos de pais separados não devem ser discriminados e nem são infelizes por isso, pois os filhos terão felicidade na medida em que seus pais também forem felizes.

Outrossim, com o advento da Constituição Federal consagrou-se princípios fundamentais para o ordenamento jurídico brasileiro, consolidando toda a evolução do Direito de Família, rompendo definitivamente com as velhas concepções. A esse respeito Dias (2013, p. 70), esclarece que,

Desde a Constituição Federal, as estruturas familiares adquiriram novos contornos. Nas codificações anteriores, somente o casamento merecia reconhecimento e proteção. Os demais vínculos familiares eram condenados à invisibilidade. A partir do momento em que as uniões matrimonializadas deixaram de ser reconhecidas como a única base da sociedade, aumentou o espectro da família. O princípio do pluralismo das entidades familiares é encarado como o reconhecimento pelo Estado da existência de várias possibilidades de arranjos familiares.

Com efeito, a família apresenta sua evolução associada ao próprio avanço do homem e da sociedade, se modificando de acordo com as novas conquistas da humanidade e descobertas científicas, não sendo, portanto, admissível, que esteja submetida a ideias estáticas, presas a valores pertencentes a um passado distante, nem a suposições incertas de um futuro remoto, vez que se trata de uma realidade viva, adaptada aos valores vigentes (CHAVES; ROSENVALD, 2010, p.4).

Perfilhando do mesmo entendimento, Hironaka (2000, p. 17), assevera que a família é uma entidade “ancestral como a história, interligada com os rumos e desvios da história, mutável na exata medida em que mudam as estruturas e a arquitetura da própria história através dos tempos”.

Todas as mudanças sofridas pela família no último milênio abrem espaço para uma família contemporânea, suscetível às influências trazidas pelo meio social, pois para Fachin (1999, p. 11),

É inegável que a família, como realidade sociológica, apresenta, na sua evolução história, desde a família patriarcal romana até a família nuclear da sociedade industrial contemporânea, íntima ligação com as transformações operadas nos fenômenos sociais.

Impõe-se, portanto, delinear uma nova feição para a família, não apenas compatível com as transformações da pós-modernidade, mas, igualmente, ajustada aos ideais de coerência filosófica da vida humana (FARIAS, 2010, p.4) que busca, primordialmente, a realização das pessoas humanas que compõem um determinado núcleo familiar, o que somente pode ser alcançado com a consideração da presença dos direitos humanos nos laços familiares.

Com efeito, sendo a família composta por seres humanos, logicamente, com a evolução do pensamento e da filosofia empreendida pelo homem, também a organização das entidades familiares serão inexoravelmente abaladas, e a maior contribuição oferecida pela transformação social do indivíduo no último milênio para a família, sem dúvidas, foi a evolução dos direitos humanos no seio da entidade familiar, o que propiciou uma nova roupagem à família, mais fiel ao compromisso de satisfação pessoal de seus membros e busca da felicidade.

2.1.2. Abandono afetivo no direito de família brasileiro: realidade social e reinvenção da família

A apreciação de casos de abandono afetivo paternal no seio da família contemporânea “põe em relevo uma análise sistemática, considerando princípios e regras constitucionais, dispositivos legais dos diversos ramos do direito civil, valores implícitos e outras influentes questões de hermenêutica e sistema jurídico” (CALDERÓN, 2013,p. 333).

Um Poder Judiciário que não estivesse em harmonia com a realidade social da contemporaneidade e com o direito das famílias oxigenado com a irradiação dos princípios constitucionais, não poderia responder a contento o ensejo da sociedade no momento da apreciação do caso concreto de abandono afetivo trazido à baila pelo recente e inovador julgado do Superior Tribunal de Justiça.

Isso porque, o ordenamento jurídico pátrio se encontra mais compromissado com a realização pessoal dos membros da família e com sua dignidade, e “uma leitura estritamente dogmática e legalista das categorias da responsabilidade civil e dos institutos do direito de família, poderia afastar, a priori, a possibilidade de o Poder Judiciário responder à questão de fundo do referido caso.” (CALDERÓN, 2013, p. 334).

Muitos casos precedentes e análogos que foram levados à apreciação do Poder Judiciário “tiveram respostas que esbarravam nas condições da ação ou em outros óbices formais levantados abstratamente” (CALDERÓN, 2013, p. 334), como o julgado do STJ proferido no REsp. 757.411/MG, em que se entendeu que o abandono afetivo parental não merecia reparação pecuniária porque “a indenização moral pressupõe a prática de ato ilícito”, sendo o dano afetivo “incapaz de reparação pecuniária” (STJ, Rel. Min. Fernando Gonçalves, j. em 29.11.2005, DJ 27.03.2006). Isso porque,

Para compreensão do litígio envolvido no caso ora em análise, há que se reiterar a necessidade de uma interpretação das diversas categorias jurídicas condizentes com o tempo presente, sempre com atenção à realidade que se está a tutelar e, quando necessário, com observância da força construtiva dos fatos sociais, única forma de se enfrentar adequadamente as questões trazidas pelos casos complexos. (CALDERÓN, 2013, p. 334)

Sendo assim, é inegável que as profundas modificações pelas quais passou o direito das famílias nos últimos tempos demonstram uma luzente mutação das estruturas familiares, o que conduziu ao advento da verdadeira família do afeto solidário.

Trata-se da passagem da concepção institucionalista de família, cuja dimensão funcional conduzia à conformação de modelos autoritários e centrados na estabilidade do ente familiar para uma família em que prevalecem as aspirações coexistenciais, tendo como motivo o afeto. (FACHIN in CALDERÓN, 2013, prefácio)

Desta feita, a família passou a ser enxergada na contemporaneidade como ninho de afeto e solidariedade, em que se conjugam as inspirações e conquistas pessoais, buscando a concretização da felicidade de seus membros, rompendo com um passado aprisionado em convenções sociais e a formalidades.

2.1.3. A transformação social produzida pelo indivíduo

Na obra “A invenção dos direitos humanos: uma história”, de Lynn Hunt (2009), resta luzente o potencial de transformação social que o indivíduo é capaz, sendo sobejamente ilustrado como a contribuição do indivíduo foi fundamental para o nascimento e a evolução dos direitos humanos na sociedade contemporânea pós-moderna.

Na obra em apreço, a autora presenteia o leitor com a história da consagração e do reconhecimento dos direitos humanos, elucidando que o nascimento dos direitos humanos deve-se à gradativa transformação interior do indivíduo ao longo da história, o que ensejou a mudança de pensamento, de postura social, da cultura e da política nos diversos momentos experimentados pela evolução social, progresso este que surtiu efeitos na família, consagrando os direitos humanos em seus laços afetivos.

Portanto, de maneira inédita, a autora inova ao demonstrar a participação do indivíduo como verdadeiro protagonista nas transformações sociais experimentadas ao longo dos séculos que influenciaram a mudança de opinião da sociedade e o advento de um novo paradigma que valoriza a pessoa do ser humano como detentor de dignidade e de direitos intrínsecos à pessoa humana, fomentando o nascimento e o fortalecimento dos direitos humanos ao longo da história.

Os direitos humanos só puderam florescer quando as pessoas passaram a pensar nos outros como seus iguais, como seus semelhantes, e aprenderam a fazê-lo experimentando a identificação e a compaixão pelo próximo.

Assim, ao longo do tempo surgiu na sociedade um novo paradigma que intensifica os direitos do indivíduo, como foi a crescente aprovação da possibilidade de divórcio legal, assegurando a liberdade de afeição e a primordial busca pela felicidade.

Assim, entre 1700 e 1857, o divórcio era limitado a homens aristocratas, uma vez que os motivos exigidos tornavam quase impossível a obtenção do divórcio para as mulheres.

Como a própria obra relata, em meados dos anos de 1771 e 1772, ao se manifestar sobre um caso concreto de divórcio, Thomas Jefferson relacionava claramente o divórcio aos direitos naturais, ao dizer que a possibilidade de dissolução do matrimônio pelo divórcio devolveria “às mulheres o seu direito natural de igualdade” (HUNT, 2009, p. 64).

Além disso, já se assegurava que a previsão legal do divórcio protegeria a “liberdade de afeição”, também considerada desde àquele época como sendo um direito natural.

Dessa maneira, a “busca da felicidade” consagrada na Declaração da Independência incluiria o direito ao divórcio, porque “a finalidade do casamento é a reprodução e a felicidade”, o que somente pode ser alcançado com um casamento que seja berço de afeto e de respeito aos direitos da pessoa humana, por isso, aduz a autora que “o direito à busca da felicidade, requeria, portanto, o divórcio” (HUNT, 2009, p. 64).

Assim, pode-se afirmar que com o reconhecimento de que a busca pela felicidade se sobressai ao valor da mantença do casamento a qualquer preço, começou-se a enxergar a família sob a perspectiva de seus membros, como legítimos detentores de direitos e de dignidade, o que culminaria mais tarde com o reconhecimento do afeto como valor jurídico no seio familiar, através da irradiação dos princípios constitucionais sobre o direito das famílias, sobretudo, do princípio da afetividade.

Assim, consagrando a família como elo de afeto e reconhecendo a presença dos direitos humanos em seu seio, Hunt (2009, p. 64) destaca que a Declaração das Nações Unidas já dispunha que, “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”.

A autora salienta, ainda, a importância do direito natural para o nascimento dos direitos humanos, sobretudo, com a influência de Grotius, Pufendorf, Burlamaqui, Locke e Hobbes, os quais tiveram notável influência em dois momentos imprescindíveis à história dos direitos humanos, quais sejam, a Declaração de Independência dos Estados Unidos (em 1776) e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (em 1789).

Nas mencionadas declarações se afirmavam que os direitos humanos são verdades sagradas e inegáveis, em decorrência dos quais todos os homens são criados iguais e independentes, derivando direitos inalienáveis, dentre os quais se inserem a preservação da vida, a liberdade e a busca da felicidade, bem como eliminando todo o privilégio baseado no nascimento, o que foi fundamento para a atual igualdade entre irmãos consagrada pela Constituição Federal de 1988 que não mais atribui a nomeação de filho ilegítimo ao filho que não é concebido na constância do matrimônio.

Mas o que se deve questionar é que o ordenamento jurídico pátrio não mais aceita e repreende com total veemência qualquer discriminação entre os filhos através de nomenclaturas pejorativas, mas e o que dizer dos filhos que, em que pese não recebam mais a denominação “ilegítimos”, são criados completamente abandonados afetivamente pelo genitor, o qual faz notória distinção afetiva entre os filhos havidos na constância de seu casamento e os filhos havidos de relações extraconjugais?.

O fato é que, sendo os direitos humanos considerados como direitos naturais, são direitos inerentes à condição humana, ou seja, desde que o homem existe, existem também os direitos humanos, já que é impensável que o homem pudesse existir sem direitos humanos.

No entanto, as primeiras declarações que protegiam os direitos humanos não possuíam a qualidade de normas jurídicas, tratando-se apenas de intenções e não passando de meras normas programáticas, não sendo suficientes para transformar a ordem social vigente. Além disso, eram marcadas, ainda, por desigualdades sociais, pois ao mesmo tempo em que consagravam os direitos humanos como sendo universais, excluíam as mulheres. Mas, felizmente, uma evolução social posterior consagrou a igualdade entre homens e mulheres, inclusive nos laços afetivos e familiares, conferindo-lhes os mesmos direitos e deveres no matrimônio, como a educação e cuidados com os filhos.

Ainda, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 introduziu a concepção contemporânea da indivisibilidade dos direitos humanos, de modo que, “entende-se hoje que os chamados direitos humanos de primeira, de segunda ou de terceira gerações são complementares uns aos outros” (PESSOA, 2006, p. 32).

Assim, os direitos humanos são naturais (inerentes aos seres humanos) e universais (aplicáveis por toda parte), de maneira que “o princípio da indivisibilidade, em conjunto com o de universalidade, é o eixo de sistema protetor dos direitos humanos” (PESSOA, 2006, p. 32).

Portanto, os direitos humanos não podem ser hierarquizados, nem fragmentados, nem tampouco excluídos de qualquer seara social ou jurídica, razão pela qual os direitos humanos no seio da família possuem aplicabilidade plena, valorizando o afeto em detrimento do patrimônio, igualando homens e mulheres em direitos e deveres em relação à prole, eliminando qualquer discriminação entre filhos havidos na constância do casamento ou não, bem como erigindo o escopo da família como cenário de busca da felicidade, de respeito e de realização pessoal.

Atualmente, é recorrente o reconhecimento da incidência dos direitos fundamentais nas relações interprivadas, sendo inescapável essa percepção quando da busca de respostas para os casos difíceis de direito de família – como podem ser classificados os de abandono afetivo (CALDERÓN, 2013, p. 342).

A modificação da consciência de cada indivíduo pôde fomentar a compaixão e a valorização do próximo como meio para o desenvolvimento dos direitos humanos, sobretudo no seio da família, pois para Gonçalves (2012, p. 23), o direito de família é o mais humano dos direitos.

Para Dias (2013, p. 11), “É necessário adequar a justiça à vida e não engessar a vida dentro de normas jurídicas, muitas vezes editadas olhando para o passado na tentativa de reprimir o livre exercício da liberdade”.

Comunga do mesmo entendimento o texto “Que é esclarecimento”, de Immanuel Kant, em que o leitor é convidado a pensar por si próprio, como agente transformador de sua própria realidade, pontencialidade esta que se observa no seio familiar no momento em que uma classe minoritária rompe com o modelo tradicional de família ao pleitear, por exemplo, a proteção estatal da união homoafetiva como entidade familiar, o que, após anos de luta, acaba sendo concretizado no ordenamento jurídico, fruto de uma primitiva transformação individual que produziu reflexos na sociedade rumo à gradativa consagração dos direitos humanos no seio das mais diversas estruturas familiares.

2.2. A importância da família e o novo direito da filiação como fruto da inserção dos direitos humanos no seio familiar

Para Comparato (2010, p. 13), todos os seres humanos devem ser igualmente respeitados pelos simples fato de sua humanidade, pois

Todos os seres humanos, apesar das inúmeras diferenças biológicas e culturais que os distinguem entre si, merecem igual respeito, como únicos capazes de amar, descobrir a verdade e criar a beleza (COMPARATO, 2010, p. 24).

Vislumbra-se como sendo imprescindível a existência dos direitos humanos no seio da família para assegurar direitos fundamentais do homem, sobretudo, o princípio da dignidade da pessoa humana, vértice orientador de todo o ordenamento jurídico pátrio. A esse respeito, Pereira (2004, p. 14), é enfático:

As concepções de inclusão e cidadania instalaram-se definitivamente no Direito de Família. Assim, a maioria das grandes discussões deste ramo do Direito tornou-se uma questão de Direitos Humanos, pois a elas está ligada a ideia de inclusão ou exclusão na ordem social e jurídica, enfim, a palavra de ordem da contemporaneidade, ou seja, cidadania.

O ser humano nasce no seio familiar, e é na família que forma sua personalidade e desenvolve suas potencialidades para conviver em sociedade e para buscar sua realização pessoal. Também, é na família que acontecem os fatos mais importantes da vida do ser humano, desde seu nascimento até a morte, além da vivência de problemas e sucessos (CHAVES; ROSENVALD, 2010, p. 12).

Por isso, para Barros (2003, p. 01),

O direito de família é o mais humano dos direitos. No entanto, apesar disso, ele não tem sido correlacionado com os direitos humanos. Para essa omissão deve haver uma justificação. Algo dificulta enxergar como direitos humanos os direitos subjetivos relativos à família. É preciso remover esse empecilho.

Vale lembrar que ao se falar de direitos humanos, logo de vem à mente o direito à vida. Contudo, não se pode pensar na vida humana sem pensar na família, que concebe a vida e a embala num lar que deve ser mantido por elos de afeto.

Impende consignar que os direitos humanos no seio da família decorrem do princípio da solidariedade familiar, que compreende a fraternidade e a reciprocidade (DIAS, 2013, p. 69). Nesse sentido, para Barros (2003, p. 06), “A humanidade se constrói pela força maior da solidariedade humana, em cuja origem está a solidariedade familiar, fomentada pelo afeto culminado no amor”. E continua, “se a família é a matriz, a solidariedade é a motriz dos direitos humanos”.

O direito à família não pode ser negado a nenhum ser humano, pois sendo um direito humano é corolário da própria existência do homem, e muitos dos direitos humanos se exercem no seio da família, vez que a família é o lar dos direitos humanos. Por isso, para Barros (2003, p. 06),

O direito fundamental à família e os seus direitos operacionais devem ser garantidos sem discriminação alguma, a fim de que o direito de família seja não só o mais humano dos direitos, como também o mais humano dos direitos humanos.

No Direito de Família contemporâneo, a família, além de ser plural, está sem constante transformação, desenvolvendo-se juntamente com o meio social, superando valores e impasses antigos. Nas palavras de Cunha, mencionado por Pereira (2004, p. 13),

Não se pode dizer em que direção, mas certamente na direção contrária de uma história de infelicidades. A economia do desejo pode até ser questionável em sua sede incontornável de prazeres imediatos. Mas talvez seja melhor apostar que homens e mulheres amadurecem na procura, do que aceitar sentimentos fenecidos como destino inevitável.

A consagração pela Carta Magna de princípios fundamentais na família, juntamente com a evolução do meio social, tem instigado e impulsionado o aparecimento de uma nova legislação no direito de família.

A nova estrutura da família passou a se vincular e a se manter por elos afetivos, em homenagem à valorização do ser humano e a da dignidade da pessoa humana, que apenas são possíveis com o respeito aos direitos humanos no seio da família. Sobre essa transformação na finalidade da família, Lôbo (2004, p. 155) assim se pronuncia:

A realização pessoal da afetividade e da dignidade humana, no ambiente de convivência e solidariedade, é a função básica da família de nossa época. Suas antigas funções econômica, política, religiosa e procracional feneceram, desapareceram, ou desempenharam papel secundário. Até mesmo a função procracional, com a secularização crescente do direito de família e a primazia atribuída ao afeto, deixou de ser sua finalidade precípua.

O fato é que ainda que o Estado tenha o dever de regular a vida em sociedade e as relações entre as pessoas, não pode deixar de consagrar o direito à liberdade e assegurar o direito à vida, mas vida de maneira adjetivada: vida digna, vida feliz (DIAS, 2013, p. 25). E principalmente a família necessita ser permeada por laços de afeto e elos de solidariedade para que seus membros atinjam sua finalidade, qual seja, a de concretização da felicidade e da dignidade de seus membros. Daí o surgimento de normas que não criam deveres, mas simplesmente descrevem valores, que são os direitos humanos, os quais se tornaram “a espinha dorsal da produção normativa contemporânea” (DIAS, 2013, p. 26).

Para Dias (2013, p. 66), “O direito das famílias está umbilicalmente ligado aos direitos humanos, que têm por base o princípio da dignidade da pessoa humana”, o qual, diante da constitucionalização do direito de família se tornou o princípio mais universal de todos os princípios, sendo o macroprincípio que se irradia sobre todos os demais, irradiando efeitos sobre todas as relações afetivas no seio familiar (SARMENTO, 2003, p. 60).

Portanto, afigura-se imprescindível o reconhecimento de que “é somente na família, ou através dela, que um humano pode tornar-se sujeito e humanizar-se”. Afinal, diversos direitos humanos somente serão respeitados se no seio familiar forem também protegidos, não se podendo, pois, afastar o lar familiar da incidência dos direitos humanos, sendo a família a base da sociedade, o começo, o meio e o fim de todo ser humano e, consequentemente, o berço de todo e qualquer direito humano.

A família representa uma construção cultural que em nossa contemporaneidade constitui o núcleo essencial da sociedade, uma vez que a própria organização social ocorre em torno da estrutura familiar.

Contudo, a família como se apresenta hoje não é mais a mesma tal como concebida historicamente pelo Direito até 1988, isto é, patrimonializada, hierarquizada e matrimonializada. Afinal, um novo olhar sobre o direito nasceu da Constituição Federal de 1988, a qual representa uma verdadeira carta de princípios que inovou o ordenamento jurídico com direitos e garantias fundamentais, promovendo uma constitucionalização do direito de família e uma mudança na maneira de se interpretar a lei.

No entanto, é imprescindível reconhecer que muitas das alterações levadas a efeito são fruto da presença dos direitos humanos no âmbito da família, o que ensejou uma maior proteção da esfera dos direitos merecedores de tutela.

Até o Código Civil de 1916, havia apenas um único modo de constituição da família, que era pelo casamento. A família até então tinha um viés patriarcal, e o ordenamento jurídico refletia essa realidade. Somente era reconhecida a família que detinha laços do matrimônio e o casamento era indissolúvel.

Contudo, com o advento da Carta Magna de 1988, o legislador constituinte levou a efeito um alargamento conceitual de família, diante da nova realidade que se impôs, acrescentando no conceito de entidade familiar diversas outras formas de convívio entre as pessoas, de maneira que a família não é mais constituída somente pelo casamento, sendo também reconhecida como família a união estável entre um homem e uma mulher, as relações monoparentais, de um dos pais com seus filhos, além da família homoafetiva, havendo, portanto, um pluralismo das relações familiares.

Do mesmo modo, a Constituição Federal proibiu designações discriminatórias relativas à filiação, consagrando a igualdade entre filhos havidos na constância ou não do matrimônio, e proibindo a classificação absolutamente cruel a que os filhos havidos de relações extraconjungais eram submetidos, na vã tentativa de valorizar e manter o casamento, penalizando os filhos considerados ilegítimos e que de nada tinham culpa, em um notório privilégio do núcleo em detrimento da felicidade de seus membros.

Assim, rompeu-se com um passado em que a manutenção do casamento merecia maior proteção do Estado do que a dignidade humana de seus membros. De maneira que, gradativamente, a mudança da realidade vivida pela sociedade rumo à valorização da pessoa humana, produziu reflexos no ordenamento jurídico-familiar.

Sobretudo, uma inovação legislativa nascida com a Constituição Federal que produziu profundas modificações no direito das famílias, foi o advento do princípio da afetividade, a qual transformou de maneira tão especial o modo de se enxergar e de se conceber os laços familiares, que Dias (2013, p. 74) chega a dizer que “Talvez nada mais seja necessário para evidenciar que o princípio norteador do direito das famílias é o princípio da afetividade”.

Na obra “A invenção dos direitos humanos: uma história”, de Lynn Hunt (2009), afigura-se luzente o potencial de transformação social empreendido pelo indivíduo ao longo da história do homem, de maneira que a mudança interior do indivíduo foi fundamental para o nascimento e a evolução dos direitos humanos na sociedade contemporânea e, consequentemente, no seio da família, a qual representa o berço da sociedade.

Sendo assim, a transformação interior do indivíduo ensejou a mudança de pensamento, de postura social, da cultura e da política nos diversos momentos experimentados pela evolução social, progresso este que surtiu efeitos na família, consagrando o valor jurídico do afeto em seu seio.

O novo paradigma, fruto da transformação social levada a efeito pelo indivíduo, valoriza a pessoa humana como sujeito de direitos e de desejos, e, sobretudo, como portadora de direitos inerentes à sua condição humana, erigindo sua dignidade e sua busca à felicidade como direitos humanos inerentes à pessoa humana.

Assim, houve uma verdadeira reformulação do conceito de família, em que seus ideais voltaram-se à proteção da pessoa humana, de modo que a família passou a ser um instrumento para a realização afetiva e pessoal de seus membros.

A própria obra de Lynn Hunt deixa evidente que ao longo do tempo surgiu na sociedade um novo paradigma que intensifica os direitos do indivíduo, como foi a aprovação da possibilidade de divórcio legal, intensificando a liberdade de afeição e a primordial busca pela felicidade.

Dessa forma, não é possível mais pensar em direito de família dissociado de direitos humanos, uma vez que é em virtude dos direitos humanos que o direito de família passou a valorizar o afeto em detrimento do patrimônio, igualou os direitos e deveres entre homens e mulheres, eliminou qualquer discriminação entre filhos havidos na constância do casamento ou não, bem como erigiu como vértice orientador das relações afetivas o princípio da dignidade da pessoa humana e o direito da busca pela felicidade e realização pessoal de seus membros, promovendo uma ruptura com um passo de infelicidades e tornando-se mais fiel aos ideais de pluralismo, solidarismo, democracia, igualdade, liberdade e humanismo, voltando-se à proteção da pessoa humana, garantindo-lhe vida digna e feliz.

2.2.1. A criança no novo direito de família: os efeitos do divórcio e da ausência paterna

Por muitos anos, o direito das famílias se silenciou diante de casos concretos em que o genitor abandonava afetivamente sua prole, notadamente porque diante da omissão legislativa a esse respeito, muitos magistrados deixavam se reconhecer o afeto como valor jurídico diante da inexistência de previsão legal expressa a esse respeito, o que acabava fatalmente por presentear a irresponsabilidade paterna.

Assim, filhos de casamentos desfeitos, de uniões mal sucedidas, ou mesmo de casais que nem chegavam a se casar, permaneciam relegados em segundo plano na vida do genitor, o qual, por vezes, acabava se atendo à obrigação legal de fornecer alimentos, em geral não porque se preocupavam com seus filhos, mas sobretudo para evitarem os efeitos do descumprimento de uma obrigação alimentar, o que poderia lhe render até a prisão.

Desta feita, a criança rejeitada afetivamente crescia sem uma resposta do ordenamento jurídico pátrio. Alimentos, vestuário, assistência médica, medicamentos, educação, todos os bens matérias podiam ser comprados pela prestação alimentar paga pelo genitor, mas será que somente isso seria suficiente para o crescimento moral e psicológico da criança? Seria possível na contemporaneidade conceber uma relação paterno-filial sem o dever de oferecer afeto?

Nas palavras de Villela (1994, p. 645),

As relações de família, formais ou informais, indígenas ou exóticas, ontem como hoje, por mais complexas que se apresentem, nutrem-se, todas elas, de substância triviais e ilimitadamente disponíveis a quem delas queira tomar afeto, perdão, solidariedade, paciência, devotamento, transigência, enfim, tudo aquilo que, de um modo ou de outro, possa ser reconduzido à arte e à virtude do viver em comum. A teoria e a prática das instituições de família dependem, em última análise, de nossa competência em dar e receber amor. (grifo nosso)

Para Souza (2013, p. 4), a partir do século XX, a sociedade passou por profundas transformações, sejam econômicas, culturais, religiosas e de valores, as quais refletiram de forma luzente na família, a qual teve que se reinventar diante das modificações sociais.

A mulher, inserindo-se no mercado de trabalho, integrou os números da população economicamente ativa e começou a desempenhar papel de trabalhadora e de mãe, exercendo a atividade profissional e doméstica ao mesmo tempo – a dupla – jornada. O papel do homem, que até então era visto como único provedor do lar, sofreu significativas mudanças, já que o provento passou a ser dividido entre o casal e, com o tempo, outras funções do lar foram divididas também e homem e mulher passaram a dividir a autoridade familiar. Esta mudança nos papéis fez com que a figura paterna passasse a ser vista como um elemento mais presente no desenvolvimento da personalidade da criança o que possibilitou ao pai uma nova função na família. Interferindo diretamente na formação de identidade dos filhos e passando a ser valorizado o afeto imprescindível para a formação da criança (SOUZA, 2013, p. 4).

Vale consignar que “A figura paterna sempre teve importância no desenvolvimento da criança, mesmo antes da inserção da mulher no mercado de trabalho” (SOUZA, 2013, p. 4), sendo o afeto imprescindível para a formação do ser humano. Mas, o que evidencia-se é que houve uma luzente valorização do afeto paterno, estando erigido até mesmo a princípio constitucional, de modo que no atual direito das famílias a guarda da criança pode até mesmo ser conferida ao genitor, o que há tempos atrás seria inimaginável, pois a guarda somente era atribuída à mãe.

A figura paterna é um agente importante de socialização para os filhos e sua ausência, principalmente afetiva, por vezes acarreta danos irreparáveis impossibilitando-os, em alguns casos, inclusive para o exercício do amor, visto que se tornam indivíduos hostis e deprimidos condenados eternamente ao desafeto. (SOUZA, 2013, p. 13)

O fato é que a ciência já comprovou cabalmente que a ausência de afeto e o consequente abandono sentimental podem trazer consequências para a formação moral da criança, bem como pode culminar em transtornos psicológicos e patologias. A esse respeito, aduz Souza (2013, p. 4) que,

Danos possíveis causados pela ausência de afeto vão de sentimentos de baixa autoestima, processos de inadequação social, agressividade, criminalidade, insegurança, sentimento de menos valia e, até, comportamos autodestrutivos e sociopatas.

Desse modo, o princípio da afetividade pode ser considerado como o fundamento dos laços familiares e, embora não esteja expressamente previsto na Carta Magna, decorre do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, o qual representa o vértice orientador de todo o ordenamento jurídico pátrio, pois “Existe uma nova concepção de família, formada por laços afetivos de carinho e de amor” (DIAS, 2007, p. 52-53).

2.3. Despatrimonialização do direito de família e a valorização do afeto

O direito das famílias na contemporaneidade valoriza o afeto em detrimento do patrimônio, erigindo a afetividade como seu fundamento basilar e como berço de solidariedade e de busca à felicidade. Nesse sentido, Matos (2008, p. 35) assevera que,

Do ponto de vista legislativo, o advento da Constituição de 1988 inaugurou uma diferenciada análise jurídica das famílias brasileiras. Uma outra concepção de família tomou corpo no ordenamento. O casamento não é mais a base única desta entidade, questionando-se a idéia da família restritamente matrimonial. Isto se constata por não mais dever a formalidade ser o foco predominante, mas sim o afeto recíproco entre os membros que a compõem redimensionando–se a valorização jurídica das famílias extramatrimoniais.

Insta consignar que, para Lôbo (2008, p. 1), “A família atual está matrizada em paradigma que explica sua função atual: a afetividade”, de modo que, “enquanto houver affectio haverá família, unida por laços de liberdade e responsabilidade, e desde que consolidada na simetria, na colaboração, na comunhão de vida”. Nas palavras de Mariano (2009, p. 05),

Modernamente, o afeto que se origina espontânea e profundamente, com significado de amizade autêntica, de reciprocidade profunda entre companheiros, vem sendo a principal motivação para o estabelecimento de uma união entre os seres humanos.

Conforme o escólio de PEREIRA (1998, p. 19),

Uma família que experimente a convivência do afeto, da liberdade, da veracidade, da responsabilidade mútua, haverá de gerar um grupo não fechado egoisticamente em si mesmo, mas sim voltado para as angústias e problemas de toda a coletividade, passo relevante à correção das injustiças sociais.

Assim, surgiu um novo olhar sobre a família, valorizando os laços de afeto entre seus membros, rompendo com um passado em que não se enxergava a família como berço de afeto e de solidariedade.

Desta feita, “Surgiu um novo nome para essa nova tendência de identificar a família pelo seu envolvimento afetivo: família eudemonista, que busca a felicidade individual vivendo processo de emancipação de seus membros” (DIAS, 2007, p. 52). E, continua a aludida autora, elucidando o que se entende por eudemonista, senão vejamos.

O eudemonismo é a doutrina que enfatiza o sentido de busca pelo sujeito de sua felicidade. A absorção do principio eudemonista pelo ordenamento altera o sentido da proteção jurídica da família, deslocando-o da instituição para o sujeito, como se interfere da primeira parte do §8° do artigo 226 da CF: o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos componentes que a integram (DIAS, 2007, p. 53).

Vislumbra-se, pois que “o afeto, que começou como um sentimento unicamente interessante para aqueles que o sentiam, passou a ter importância externa e ingressou no meio jurídico” (CARBONERA, 1998, p. 247).

Conforme Dias (2007, p. 53) traz à baila,

A possibilidade de buscar formas de realização pessoal e gratificação pessoal é a maneira que as pessoas encontram de viver, convertendo-se em seres socialmente úteis, pois ninguém mais deseja e ninguém mais pode ficar confinado a mesa familiar. A família identifica-se pela comunhão de vida, de amor e de afeto no pão de igualdade, de liberdade, de solidariedade e de responsabilidade recíproca.

Afigura-se inconteste a necessidade de se reconhecer o vínculo afetivo no seio da família e sua existência jurídica, com consequências e penalidades em caso de omissão do genitor, pois “É necessário adequar a justiça à vida e não engessar a vida dentro de normas jurídicas, muitas vezes aditadas olhando para o passado”, uma vez que “O direito das famílias lida com gente, gente dotada e sentimentos, movida por medos e inseguranças, que sofre desencantos e frustrações”, e que buscam o Poder Judiciário para serem ouvidos seus reclamos (DIAS, 2013. p. 11).

2.4. O princípio do melhor interesse do menor e a proteção integral à criança

2.4.1. Previsão legal da proteção à criança e ao adolescente

Dentre os deveres dos genitores decorrentes do pode familiar, encontra-se o dever de ter os filhos em sua companhia e de dirigir-lhes a criação e a educação (CC 1.634 I e II), sendo que esse encargo compete tanto ao pai quanto à mãe, ainda que não mantenham mais entre si laços afetivos, pois ainda quando

estabelecida a guarda unilateral, fica limitado o direito de um deles de ter os filhos em sua companhia (CC 1.632). Porém, ao genitor que não possui a guarda é assegurado o direito de visitas (CC 1.589) (DIAS, 2013, p. 469).

Diante das gradativas e profundas transformações sofridas pela sociedade que acabaram refletindo sobre a estrutura da família e sobre a forma de se enxergar os laços familiares, “houve a necessidade de uma regulamentação de normas que protegessem a identidade da criança, para tanto, a ONU criou a Declaração Universal dos Direitos das Crianças”, a qual foi aprovada em 20 de novembro de 1989, “e assinada pelo governo brasileiro, na qual foi estabelecida a proteção do afeto e a segurança moral da criança” (SOUZA, 2013, p. 05).

Por sua vez, para implantar as normas da Convenção sobre o Direito das Crianças, em 13 de julho de 1990, foi assinado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), legislação essa que “é reconhecida como uma das mais avançadas do mundo, tendo se tornado referência internacional” (SOUZA, 2013, p. 5).

O ECA determina em eu art. 4º, que é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, bem como ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Assim, vislumbra-se que afigura-se imprescindível que com absoluta prioridade a família assegure à criança o direito de convivência familiar, pois “O afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência familiar, não do sangue” (DIAS, 2013, p. 73).

Ainda, o referido diploma legal dispõe em seu art. 5º que nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, sendo punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais. De onde se pode afirmar que o ECA, assim como a Constituição Federal, proíbem de forma expressa o abandono à criança, seja material ou afetivo, uma vez que veda qualquer forma de negligência e qualquer atentado, seja por ato, ou seja por omissão (como é o caso do abandono afetivo), aos direitos fundamentais da criança.

A Constituição (CF 227) e o ECA acolheram a doutrina da proteção integral. Modo expresso, crianças e adolescentes foram colocados a salvo de toda forma de negligência. Transformaram-se em sujeitos de direito e foram contemplados com enorme número de garantias e prerrogativas. Mas os direitos de uns significam obrigações de outros. Por isso a Constituição enumera quem são os responsáveis a dar efetividade a esse leque de garantias: a família, a sociedade e o Estado (DIAS, 2013, p. 469).

O ECA prevê em seu art. 7º que, dentre os direitos fundamentais dos menores está o seu desenvolvimento sadio e harmonioso, bem como em seu art. 19. estabelece o direito de serem criados e educados no seio de suas famílias.

O conceito atual de família, centrada no afeto como elemento agregador, exige dos pais o dever de criar e educar os filhos sem lhes omitir o carinho necessário para a formação plena de sua personalidade. A grande evolução das ciências que estudam o psiquismo humano veio a escancarar a decisiva influência do contexto familiar para o desenvolvimento sadio de pessoas em formação.

O ordenamento jurídico pátrio não previu expressamente a definição de afeto em seu bojo, mas verifica-se tanto no texto constitucional, como demonstrado em linhas alhures, como no texto do ECA a proteção ao afeto no seio da família, reconhecendo-o como valor jurídico, em consagração ao próprio princípio da paternidade responsável.

Por esse princípio, há responsabilidade individual e social das pessoas do homem e da mulher que vêm a gerar, no exercício das liberdades inerentes à sexualidade e à procriação, uma nova vida humana, cuja pessoa – a criança – deve ter priorizado o seu bem-estar físico, psíquico e espiritual – com todos os direitos fundamentais reconhecidos em seu favor (GAMA, 2008, p. 77).

Nesse sentido, imprescindível mencionar o escólio de Schreiber (2012, p. 181), segundo o qual,

De outro lado, porém, deve-se observar a conduta alegadamente lesiva. Cumpre verificar se também ela é merecedora de tutela, abstratamente. Aqui, em nível muito geral, poder-se-ia falar em um interesse à liberdade do pai. O legislador, todavia, ao impor sobre o pai deveres de comportamento em face dos filhos, já estabeleceu a relação de prevalência ante tal liberdade e o interesse do menor à adequada formação de sua personalidade, determinando, em síntese, que este último interesse prevalece em relação ao ‘sustento, guarda e educação dos filhos menores’ – não já, note-se, ao amor, ao afeto, ao carinho, sentimentos pessoais subjetivos com relação aos quais a liberdade de autodeterminação do pai mantém-se prevalente à luz do tecido constitucional.

Dessa maneira, a legislação pátria prevê expressamente o dever de proteção, cuidado e amparo dos filhos pelos genitores, tanto com a prestação de bens materiais, através da obrigação alimentar, como também pela obrigação de propiciar um desenvolvimento moral e psíquico saudável aos filhos, o que somente pode ser atingido com a presença dos genitores na vida dos filhos, com o afeto e a solidariedade permeando os laços de convivência no seio familiar.

2.4.2. Abandono afetivo: uma questão pública ou privada?

Relevante questão necessita ser enfrentada no debate sobre abandono afetivo, qual seja, se os laços familiares e o afeto que permeiam o seio familiar devem ser apreciados como questões de interesse público ou como interesse privado que se insere na intimidade e no âmago da família. Para CALDERÓN (2013, p. 336),

É inegável que nesse ramo do Direito há amplo espaço para livre eleição da melhor forma de viver em família pelos particulares, restando resguardada aos participantes dessa relação a decisão sobre a melhor forma de convivência e a deliberação sobre o seu planejamento familiar.

Nas palavras de Tartuce (2012, p. 17), “É importante perquirir, nas relações familiares, a divisa entre os espaços público e privado. Por tal razão, temas como a ordem pública, a indisponibilidade de direitos e a intervenção estatal são recorrentes”, motivo pelo qual merece no presente estudo o enfrentamento desse tema para a sedimentação do conhecimento no sentido de se concluir pela interferência do poder público ou não nos laços afetivos da família.

No entanto, é imperioso ressaltar que, sob outro prisma, existem dispositivos expressos que consagram a proteção do melhor interesse do menor e a proteção integral de menores e adolescentes, como se verifica nas normas da Constituição Federal, do Código Civil, do ECA e em diversos diplomas internacionais dos quais o país é signatário.

Sendo assim, por serem considerados vulneráveis, crianças e adolescentes recebem especial proteção do Estado, ainda que estejam dentro de seus lares, no seio da família, para que só assim seja possível tutelar seus direitos legalmente consagrados.

Buscando a ponderação dos interesses contrapostos, ter-se-ia ao lado dos genitores o princípio da liberdade e da parte dos filhos o princípio da solidariedade familiar. Levando-se em conta a peculiar condição dos filhos e a responsabilidade dos pais na sua criação, educação e sustento, seria incabível valorizar a sua liberdade em detrimento da solidariedade familiar e da sua própria integridade psíquica. Ponderados, pois, os interesses contrapostos, a solidariedade familiar e a integridade psíquica são princípios que se superpõem, com a força que lhes dá a tutela constitucional, à autonomia dos genitores, que, neste caso, dela não são titulares (MORAES, 2010, p. 449).

Portanto, é possível afirmar que a intervenção do poder público em laços afetivos entre cônjuges deve ser consideravelmente menor do que a interferência estatal sob a relação paternal com um menor ou adolescente, dada sua situação de vulnerabilidade, ou seja, “a dinâmica pública ou privada nos conflitos familiares irá variar conforme a modalidade da relação envolvida” (CALDERÓN, 2013, p. 337).

A relação entre a esfera pública e a esfera privada, neste ambiente, aliás, também é diferenciada. Na conjugalidade, tal relação caracteriza-se atualmente por uma substancial aceitação das escolhas e da autonomia dos indivíduos, bem como pela renúncia à exigência e ao cumprimento coercitivo dos direitos e deveres entre os cônjuges. Na parentalidade, por outro lado, distingue-se pela ampliação, cada vez maior, das intervenções jurídicas nas relações da filiação, com vistas à proteção dos menores (MORAES, 2010, p. 447).

Por sua vez, esposando o mesmo entendimento, para Fachin (2012, p. 163) aduz que,

Propor a intervenção desmensurada do ente estatal na ambiência familiar, espaço onde deve ocorrer o livre desenvolvimento da personalidade humana, importa inevitavelmente em aceder ao cerceamento da construção dessa personalidade própria das pessoas que pretendem se realizar, em coexistencialidade, naquele espaço familiar. Mas ao mesmo tempo em que é necessária a configuração de um “Estado ausente”, permitindo que as pessoas constituam suas relações segundo uma liberdade vivida, é igualmente necessário que determinados direitos sejam tutelados pela presente intervenção do ente estatal, mormente em face daqueles que se encontram mais vulneráveis e desamparados. Nesse sentido, intervir é necessário quando verificada a potencialidade lesiva à constituição da personalidade de uma pessoa, sendo ela jurídica ou faticamente mais vulnerável devido às suas condições pessoais, o que ocorre, à guisa de exemplo, com a criança, o adolescente, o incapaz, o idoso e aqueles que sofrem com a violência familiar.

Dessa maneira, “deve-se buscar o equilíbrio entre a liberdade do espaço privado, conferida para as pessoas deliberarem como viverão em família e, de certo modo, como criarão e educarão seus filhos”, mas sempre “com o respeito aos comandos legais oriundos da esfera pública nas relações familiares, que impõem alguns limites quando envolvidas pessoas em situação de vulnerabilidade” (CALDERÓN, 2013, p. 338).

É nesse contexto que a relação paterno-filial em que ocorre o abandono afetivo deve ser pensado, pois por se tratar de crianças e adolescentes e seu relacionamento com o genitor, trata-se de laço familiar que envolve vulnerável, o que demanda uma especial proteção e cuidado do ordenamento jurídico pátrio.

Desse modo, o que empresta legitimidade à consagração da intervenção estatal na família e do reconhecimento do valor jurídico do abandono afetivo parental é o estado de vulnerabilidade dos filhos menores envolvidos em questão, pois,

Sempre que os direitos da criança e do adolescente forem violados ou mesmo estiverem sob ameaça de violação, faz-se necessária, aí sim, a pronta intervenção estatal, assegurando que essa pessoa ainda em desenvolvimento venha a ter a possibilidade concreta de construir a sua personalidade pelas suas próprias escolhas, com a garantia da sua liberdade positiva (FACHIN, 2010, p. 10).

Para Calderón (2013, p. 339), “a atuação estatal será pontual, restrita aos casos de omissão total do dever parental e que causem prejuízos efetivos à pessoa vulnerável que é objeto de proteção”, o que, todavia, “não significa que o ente público poderá se imiscuir na esfera privada das relações familiares onde tal dever é, ainda que de certo modo, atendido”.

Nessa guisa de raciocínio, naquelas famílias nas quais se verifica o dever de amparo e cuidados aos filhos pelos genitores, em que o afeto de faz presente, não se afigura razoável a interferência do ente estatal, em respeito à liberdade de planejamento familiar dos particulares. Desse modo, apenas casos em que ocorre o abandono parental é que devem ser passíveis de apreciação pelo Poder Judiciário, considerada a vulnerabilidade do menor que é vítima da omissão parental.

Emergem, na espécie, os princípios da parentalidade responsável e da proteção integral da criança e adolescente, que indicam clara possibilidade de intervenção. Isso porque, ao não atender em nada tal dever de cuidado o pai – ofensor infringe um comando legal que envolve direitos de um vulnerável, que gozam de ampla proteção, de modo que pode vir a ter que responder pelos efeitos decorrentes da sua conduta (CALDERÓN, 2013, p. 340).

Assim, através das considerações expostas em linhas anteriores, é possível afirmar que somente haverá legitimidade para intervenção do poder público nos casos em que se verificar a omissão e o abandono paterno, pois em casos em que a afetividade está presente, não há interesse do ente estatal em intervir na relação paterno-filial, uma vez que essa magnitude de intervenção só ocorre em casos excepcionais de extrema necessidade, ou seja, quando há omissão e rejeição de menores.

Sobre a autora
Loyanne Verdussen de Almeida Firmino Calafiori

Escrivã Judiciária e Encarregada de Escrivania de Família, Sucessões, da Infância, da Juventude, Cível e Juizado Especial Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás. Graduada em Direito pela Pontífica Universidade Católica de Goiás. Pós-graduada em "Direito Civil - Atualização no novo Código Civil de 2002" pela Universidade Federal de Goiás. Pós-graduada em "Direito Material e Processual do Trabalho" pela Universidade Cândido Mendes. Pós-Graduanda em Direito Notarial e Registral pela Universidade Anhanguera (UNIDERP). Mestra em Direito, Relações Internacionais e Desenvolvimento pelo programa de mestrado da Pontifícia Universidade Católica de Goiás, tendo obtido nota máxima na banca de defesa de dissertação. Durante seu mestrado, foi selecionada como bolsista integral da CAPES. Exerceu a advocacia entre os anos de 2012 e 2013, até ter sido aprovada em concurso público para integrar o quadro de servidores efetivos do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, onde ocupa, ainda, a função de Tutora dos Cursos de Ensino à Distância da Escola Judicial e Técnica em Preparação Psicossocial e Jurídica de Adotantes.

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