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O valor jurídico do abandono paternal à luz do princípio da afetividade.

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3. RESPONSABILIDADE CIVIL POR ABANDONO AFETIVO A PARTIR DO ENTENDIMENTO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Nas palavras de Calderón (2013, p. 328), “Um dos temas mais palpitantes e polêmicos no Direito de Família brasileiro, na atualidade, diz respeito à temática da possível reparação civil nos casos do denominado abandono afetivo.” Afinal, recente decisão do STJ concedeu a reparação civil em caso concreto de abandono paterno levado à sua apreciação, sendo um novo entendimento trazido à baila à luz da irradiação dos princípios constitucionais no direito das famílias, despertando paixões de discussões doutrinárias e jurisprudenciais.

Não é possível afirmar, no atual estágio, que exista um entendimento pacificado sobre o tema, tendo em vista decisões de diversas ordens que seguem sendo proferidas e os distintos entendimentos externados sobre o assunto. No quadro atual de complexidade das relações familiares e diversidade de decisões sobre situações aparentemente similares, influenciadas pelas peculiaridades do caso concreto em pauta, quiçá não se chegue a um lugar comum sobre a questão (ao menos em um período próximo). As particularidades fáticas inerentes ao tema podem permitir que se encontrem soluções distintas para situações vistas como próximas, embaralhando os fatores envolvidos, mas ainda assim algumas premissas comuns podem ser extraídas (CALDERÓN, 2013, p. 329)

Esposando o mesmo entendimento, para Hironaka (2009, p. 194),

Ao lado desta prodigalidade de formulações teóricas se instalaram, também, de modo igualmente pródigo, as mais diferentes tendências jurisprudenciais, com respostas distintas para casos semelhantes, com repostas semelhantes para casos distintos e com idênticas respostas para casos semelhantes ou não, mas oriundas de fundamentação diversa. O século XX – não há como negar – produziu uma verdadeira torre de Babel, em termos de apreciação, análise e aplicação da responsabilidade civil. (grifo nosso)

Impende, porém, destacar a incontestável relevância do novo entendimento do STJ, o qual consagrou a possibilidade jurídica de reparação civil por abandono afetivo, conferindo ao afeto seu valor jurídico. Certamente, junto com a inovação jurisprudencial nascem também questionamentos e desafios, boa parte deles complexos e de difícil solução.

Sobre a polêmica e os diferentes posicionamentos ocasionados pelo acórdão paradigma do STJ a respeito da reparação por abandono afetivo, para Fachin (2014, p. 7),

O tema resulta controvertido até não mais poder; parece-nos ser um passo à frente, possível dentro do atual ‘estado da arte’ do Direito Brasileiro, chancelar a reparação por abandono afetivo; contudo, questões correlatas, como os equivalentes funcionais, os parâmetros indenizatórios, o sentido e o alcance da própria formação da identidade como direito integrante da personalidade, imaterial e intangível por natureza, fazem nascer problemas complexos e merecer dita reflexão. Será a ‘ética da responsabilidade’ e não a ‘ética da convicção’ que dará em breve responder a essa questão.

Assim, verifica-se um novo tempo no direito das famílias, tempo este que possibilita a indagação e a propositura de questionamentos acerca de temas subjetivos, impregnados de carga axiológica, antes nunca enfrentados pelos tribunais.

Para o IBDFAM (2014, p. 11), “o raciocínio simplista não pode mais ser aceito pelos operadores do Direito, eis que o afeto, verdadeiro laço formador de entidades familiares, deve dar base ao desfecho de demandas desta espécie”, ou seja, o direito deve ser enxergado do lado esquerdo do peito.

Ainda, imprescindível se faz destacar a reflexão trazida por Calderón (2013, p. 330), segundo o qual,

Uma questão que preliminarmente salta aos olhos é que o simples fato de o abandono afetivo ser um dos pontos relevantes no atual estudo do direito de família brasileiro é representativo da importância que a afetividade alcançou.

E, continua o aludido autor perfilhando o entendimento de que,

O conflito apreciado nesse processo judicial é retrato típico dos complexos desafios familiares contemporâneos, e as relevantes questões ventiladas nesse julgamento permitem refletir sobre temas centrais de direito de família na atualidade (CALDERÓN, p. 331).

O fato é que o STJ inovou o direito das famílias, sedimentando a possibilidade jurídica de reconhecimento da responsabilidade civil ocasionada pelo abandono afetivo, consagrando o instituto do dano afetivo.

Importa anotar como esse relevante julgamento evidencia o momento de travessia no qual se encontram tanto o direito de família como a doutrina que estuda a responsabilidade civil brasileira. Isso porque, os estudos em ambos os campos do direito civil não mais se limitam a uma análise restrita do texto legal, mas, com base em uma leitura civil - constitucional, criam espaço para a construção de outras respostas a partir das situações concretas apresentadas, como no caso em apreço. (CALDERÓN, 2013, p. 333)

Importante feição que fora levantada pelo julgado em apreço diz respeito à ponderação entre a liberdade dos genitores para conduzirem sua família e sua vida privada e o princípio da solidariedade familiar, sendo que o voto-condutor do julgamento, feito pela Ministra Nancy Andrighi, à luz de uma interpretação civil-constitucional, entende pela prevalência do princípio da solidariedade familiar no seio da família contemporânea.

Isso porque, segundo lição de Dias (2013, p. 470),

A falta de convívio dos pais com os filhos, em face do rompimento do elo de afetividade, pode gerar severas sequelas psicológicas e comprometer seu desenvolvimento saudável. A figura do pai é responsável pela primeira e necessária ruptura da intimidade mãe-filho e pela introdução do filho no mundo transpessoal, dos irmãos, dos parentes e da sociedade. Nesse outro mundo, imperam a ordem, disciplina, autoridade e limites.

Sendo assim, “a omissão de genitor em cumprir os encargos decorrentes do poder familiar, deixando de atender ao dever de ter o filho em sua companhia, produz danos emocionais merecedores de reparação” (DIAS, 2013, p. 470).

Desta feita, busca-se elucidar, a partir do referido julgado, a conceituação do que seja o dano afetivo como consequência do abandono afetivo paterno, bem como quais são suas extensões, aplicabilidade no cotidiano dos tribunais e sua relação com a responsabilidade civil, missão a que as linhas a seguir desenvolvidas se dedicam.

3.1. Abandono afetivo e responsabilidade civil à luz da interpretação civil – constitucional

O caso levado à apreciação do STJ que rendeu o nascimento desse novo entendimento no ordenamento jurídico pátrio ficou conhecido como “caso Luciane Souza”, e corresponde a uma filha havida de relação havida de maneira extraconjugal, em que o genitor fora acionado judicialmente pela filha abandonada sentimentalmente por muitos e muitos anos. O genitor, ainda que cumprisse com sua obrigação alimentar que lhe fora estipulada logo após o reconhecimento de seu vínculo paternal, e proporcionasse à filha toda sorte de bens que o dinheiro pudesse comprar, nunca lhe proporcionou o que nenhum dinheiro do mundo poderia lhe dar, que é o afeto e a convivência com sua filha.

O referido pai se manteve ausente da vida de sua filha desde o seu nascimento, pagando-lhe os alimentos devidos, não a deixando passar por nenhuma necessidade material, mas, nunca lhe ofereceu afeto, mantendo-se sempre distante, tendo rejeitado a filha por toda sua vida e, ainda por cima, fazia notória distinção entre ela e outra filha que havia tido de outra união.

Diante de tal conduta, essa filha renegada pelo pai chegou até a idade adulta sem ver desenvolvida a relação afetiva que se espera desse vínculo familiar. Configurada a situação de abandono afetivo, sustentou essa filha que sofreu danos decorrentes da ausência dessa relação paterno-filial, em vista do que demandava uma reparação financeira pelo dano que sofreu em virtude da conduta omissa do seu pai. (CALDERÓN, 2013, p. 331)

A ementa do referido acórdão que reconheceu a existência da afetividade jurídica e que o abandono afetivo parental merece sim ser indenizado, é a seguinte.

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE. 1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227. da CF/88. 3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia - de cuidado - importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social. 5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes - por demandarem revolvimento de matéria fática - não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial. 6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada. 7. Recurso especial parcialmente provido.

(STJ, Resp 1.159.242/SP, Rel. Min. Nancy Andrigui, Terceira Turma, j. em 24.04.2012, Dje 10.05.2012).

Assim, acórdão acima colacionado “negou provimento ao pedido principal do Recurso Especial manejado pelo pai, entendeu procedente a fixação de reparação monetária decorrente daquele abandono afetivo” (CALDERÓN, 2013, p. 333). Lembrando que, a procedência apenas parcial deu-se em virtude tão somente da diminuição da quantia estipulada pelo juízo monocrático.

Imprescindível mencionar que, “O julgamento da supracitada situação de abandono afetivo exigiu a análise de valores, de princípios e de regras constitucionais”, quais sejam, “de direitos fundamentais, dos direitos da personalidade, da parte geral do direito civil, da responsabilidade civil e do direito de família”, sendo que, “A tarefa do jurista frente a tais casos não é singela: exige dedicação e uma ampla compreensão da complexidade na qual se constitui o direito contemporâneo” (CALDERÓN, 2013, p. 333).

Nos termos do escólio doutrinário de Madaleno (2011, p. 472), a família representa muito mais do que laços sanguíneos, uma vez que seu fundamento é a afetividade, senão vejamos.

O real valor jurídico está na verdade afetiva e jamais sustentada na ascendência genética, porque essa, quando desligada do afeto e da convivência, apenas representa um efeito da natureza, quase sempre fruto de um indesejado acaso, obra de um indesejado descuido e da pronta rejeição. Não podem ser considerados genitores pessoas que nunca quiseram exercer as funções de pai ou de mãe, e sob todos os modos e ações de desvinculam dos efeitos sociais, morais, pessoais e materiais da relação natural de filiação. A filiação consanguínea deve coexistir com o vínculo afetivo, pois com ele se completa a relação parental. Não há como aceitar uma relação de filiação apenas biológica sem ser afetiva, externada quando o filho é acolhido pelos pais que assumem plenamente suas funções inerentes ao poder familiar e reguladas pelos artigos 1.634 e 1.690 do Código Civil.

Desta feita, impende consignar que o reconhecimento do afeto como fundamento de todo seio familiar começa a ser entendimento presente nos tribunais pátrios, superando um paradigma rígido e estanque de família até então alicerçado sob um Código Civil que, por si só, não se encontra aberto à realidade social contemporânea.

Para Dias (2013, p. 470), se faltar ao filho a referência do pai,

O filho estará sendo prejudicado, talvez de forma permanente, para o resto de sua vida. Assim, a ausência da figura do pai desestrutura os filhos, tira-lhes o rumo da vida e debita-lhes a vontade de assumir um projeto de vida. Tornam-se pessoas inseguras, infelizes. Tal comprovação, facilitada pela interdisciplinaridade, tem levado ao reconhecimento da obrigação indenizatória por dano afetivo. Ainda que a falta de afetividade não seja indenizável, o reconhecimento da existência do dano psicológico deve servir, no mínimo, para gerar o comprometimento do pai com o pleno e sadio desenvolvimento do filho. Não se trata de impor um valor ao amor, mas reconhecer que o afeto é um bem que tem valor (grifo nosso).

Assim, com olhos na interpretação civil-constitucional é que a jurisprudência tem desenvolvido um novo entendimento primoroso na busca pela superação do formalismo e da lei fria, em prol da consagração do valor jurídico do afeto. Afinal, ainda que o valor de uma indenização pecuniária não venha a trazer a afetividade que o filho nunca teve durante a vida, servirá para reconhecer que o afeto deve estar presente no seio familiar.

Antes de se adentrar propriamente ao tema da responsabilidade civil no seio da família, imprescindível se faz reiterar que afetividade e amor não devem ser enxergados juridicamente como similares. Muitos autores que os consideram sinônimos acabam por apresentarem dificuldade em compreender a possibilidade jurídica de se aferir a existência de dano moral decorrente do abandono afetivo.

Isso porque, os autores que não esposam entendimento favorável à concessão de pena pecuniária pela ausência parental, alegam que o amor seria um sentimento intrínseco à pessoa humana, estando em seu mais íntimo âmago, nascendo de sua subjetividade, não sendo pois, tema atinente à seara jurídica, escapando às ordens judiciais.

No entanto, o que se propõe ao pensar sobre o princípio constitucional da afetividade não é a presença ou ausência de amor nos laços parentais. Afinal, como bem ressaltou a Relatora do caso em questão, Ministra Nancy Andrighi, amar é uma faculdade, mas cuidar é um dever.

Sendo assim, a afetividade jurídica é que deve ser apreciada nos laços parentais, por ser possível sua aferição objetiva e concreta, uma vez que é luzente e indiscutível que existe uma esfera mínima de deveres dos genitores que devem ser necessariamente cumpridos, estando os pais unidos pelo matrimônio ou não, considerando-se que a afetividade configura-se como sendo um fator vital para as relações familiares na contemporaneidade.

A Ministra Nancy Andrighi nomeou essa série de obrigações parentais imprescindíveis como sendo um “núcleo mínimo de cuidados parentais”, conforme se pode conferir:

Apesar das inúmeras hipóteses que poderiam justificar a ausência de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, não pode o julgar se olvidar que deve existir um núcleo mínimo de cuidados parentais com o menor que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social

(REsp 1159242/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/04/2012, DJe 10/05/2012).

Assim, como é plenamente possível avaliar a observância e o cumprimento de cuidados com a prole de maneira objetiva, esse sim configura-se como o principal escopo a ser alcançado com o reconhecimento jurídico da possibilidade de aplicar o instituto da responsabilidade civil pelo abandono ou ausência parental, nada tendo a ver com sentimentos subjetivos ou valores abstratos estranhos à seara jurídica.

Nesse sentido, a doutrina e a jurisprudência possuem papel fundamental em elucidar como cuidado pode ser aferido objetivamente, bem como seu alcance e limites, com vistas a sedimentar o conceito de afetividade jurídica e refutar muitas as críticas que lhe são dirigidas, sobretudo, ao se igualar o sentimento subjetivo do amor, que nada tem a ver com o direito, e a afetividade jurídica objetiva e concreta.

Desta feita, o julgado em estudo entendeu que no caso concreto levado à sua apreciação, o dever de cuidado por parte do genitor foi ferido diante de sua ausência, tendo sido sua conduta omissiva considerada como um ilícito civil e, portanto, passível de sanção.

A par dessa conclusão, o referido julgado passou adiante a apreciar os pressupostos da responsabilidade civil subjetiva, quais sejam culpa, nexo causal e dano. Mas, o apego aos pressupostos da tradicional responsabilidade civil ao aplicá-la ao direito de família contemporâneo, tem levantado críticas por parte da doutrina, senão vejamos.

Para os adeptos dessa corrente da responsabilidade por danos, restaria ainda muito apegada à punição da conduta do ofensor (e não ao abalo sofrido pela vítima), voltada apenas ao passado (e não com olhos no futuro), exacerbaria os filtros (dificultando a reparação) e não tutelaria dignamente a vítima e seus danos (recomposição integral dos prejuízos sofridos). Para essa novel corrente doutrinária, na construção de uma renovada teoria teoria da responsabilidade civil, estes deveriam ser os pontos centrais da análise (CALDERÓN, 2013, p. 361).

Por sua vez, Altheim (2010, p. 16), esposa o mesmo entendimento de que a teoria da responsabilidade civil deveria ser enxergada sob uma nova concepção, mudando o seu enfoque tradicional que sempre foi sobre o ofensor e voltando sua atenção ao ofendido, o qual merece ter a prioridade na análise dos pressupostos tradicionais da responsabilidade civil.

Os mencionados elementos tidos como necessários para que surja o dever de indenizar foram construídos num momento em que a teoria da responsabilidade civil tinha como foco principal a sanção a atos ilícitos ou às condutas reprováveis. Desta forma, foram os pressupostos tradicionais construídos a partir dos possíveis comportamentos causadores de danos. Ocorre que hodiernamente se percebe com clareza que a atenção da responsabilidade civil passou do comportamento lesionante para o evento lesivo em si, para o dano injusto sofrido pelo sujeito lesionado. Em outras palavras, há uma nova concepção da responsabilidade civil pela qual se visualiza o fenômeno como reparação do dano injusto à vítima, e não como uma sanção à conduta contrária do direito. Preocupa-se com o dano que, na hipótese de injusto, merecerá reparação, cabendo então ao direito apontar o responsável. Assim, se antes se dizia 'não há responsabilidade civil sem culpa', agora pode-se afirmar que 'não há responsabilidade civil sem dano injusto'.

Dessa maneira, a partir da interpretação da aludida corrente que propõe uma nova forma de se enxergar os pressupostos da responsabilidade civil, aos casos em que ocorre abandono afetivo paternal não devem ser aplicados os tradicionais pressupostos da responsabilidade civil, sendo primordial, primeiro “avançar sobre as peculiaridades das relações entre familiares” e, ainda, “destacar a necessária tutela da vítima, a leitura atenta dos danos e uma postura que, mais do que apenas repará-los, busque também evitá-los” (CALDERÓN, 2013, p. 362).

Alguns autores chegam a sustentar que a responsabilidade civil em direito de família não se enquadraria nem como contratual nem como extracontratual, sendo um terceiro gênero. Parece, contudo, que o mais adequado é entender que a responsabilidade civil familiar não se enquadra em numa das duas hipóteses. Nesta perspectiva, deve-se considerá-la como um terceiro gênero de responsabilidade, uma vez que existem deveres pré - existenciais entre as partes, violados pelo fato danoso, mas estes deveres não têm origem negocial (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2010, p. 403).

Uma apreciação dos pressupostos da responsabilidade civil sob esse novo viés colocaria como enfoque a vítima e os danos que lhe foram causados, requerendo a averiguação se houve

efetivamente um dano injusto (sofrido pelo ente abandonado afetivamente), se este dano decorreu da ofensa a um interesse juridicamente protegido, se deve ser reparado (com base no sistema jurídico) e se há possibilidade de se imputar tal dever reparatório a alguém (CALDERÓN, 2013, p. 362).

Parte da doutrina que ainda comunga o entendimento de que se deve observar os pressupostos clássicos da responsabilidade civil no seio da família, arrola uma extensa lista que necessariamente deveria ser preenchida para que a situação de abandono afetivo pudesse receber a devida reparação pecuniária, travando critérios rígidos e barreiras incontornáveis que apenas servem para justificar o indeferimento da indenização por danos morais decorrente do abandono afetivo.

Afinal, o novo olhar sobre o direito de família, através de uma interpretação civil – constitucional, faz com que os rígidos critérios estabelecidos como pressupostos para a aplicação do instituto da responsabilidade civil aos casos de abandono afetivo devam ser flexibilizados.

Mas isto somente ocorre porque o mecanismo da responsabilidade civil é composto, em sua maioria, por cláusulas gerais e por conceitos vagos e indeterminados, carecendo do preenchimento pelo juiz a partir do exame do caso concreto. Como a incidência dos princípios e valores constitucionais se faz, em via imediata, justamente desta maneira, através do preenchimento valorativo destes conceitos, vê-se a constitucionalização da responsabilidade dar-se naturalmente (BODIN, 2006, p. 239).

Assim, por certo haverá notória discricionariedade por parte de cada magistrado ao julgar os casos de abandono afetivo parental, vez que será imprescindível valer-se de fundamentação civil – constitucional e de pressupostos da responsabilidade civil de acordo com o entendimento de cada juiz, o qual poderá filiar-se à tradicional teoria da responsabilidade civil ou desnudar o mais novo posicionamento da doutrina contemporânea.

Não há dúvida, portanto, de que a solução dos novos danos passa, necessariamente, por algum grau de discricionariedade judiciária. Tampouco se discute que parâmetros normativos, ainda que insuficientes para a resposta definitiva à demanda específica, devem ser levados em conta no exercício desta discricionariedade pelos tribunais. O problema que se coloca aqui é não o de determinar critérios a seguir ou o de eleger um critério supranormativo que sirva de base de solução para todos os casos, mas, ao revés, o de estabelecer como extrair dos parâmetros normativos a solução última do conflito de interesses em concreto, sem deixar que esta tarefa se reduza à mera subjetividade do juiz. Como estabelecer à míngua de um posicionamento legal suficiente, qual a área legítima de atuação, em concreto, de cada um dentre os interesses lesivos e lesado? A metodologia atualmente empregada na colisão de princípios constitucionais parecer oferecer subsídio valioso da resposta a esta indagação (SCHREIBER, 2012, p. 140).

Dessa forma, ainda segundo o mesmo autor, a nova interpretação dos institutos de direito civil à luz do advento do neoconstitucionalismo com a irradiação de princípios constitucionais sobre todo o ordenamento jurídico pátrio, “vem exigir uma transformação na abordagem tradicionalmente reservada ao dano, que deve deixar de ser visto como elemento estático e meramente pressuposto das ações de responsabilidade civil”, devendo “ser compreendido como cláusula geral destinada à seleção dos interesses merecedores de tutela, cuja violação dá margem ao dever de indenizar” (SCHREIBER, 2012, p. 249).

Portanto, pode-se afirmar que para a exata compreensão da responsabilidade civil em casos de abandono afetivo, os critérios clássicos devem dar lugar a novos pressupostos comprometidos com o novo olhar trazido sobre o direito das famílias contemporâneo à luz do princípio constitucional da afetividade.

3.2. Responsabilidade civil e ofensa à dignidade humana

A seara da responsabilidade civil vem passando por significativas transformações no ordenamento jurídico pátrio, pois, em que pese haja o mito da completude do ordenamento, o fato é que a realidade antecede o direito, uma vez que “as relações sociais são muito mais ricas e amplas do que é possível conter uma legislação”. Afinal, “a realidade social é dinâmica e a moldura dos valores juridicamente relevantes torna-se demasiado estreita para a riqueza dos fatos concretos” (DIAS, 2013, p. 26).

Para Dias (2013, p. 25), “O ordenamento jurídico possibilita a vida em sociedade e é composto de uma infinidade de normas que, na bela expressão de Norberto Bobbio, como as estrelas do céu, jamais alguém consegue contar”.

No entanto, “ao desaguarem no direito de família, esses novos aportes da responsabilidade por danos encontram, inexoravelmente, os pulsantes temas contemporâneos da afetividade jurídica e da responsabilidade familiar”, como sendo “reflexos do produtivo movimento que se percebe no direito de família brasileiro (que na atualidade exerce um papel de vanguarda)” (CALDERÓN, 2013, p. 345) e, continua o referido autor,

Ou seja, tanto o direito de família como a responsabilidade civil são objeto de releituras contemporâneas, que se adaptam para melhor corresponder aos desafios da atualidade. Ao mesmo tempo, esses dois ramos do direito civil se aproximam e passam a se conectar intensamente, de forma inovadora. Esta percepção é vital para melhor compreensão dos julgados sobre abandono afetivo, que nos mostram que o encontro entre searas do direito civil em evidentes processos de mutação certamente não é tranquilo, embora possa ser promissor (CALDERÓN, 2013, p. 346).

Um excelente exemplo da mutação sofrida pelo direito é o próprio tema do abando afetivo, eis que até o recente julgado do STJ, esse mesmo tribunal já negou em casos análogos anteriores o reconhecimento do afeto como valor jurídico e a reparação pecuniária pelo abandono afetivo parental. Assim, houve uma notória modificação do pensar nos institutos do direito das famílias, que culminou com o atual entendimento esposado pelo STJ. Assim,

A nova postura do nosso Superior Tribunal possui alguns aspectos que podem ser vistos desde logo como positivos, pois supera a posição anterior que negava qualquer possibilidade de reparação apenas com óbices genéricos e formais (como a alegação de que abandono afetivo não era apto a ser considerado como ato ilícito), a qual não se mostrava mais condizente com o atual momento vivido pelo direito civil brasileiro (CALDERÓN, 2013, p. 347).

Insta consignar que a recente posição jurisprudencial adotada pelo STJ traz à baila alguns questionamentos sobre o alcance dessa reparação por abandono afetivo em casos concretos, uma vez que essa reparação não deverá ocorrer a toda e qualquer omissão e ausência afetiva paterna, cabendo, pois, à doutrina e à jurisprudência pátrias o papel de enfrentar tais questionamentos.

Além disso, não é suficiente somente a fundamentação na Constituição Federal para a aplicação da reparação por danos morais causados pelo abandono afetivo, sendo também imperioso a apreciação de dispositivos infraconstitucionais do direito privado, senão vejamos a seguir.

3.3. As relações familiares à luz da responsabilidade civil

As inegáveis transformações ocorridas na estrutura familiar nos últimos tempos desnudaram uma nova concepção do direito das famílias, o qual se encontra mais livre para atuar em consonância com a realidade social ao seu redor, menos sedimentado pela formalidade da lei e mais compromissado com a efetividade e a “oxigenação” trazida pela interpretação civil-constitucional. Assim, o direito das famílias contemporâneo assume um novo viés em que a orientação dos laços familiares se dá a partir da afetividade.

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Porém, conforme elucida Calderón (2013, p. 348),

O tratamento jurídico conferido à temática da responsabilidade pela majoritária doutrina de direito de família segue muito restrito e não retrata sua dimensão ética, limitando-se, em geral, a destacar apenas o aspecto da responsabilidade civil (no sentido estrito da busca de um responsável por determinado ato pretérito). Esta percepção, embora útil e relevante, se mostra insuficiente para tutela plena das relações familiares.

Desta feita, na seara do direito de família, o instituto da responsabilidade civil ainda não foi aprofundado de maneira que corresponda aos anseios da família contemporânea e ao novo olhar sobre o direito das famílias. O julgado do STJ em questão representou um avanço a passos largos na evolução e no (re) pensar sobre a responsabilidade civil no seio da família, pois “uma vez comprovado que a falta de convívio pode gerar danos, a ponto de comprometer o desenvolvimento pleno e saudável do filho, a omissão do pai gera dano afetivo susceptível de ser indenizado” (DIAS, 2013, p. 470).

Mas, ainda a responsabilidade civil necessita ser melhor redesenhada no âmbito da família, emprestando para si valores éticos e morais, e se enchendo de fundamentos extraídos de princípios constitucionais, como o princípio da afetividade, para que somente assim possa ser satisfatoriamente usufruído pelo direito das famílias.

No Direito, de um modo geral, o sentido tradicional da responsabilidade vem sendo questionado ao desalojar de seus lugares pressupostos outrora tão consolidados, como o da culpa, do nexo causal e do dano; no Direito de Família, em particular, é premente uma outra dimensão da responsabilidade, para além da responsabilidade civil (SANCHES, 2013, p. 157).

Por sua vez, Calderón (2013, p. 350) perfilha entendimento segundo o qual, “a responsabilidade que decorre para os genitores com sua prole não se restringe à mera responsabilidade civil, voltada ao passado reparadora”, tendo um papel muito mais primoroso, qual seja, “envolve também a dimensão ética da responsabilidade, voltada a uma conduta futura desejável, dirigida para a criação e cuidados dos filhos”. E, continua o aludido autor,

Esta dimensão ética de responsabilidade deve orientar o tratamento a ser conferido aos casos de abandono afetivo, constituindo-se em força motriz na busca da conscientização quanto às consequências do comportamento omisso parental nas relações familiares. Muito mais do que apenas reparar o dano, há que se empreender esforços na tentativa de procurar evitar a ocorrência desse dano existencial.

Portanto, a finalidade principal da reparação civil em casos de abandono afetivo não é penalizar o genitor ausente por seu distanciamento com o filho rejeitado, mas sim atuar com sua feição pedagógica de orientar que essa não é a correta atitude a ser seguida. Mas, se, em todo caso, houver o abandono afetivo parental, outra saída não haverá senão a de penalizar o pai ausente em decorrência da ausência perpetrada em detrimento dos filhos rejeitados.

3.4. Da reparação do dano afetivo ao filho decorrente do abandono paterno-filial

Quanto à reparação do dano afetivo decorrente do abandono paternal, Tartuce (2012, p. 11) apresenta a doutrina separada por dois posicionamentos. O referido autor destaca que uma parte da doutrina, na qual ele próprio se enquadra, seria favorável à reparação, a exemplo de Paulo Lôbo, Giselda M. F. N. Hironaka e Rolf Madaleno, enquanto que outra parte menos expressiva da doutrina seria desfavorável à fixação do dano afetivo, quais sejam, Regina Beatriz Tavares da Silva, Judith Martins-Costa e Murilo Sechiero Costa Neves.

A fim de demonstrar a subjetividade do tema em questão, traz-se à baila um acórdão do próprio STJ do ano de 2006, em que o abandono afetivo não foi caracterizado como dano a ensejar reparação civil, senão vejamos:

RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO MORAL. ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO NÃO CARACTERIZADA. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159. do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária. 2. Recurso especial conhecido e provido. Por sua vez, outra corrente defende que não existe obrigação legal de companhia e afeto”. (STJ-REsp. 757.411/MG – Rel. Min. Fernando Gonçalves – Quarta Turma – DJ 27.03.2006) APELAÇÃO NÃO PROVIDA.

(TJPR – 10ª C. CÍVEL – AC 639544-4 – Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba – Rel.: Nilson Mizuta – Unânime – J. em 04.03.2010)

Nas palavras de Tartuce (2012, p. 1),

Em decisão anterior, o STJ acabou por concluir que não caberia indenização a favor do filho em face do pai que o abandona moralmente (STJ, REsp 757.411/MG, Rel. Min. Fernando Gonçalves, Quarta Turma, julgado em 29/11/2005, DJ 27/03/2006, p. 299). Sustentou-se que não haveria qualquer ato ilícito na conduta do pai que abandona afetivamente o filho, pois o afeto não pode ser imposto na referida relação parental, não sendo o caso da existência de um dever jurídico de convivência. (grifo nosso)

Para Calderón (2013, p. 353), a relatora Ministra Nancy Andrighi “foi taxativa em reafirmar a possibilidade de responsabilização civil nas relações familiares, ainda que apenas por dano moral (extrapatrimonial)”, afastando o posicionamento divergente, ao afirmar em um trecho do seu voto que “não existem restrições legais à aplicação das regras relativas à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar” no seio da família.

A Ministra Relatora, ainda em seu voto, desnudou a argumentação que era feita até então de que o ordenamento jurídico somente previa a possibilidade de perda do poder familiar nos casos de abandono afetivo, elucidando que o instituto da perda do poder familiar possui finalidade bem diversa do objetivo do reconhecimento da responsabilidade civil por abandono afetivo, senão vejamos:

Nota-se, contudo, que a perda do pátrio poder não suprime, nem afasta, a possibilidade de indenizações ou compensações, porque tem como objetivo primário resguardar a integridade do menor, ofertando-lhes, por outros meios, a criação e educação negada pelos genitores, e nunca compensar os prejuízos advindo do mal cuidado recebidos pelos filhos

(REsp 1159242/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/04/2012, DJe 10/05/2012).

A esse respeito, DIAS (2013, p. 470) ainda acrescenta que,

A negligência justifica, inclusive, a perda do poder familiar, por configurar abandono (CC 1.638 II). Porém, esta penalização não basta. Aliás, a decretação da perda do poder familiar, isoladamente, pode constituir-se não em uma pena, mas bonificação pelo abandono. A relação paterno-filial vem assumindo destaque nas disposições sobre a temática da família, deixando clara a preocupação com os filhos como sujeitos, e não como assujeitados ao poder paterno ou, mais especificamente, ao poder do pai.

Dessa maneira, “é inegável que as regras da responsabilidade civil também se aplicam aos conflitos decorrentes das relações familiares, na esteira do que restou bem lançado no referido voto da relatora e ementa do julgado” (CALDERÓN, 2013, p. 354).

A lei obriga e responsabiliza os pais no que toca aos cuidados com os filhos. A ausência desses cuidados, o abandono moral, viola a integridade psicofísica dos filhos, bem como o princípio da solidariedade familiar, valores protegidos constitucionalmente. Esse tipo de violação configura dano moral (DIAS, 2013, p. 471).

Contudo, impende destacar que a aplicação das regras de responsabilidade civil no seio da família deve ser adaptada às peculiaridades que a família possui, não sendo possível a aplicação cega da responsabilidade civil feita especialmente para contratos e negócios jurídicos, visto se destinarem a reger situações completamente diversas, uma vez que,

Viver em família é totalmente distinto de travar uma relação comercial, trabalhista ou mesmo de receber um ato administrativo de determinado ente público. Entre as incontáveis distinções, em regra, as relações familiares são para grande parte da vida da pessoa, se dão na base da confiança, na oralidade, informalidade, se espraiam no tempo, enfim, são diferentes de grande parte das outras relações que são tuteladas pelo direito civil (CALDERÓN, 2013, p. 355).

A esse respeito, o Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, em seu voto, se manifestou no sentido de que “a responsabilidade civil por dano moral no Direito de Família deve ser analisada com cautela”, pois as relações no seio da família são carregadas por sentimentos, causando mais dor e alegria do que em qualquer outra seara da vida de uma pessoa (REsp 1159242/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/04/2012, DJe 10/05/2012).

Por esse motivo, “pela própria natureza delicada dos relacionamentos familiares, a responsabilidade civil no Direito de Família não pode ser equiparada à responsabilidade civil extracontratual em geral”, senão se provocaria uma formalidade que não existe no lar e no seio da família, além de se ensejar uma verdadeira patrimonialização do relacionamento familiar, que é o berço no qual todo ser humano guarda suas maiores emoções, sejam felizes ou não, sendo a origem e a essência de toda pessoa (REsp 1159242/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/04/2012, DJe 10/05/2012).

3.5. Pressupostos e elementos do dever de indenizar por abandono afetivo

3.5.1. Previsão legal

Para a correta compreensão do alcance da responsabilidade civil que se propõe com a quantificação pecuniária do dano afetivo é imprescindível que se faça uma interpretação do caso concreto à luz princípios extraídos do âmago da Constituição Federal para que somente assim se possa debruçar, de forma adequada e com o devido preparo, sobre a questão em estudo.

A esse respeito, Cortiano Júnior (2010, p. 9) assevera que,

O novo Código Civil, no passo da abertura do sistema e da tendência objetivista da responsabilidade civil, lançou novas bases dogmáticas para essa renovação; tais bases, ao mesmo tempo que devem algo à doutrina anterior, exigem dela novas tendências, estudos e reflexões. Exigem, pois, uma nova doutrina.

Desta feita, “Aplicar pontual e isoladamente as categorias clássicas de ato ilícito, imprudência, negligência, imperícia, culpa, nexo causal e dano, a partir de conceitos estáticos de família, parentesco e poder familiar”,

muitas vezes em considerar tanto a realidade concreta como os princípios e os valores constitucionais atinentes, pode não contribuir para a construção de soluções adequadas aos casos de abandono afetivo (CALDERÓN, 2013, p. 334-335).

Não que se esteja aduzindo que os conceitos clássicos e a tradicional doutrina não tenham seu valor. O que se afirma é que, a par desses conhecimentos de inegável importância, precisa-se ir mais além, sendo imprescindível uma interpretação civil-constitucional diante da oxigenação pela qual passou o direito das famílias após a irradiação sobre si dos princípios constitucionais. E, nesse aspecto,

Parte considerável da doutrina e da jurisprudência vem contribuindo para atualização constante dos institutos de direito de família e das categorias da responsabilidade civil, ramos que são objeto de profícua reconstrução contemporânea no cenário jurídico brasileiro (CALDERÓN, 2013, p. 335).

Conforme o escólio de Hironaka (2009, p. 193),

A crise do sistema clássico da responsabilidade civil está a exigir esta revisão crítica que se fará obrigatoriamente por intermédio da leitura da própria história dos povos, da reedição do diálogo entre o direito e a sociedade e da reapreciação dos fatos da vida como se apresentam hodiernamente e como influenciam a trajetória da esfera jurídica dos homens.

Conforme os termos do Informativo de Jurisprudência nº 496, do STJ, que informou acerca do resultado do julgado em estudo, “O abandono afetivo decorrente da omissão do genitor no dever de cuidar da prole constitui elemento suficiente para caracterizar dano moral compensável”. Ainda, o referido julgado continua elucidando que,

O non facere que atinge um bem juridicamente tutelado, no caso, o necessário dever de cuidado (dever de criação, educação e companhia), importa em vulneração da imposição legal, gerando a possibilidade de pleitear compensação por danos morais por abandono afetivo.

Outrossim, o STJ pacificou o entendimento de que “não há restrições legais à aplicação das regras relativas à responsabilidade civil e ao consequente dever de indenizar no Direito de Família” e, ainda, que

O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento pátrio não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas concepções, como se vê no art. 227. da CF (REsp 1159242/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/04/2012, DJe 10/05/2012).

Segundo o voto da Ministra Relatora, o abandono afetivo poderia ser compreendido como “a constatação de uma ofensa ao dever de cuidado, que estaria presente em nosso sistema jurídico, ainda que não de modo expresso, mas sim com outras denominações” (CALDERÓN, 2013, p. 356), tendo a Relatora de manifestado com as seguintes palavras:

Essa percepção do cuidado como tendo valor jurídico já foi, inclusive, incorporada em nosso ordenamento jurídico, não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa no art. 227. da Constituição Federal. [...] Aqui não se fala ou discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem filhos.

Desse modo, o cuidado foi erigido a valor jurídico e, caso o genitor não cumpra com o seu dever jurídico de cuidado, responderá por sua omissão legal, pois a lei estabelece de forma implícita o dever legal de cuidado. Para Barboza (2011, p. 88),

Reconhecido como valor implícito do ordenamento jurídico, o cuidado vincula as relações de afeto, de solidariedade, de responsabilidade não só familiar, pois é ‘preciso identificar o cuidado dentre as responsabilidades do ser humano como pessoa e como cidadão’. Nesse sentido o cuidado conduz a compromissos efetivos e ao envolvimento necessário com o outro, como norma ética da convivência. Entendido como ‘valor informado da dignidade da pessoa humana e da boa-fé objetiva nas situações existenciais’, tem importante papel da interpretação e aplicação das normas jurídicas.

Para a aludida autora, o dever implícito de cuidar do filho estaria compreendido em:

Ações concretas, atitudes e valores devem evidenciar o cuidado com os filhos, desde o que diz respeito ao seu conforto físico e psíquico, a higiene do corpo e do ambiente, o apoio emocional e espiritual, até a proteção no sentido de segurança. Aqui também estão presentes diferentes significados de cuidado, como aceitação, compaixão, envolvimento, preocupação, respeito, proteção, amor, paciência, presença, ajuda, compartilhamento.

Ainda, é salutar reiterar que o dever de cuidado não se confunde com o amor, sendo esse um ponto nodal que fora muitas vezes utilizado como justificativa e como empecilho para o não reconhecimento da reparação por dano moral decorrente de abandono afetivo. Nesse ponto, o trecho em que a Relatora do julgado afirma que “amar é faculdade, cuidar é dever”, elucida como amar e cuidar são valores diferenciados e não se confundem entre si.

Até mesmo porque, o cuidado com o filho pode ser mensurado objetivamente através da observação concreta dos atos e atitudes paternas que podem atestar o cumprimento do dever de cuidado, como a presença no cotidiano do filho, o amparo, a solidariedade em suas ações e a convivência, enquanto o amor, como sentimento subjetivo que é, não permite a valoração pelo julgador.

Para Calderón (2013, p. 359), “a subjetividade inerente ao amor impede que este seja tratado como categoria jurídica, visto que o Direito exige, para sua fundamentação e aplicação, um mínimo de objetividade”, sendo que “amar é uma coisa, cuidar, outra”. A esse respeito, Rodrigues Junior (2012, p. 4) aduz que,

O ‘amor’, e é bom que se volte a ele, definitivamente, não é jurídico. Sua juridicização pode até ocorrer, o que realmente se deu em casos excepcionais na legislação nacional e estrangeira. [...] As fronteiras do amor e do Direito devem ser mantidas, ainda que exceções sirvam apenas para confirmar a diferença de planos. O ‘amor’ não pode ser o novo ‘deus laico. Ele é sublime demais para se conspurcar com o Direito, que só é nobre quando seus realizadores conseguem sê-lo.

Assim, a paternidade responsável veio para concretizar o fato de que “a convivência dos filhos com os pais não é direito, é dever. Não há direito de visitá-lo, há obrigação de conviver com ele”, pois “o distanciamento entre pais e filhos produz sequelas de ordem emocional e pode comprometer o seu sadio desenvolvimento. O sentimento de dor e de abandono pode deixar reflexos permanentes em sua vida” (DIAS, 2013, p. 470). Desse modo,

O adimplemento do dever de visita sempre ficou exclusivamente à mercê da vontade do genitor, que escolhia a seu bel-prazer a hora, o dia e a periodicidade de buscar os filhos. A estes só cabia aguardar pacientemente que o pai resolvesse vê-los. Também às vezes era o guardião que impedia o direito de visita do outro genitor, por vingança, decorrente de sentimento de abandono pela separação e, não raro, do inadimplemento da obrigação alimentar. Também é possível, ainda, imaginar hipóteses em que a “culpa” pelo abandono afetivo da prole possa ser imputado a ambos os genitores.

Verifica-se, portanto, que aquela tradicional concepção de que a única obrigação do genitor em relação à prole era a de pagar pensão alimentícia, já se encontra superada diante de uma interpretação civil – constitucional. Assim, diante do novo olhar sobre o direito das famílias, o qual enxerga a família como berço de afetividade e solidariedade, não é mais suficiente que o genitor apenas cumpra com sua obrigação de fornecer bens materiais ao filho, como se assim pudesse ficar livre dos filhos. O que prevalece na contemporaneidade são os laços de afetividade que são primordiais para um desenvolvimento psíquico, emocional e moral saudáveis da criança e do adolescente que, de agora em diante, não mais poderão ser rejeitado pelo genitor ou relegados a segundo plano, pelo menos perante o Poder Judiciário não mais!

3.5.2. Ato ilícito

Até o advento do recente entendimento do STJ, a maioria dos pedidos de reconhecimento abandono afetivo e de sua consequente reparação civil eram indeferidos pelos magistrados sob a fundamentação de o abandono afetivo não poderia ser considerado um ato ilícito.

Todavia, a doutrina mais recente, amparada pela nova jurisprudência trazida pelo STJ, representada por Tartuce (2012, p. 2), se manifesta no sentido de que,

Essa nova decisão, a qual se filia, demonstra um profundo impacto do reconhecimento do afeto como verdadeiro princípio da nossa ordem. Partindo-se para a análise técnica da questão, pontue-se que o dever de convivência dos pais em relação aos filhos menores é expresso pelo art. 229. da CF/1988 e pelo art. 1.634, incs. I e II do CC/2002. Se a violação desse dever – que se contrapõe a um direito subjetivo equivalente -, causar dano, estarão presentes os requisitos do ato ilícito civil (art. 186. do CC/2002). (grifo nosso)

Para o STJ, através de entendimento esboçado pelo referido Informativo nº496, “o descumprimento comprovado da imposição legal de cuidar da prole acarreta o reconhecimento da ocorrência de ilicitude civil sob a forma de omissão”, pois “tanto pela concepção quanto pela adoção, os pais assumem obrigações jurídicas em relação à sua prole que ultrapassam aquelas chamadas necessarium vitae”. E, continua o aludido Informativo elucidando que,

É consabido que, além do básico para a sua manutenção (alimento, abrigo e saúde), o ser humano precisa de outros elementos imateriais, igualmente necessários para a formação adequada (educação, lazer, regras de conduta etc.). O cuidado, vislumbrado em suas diversas manifestações psicológicas, é um fator indispensável à criação e à formação de um adulto que tenha integridade física e psicológica, capaz de conviver em sociedade, respeitando seus limites, buscando seus direitos, exercendo plenamente sua cidadania.

Por sua vez, a Ministra Relatora Nancy Andrighi, explicou que, na apreciação do caso concreto de abandono afetivo em tela, “não se discute o amar – que é uma faculdade – mas sim a imposição biológica e constitucional de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerar ou adotar filhos” (REsp 1159242/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/04/2012, DJe 10/05/2012).

Salientou a Ministra que “os sentimentos de mágoa e tristeza causados pela negligência paterna e o tratamento como filha de segunda classe, que a recorrida levará ad perpetuam, é perfeitamente apreensível” e decorrem “das omissões do pai (recorrente) no exercício de seu dever de cuidado em relação à filha e também de suas ações que privilegiaram parte de sua prole em detrimento dela”, o que caracterizaria o dano in re ipsa, ensejando, assim, a devida reparação monetária pelo distanciamento do pai sofrido pela filha, o qual ainda a tratava com diferença em relação a outro filho havido de outro relacionamento (REsp 1159242/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/04/2012, DJe 10/05/2012).

Desta feita, com arrimo na fundamentação acima apresentada, foi dado provimento ao recurso do genitor tão somente para reduzir o valor da condenação por danos morais de R$ 415 mil para R$ 200 mil, com a devida correção a partir da data do julgamento proferido pelo tribunal de origem.

O julgado em questão do STJ, o qual serviu de paradigma para o advento da nova concepção no direito de família no sentido da possibilidade jurídica da existência de dano moral decorrente do abandono afetivo, considerou a ausência do genitor no cotidiano da filha como uma conduta omissiva, ainda que o pai tenha sempre adimplido com a obrigação alimentar em relação à filha.

Ao considerar a conduta omissiva do pai como um ato ilícito, o qual produz consequências no ordenamento jurídico, o STJ sedimentou o entendimento de que o cuidado é imperioso para o “desenvolvimento e a formação psicológica do infante, de modo que configuraria verdadeira obrigação dos pais o atendimento a este dever jurídico, sendo a negligência não justificável” um verdadeiro ato ilícito civil e culposo, segundo posicionamento do acórdão em tela (CALDERÓN, 2013, p. 365).

Como se trata de ato ilícito, para a correta aplicação da responsabilidade civil em casos de abandono afetivo, importa em verificar no caso concreto se há alguma hipótese de causa excludente de ilicitude, que neste caso seria o afastamento do genitor em virtude de circunstância alheias à sua vontade, seja por obstáculo colocado pela genitora, em situações em que o genitor não tem conhecimento de que tem um filho, ou nos casos em que a genitora impede seu convívio ou até mesmo seu contato com o filho, casos esses em que é comum a presença da chamada alienação parental.

Ainda, existem casos em que o genitor não convive com seu filho por morar em outra cidade ou em outro país, o que também configuraria uma excludente de ilicitude, pois a convivência no cotidiano da criança não se deu em razão da distância entre as cidades. Vale lembrar que esse argumento pode se tornar inválido diante da moderna tecnologia que tem cada vez mais aproximado as pessoas, motivo pelo qual cada caso deve ser apreciado concretamente diante de suas particularidades e perante a constatação dos esforços que o genitor empreendeu para estar o mais próximo possível de seu filho, apesar da distância física.

Sendo assim, o acórdão paradigma considerou como reprovável juridicamente a conduta omissiva que enseja o abandono afetivo, considerando-a como um ato ilícito culposo, em virtude da negligência do genitor.

3.5.3. Dano e nexo de causalidade

Os impactos negativos da ausência do genitor na vida do filho podem perfeitamente ser atestados por exames e laudos psicológicos, mas o mais importante é mencionar que o acórdão paradigma do STJ considerou que o dano moral nessa caso é in re ipsa.

Em outras palavras, o dano moral existe in re ipsa; deriva inexoravelmente do próprio fato ofensivo, de tal modo que, provada a ofensa, ipso facto está demonstrado o dano moral à guisa de uma presunção natural, uma presunção hominis ou facti, que decorre das regras da experiência comum (CAVALIERI FILHO, 2009, p. 86).

Desta feita, o STJ entendeu como sendo “desnecessária qualquer prova dos danos pleiteados, posto que, em casos de abandono afetivo, estes seriam presumíveis para quem sofreu com a conduta tida como ilícita”, ou seja, “quem passou a infância e adolescência sem conviver afetividade com seu genitor, como filho e pai)”, pois tal ausência, nas palavras do voto da Relatora Ministra Nancy Andrighi, gerou

[…] sentimento íntimo que a recorrida levará, ad perpetuam, é perfeitamente apreensível e exsurge, inexoravelmente, das omissões do recorrente no exercício de seu dever de cuidado em relação à recorrida e também de suas ações, que privilegiaram parte de sua prole em detrimento dela, caracterizando o dano in re ipsa e traduzindo-se, assim, em causa eficiente à compensação

(REsp 1159242/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 24/04/2012, DJe 10/05/2012).

No caso em questão, em que pese a vítima tenha crescido sem o pai e tenha conseguido superar toda sorte de dificuldades emocionais e pessoais decorrentes do sentimento de abandono, tendo se formado, se casado, tido filhos, mas mesmo assim o STJ considerou que a omissão paterna gerou sofrimento, mágoa e tristeza, os quais já configuram danos suficientes a ensejar a responsabilidade civil.

De modo mais amplo, os direitos de personalidade oferecem um conjunto de situações definidas pelo sistema jurídico, inatas à pessoa, cuja lesão faz incidir diretamente a pretensão aos danos morais, de modo objetivo e controlável, sem qualquer necessidade de recurso à existência da dor ou do prejuízo. A responsabilidade opera-se pelo simples fato da violação (damnu in re ipsa); assim, verificada a lesão a direito da personalidade, surge a necessidade de reparação do dano moral, não sendo necessária a prova do prejuízo, bastando o nexo de causalidade (LÔBO, 2002, p. 347).

Outrossim, sendo o dano presumível, do mesmo modo é presumível o nexo causal decorrente da conduta omissiva paterna, tendo o acórdão em referência tratado do nexo causal tão somente nessa passagem:

esse sentimento íntimo que a recorrida levará, ad perpetuam, é perfeitamente apreensível e exsurge, inexoravelmente, das omissões do recorrente no exercício do seu dever de cuidado em relação à recorrida.

Contudo, Calderón (2013, p. 367) chama atenção para o fato de que nos casos de abandono afetivo deve ser exigida alguma relação entre a conduta omissiva paterna e os danos causados ao filho que devem ser indenizados, pois

Parece prudente exigir alguma vinculação dos danos com a conduta omissiva comprovada. Isto porque, não se mostra razoável permitir que, por não cumprir seu dever de cuidado, venha o genitor a responder por todo e qualquer dano presente na vida da pessoa que foi um dia abandonada afetivamente.

Isso porque, nas palavras de Moraes (2010, p. 432),

O ressarcimento, ou a compensação, dos danos morais não pode mais operar, como vem acontecendo, no nível do senso comum. Sua importância no mundo atual exige que se busque atingir algum grau de tecnicidade, do ponto de vista da ciência do direito, contribuindo-se assim para construir uma categoria teórica que seja elaborada o suficiente para conter as numerosas especificações do instituto. A ausência de rigor técnico e de objetividade da concepção da categoria tem gerado prejuízos ao adequado desenvolvimento do instituto da responsabilidade civil, além de perpetrar, quotidianamente, graves injustiças e incertezas aos jurisdicionados.

Esse posicionamento que denota certa preocupação com a inexistência de necessidade de comprovação dos danos causados à vítima pelo pai ausente se justifica diante do fato de que judicialmente para ser concedido dano moral, deve ser comprovado ao juiz o dano moral objetivo, sendo que o dano moral subjetivo, que é o sentimento da vítima, a sua dor e sua tristeza, são presumidos como presentes no momento em que se verifica a existência do dano moral objetivo, que é a lesão à dignidade da pessoa humana.

Faz-se necessária a adoção de critérios que permitam tal distinção, tendo em vista as diversas peculiaridades inerentes à incidência da responsabilidade civil no interior das relações familiares. Alguns chegam a citar o risco de uma “indústria do amor”, o que parece exagerado. Ainda assim, impende anotar que devem ser edificadas balizas jurídicas que permitam distinguir quais situações jurídicas são merecedoras de tutela jurisdicional indenizatória e quais não o são. […] Este proceder pode também contribuir para que se evite um incetivo despropositado ao ajuizamento de ações judiciais nesse sentido, de casos nos quais a reparação não seria cabível, situação esta que poderia até desestabilizar lares que seguem com razoável tranquilidade (Moraes, 2010, p. 432).

No entanto, no caso do abandono afetivo, o STJ fixou entendimento no sentido de que exatamente por ser a dor do abandono afetivo um elemento subjetivo que está no âmago e no coração de quem sente, não haveria como provar o dano moral subjetivo. Mas, importante ressalva é feita pela corrente doutrinária acima mencionada, para a qual, deveria haver nos casos de abandono afetivo também a necessidade de uma comprovação da existência do dano moral objetivo.

Os casos de abandono afetivo podem gerar danos patrimoniais ou extrapatrimoniais à vítima, ferindo a dignidade da pessoa humana, devendo o enfoque ser sobre a pessoa da vítima e o dano que fora causado, conforme aduz Hironaka (2010, p. 226):

A visualização primeira deve ser o dano e não a sua origem ou causa, propriamente ditas, pois o que corre à frente é a circunstância da vítima do dano. É pela vítima e pela expectativa de reorganizar, tanto quanto seja possível, a essência lesada que se procura sistematizar um novo perfil para a responsabilidade civil – como se esboça neste estudo -, quando a ausência afetiva tenha produzido danos ao partícipe da relação paterno – filial, mormente o filho.

Para Calderón (2013, p. 372), “os danos patrimoniais decorrentes dessa modalidade de abandono devem ser alegados e comprovados – com o que poderão ser indenizados”, pois para o aludido autor, “resta presente a necessidade de se demonstrar, conforme exposto, a ligação desses danos materiais com o abandono”. Nesse sentido, para Cavalieri Filho (2009, p. 84),

Dor, vexame, sofrimento e humilhação são possível consequência, e não causa. Assim como febre é o efeito de uma agressão orgânica, dor, vexame, sofrimento só poderão ser considerados dano moral quando tiverem por causa uma agressão à dignidade de alguém.

Assim, consoante o escólio de Calderón (2013, p. 373), a ofensa à esfera extrapatrimonial da vítima, que diz respeito à esfera existencial do lesado, deveria ser comprovada, como é o caso de “um dano psíquico decorrente do abandono afetivo”. Todavia, caso a ofensa não tenha produzido um efeito extrapatrimonial aferível, como o mencionado dano psíquico, seria despicienda qualquer prova de dor ou sofrimento decorrente da ofensa em juízo, pois conforme entendimento do STJ, quanto ao aspecto subjetivo do dano “sempre haverá presunção judicial quanto à dor, sofrimento, humilhação ou vergonha”.

Desse modo, para essa parte da doutrina, uma coisa seria a ofensa ao interesse extrapatrimonial da vítima, que seria provada pela prova concreta do dano, e outra coisa seria a dor, o sofrimento ou a tristeza da vítima causados pela ofensa, sendo esses tão somente efeitos da ofensa perpetrada e que não necessitariam ser provados, uma vez que são presumidos. Ao esposar esse entendimento, iria-se distinguir a lesão em si da dor e do sofrimento que ela causou.

Caberá, in casu, ao requerente do pedido reparatório decorrente de abandono afetivo descrever quais foram as lesões à sua esfera extrapatrimonial, sendo esta tarefa essencial. Portanto, é necessária a descrição da ofensa ao direito da personalidade da vítima e da sua vinculação com a conduta reprovável do infrator. Repita-se que a demonstração deste aspecto do dano (objetivo) se restringe a comprovação da ofensa e sua esfera existencial. Por óbvio, os danos extrapatrimoniais decorrentes de abandono afetivo não se restringem aos casos em que houve uma sequela psíquica para a vítima. Estas sequelas são inerentes ao seu aspecto subjetivo (tal como a dor ou o sofrimento), e podem estar presentes ou não, mas não são pré-requisito para se constatar a presença do dano indenizável. Fato é que, havendo abalo psíquico para a vítima em decorrência do abandono, restará mais do que comprovado o dano moral compensável (CALDERÓN, 2013, p. 375).

Assim, para a corrente apresentada acima, ainda que o STJ tenha perfilhado entendimento de que seja desnecessária qualquer comprovação de dor ou de sofrimento causados à vítima, é luzente que a vítima deverá, ao menos, mencionar quais as lesões provocadas à sua esfera existencial objetivamente e o respectivo liame existente com o abandono afetivo sofrido.

Para Calderón (2013, p. 379), “a relevância do dano no contexto atual da responsabilidade civil não pode ser ignorada. Consequentemente, deve ser comprovada a alegada lesão à esfera extrapatrimonial em apreço”, prova essa que não seria da dor, do sofrimento ou da tristeza. É cediço que seria prudente a exigência de alguma prova do dano de forma concreta e objetiva nos casos concretos de abandono afetivo.

A esse respeito acrescenta Schreiber (2012, p. 182),

Isto não exclui o dever do autor de demonstrar que tal interesse foi efetivamente afetado, ou seja, que a ausência de sustento, guarda, companhia, criação ou educação afetaram concretamente a formação da sua personalidade.

Nesse sentido, vaticina Calderón (2013, p. 380) que,

É evidente que o desenvolvimento da infância e da adolescência sem o convício afetivo paterno / materno se dá com prejuízo à integridade pessoal, à esfera da dignidade humana e aos direitos da personalidade de quem foi abandonado. A ausência de um efetivo vínculo afetivo paterno / materno deixa marcas que não podem ser mitigadas. Não se pretende aqui afastar uma presunção de tal magnitude. Também não se defende que a vítima venha a juízo provar sua dor, seu sofrimento anímico. Estas questões subjetivas são presumíveis e devem continuar sendo, mesmo nos casos de abandono afetivo (sob pena de retomarmos barreiras probatórias que levem à total irreparabilidade desses danos). O que se sustenta, aqui, é apenas que se exija um mínimo de demonstração de que efetivamente existiu uma lesão à esfera extrapatrimonial do ofendido, uma ofensa à dignidade e à personalidade da vítima com tal afastamento, que a ofensa se consubstanciou faticamente, que o convívio não foi suprido por outrem, que a vítima desenvolveu sim sua infância e sua adolescência sem o exercício efetivo daquele vínculo parental e que isto trouxe consequências objetivas na sua formação.

Por sua vez, Moraes (2010, p. 450), discorre especialmente sobre as consequências da situação de abandono afetivo:

Há que se melhor explicar o posicionamento aqui defendido. Para configuração de dano moral à integridade psíquica de filho menor, é preciso que tenha havido o completo abandono por parte do pai (ou da mãe) e a ausência de uma figura substituta. Se alguém ‘faz as vezes’ de pai (ou de mãe), desempenhando as suas funções, não haverá dano a ser indenizado, não obstante o comportamento moralmente condenável do genitor biológico. Não se admite qualquer caráter punitivo à indenização do dano moral. Não se trata, pois, de condenar um pai que abandonou seu filho (eventual ‘dano causado’), mas de ressarcir o dano sofrido pelo filho quando, abandonado pelo genitor biológico, não pôde contar nem com seu pai biológico, nem com qualquer figura substituta, configuram-se, então, só aí, o que se chamou de ‘ausência de pai’ (isto é, ausência de figura paterna).

É inegável, porém, que é de suma importância perquirir se o papel do genitor ausente não foi preenchido por outra pessoa, como um avô, configurando a paternidade socioafetiva. Para parte da doutrina, esse vínculo socioafetivo estabelecido com outra pessoa seria tão relevante que afastaria por si só a lesão ocasionada pelo abandono afetivo, enquanto que, para outra parte da doutrina, os laços afetivos nutridos pelo pai socioafetivo nunca romperiam os danos ocasionados pelo abandono afetivo do genitor biológico.

As relações familiares são influenciadas por incontáveis pormenores e fatos que se sucedem ao longo do tempo, na intimidade do lar, no torvelhinho das relações em família. Tudo isso corrobora a posição de se exigir uma prova mínima da lesão sofrida pela vítima, da ausência de suprimento por outrem do vínculo não exercido pelo genitor, da consagração fática ao longo do tempo daquele distanciamento parental, deixando as presunções apenas para p aspecto subjetivo do dano, de modo a se adotar um filho que permita “separar o joio do trigo” (CALDERÓN, 2013, p. 384).

Como as relações familiares são muito dinâmicas, seria possível ainda haver o caso de multiparentalidade, casos em que o abandono afetivo se deu apenas por determinados períodos de tempo na vida do filho, casos em que a pessoa cresce sem saber quem é seu pai biológico, mas é amado e bem cuidado em um lar repleto de afeto por um pai socioafetivo. Inúmeras são as estruturas familiares e cada caso concreto merece ser apreciado com especial cuidado, por isso que, de fato, “sustenta-se que não se deve considerar o dano moral decorrente dos casos de abandono afetivo sempre e totalmente in re ipsa”, pois “alguma prova objetiva, ainda que estreita, pode ser perquirida conforme cada caso concreto apresentado”, não se apresentando uma solução única para casos tão diversificados (CALDERÓN, 2013, p. 384).

3.6. O preço da dor do abandono nos tribunais brasileiros

O julgado do STJ em estudo veio em boa hora para solucionar alguns percalços sobre os quais a jurisprudência até então se esbarrava e, em virtude deles, acabava por negar a reparação por abandono afetivo.

Uma relevante elucidação foi o afastamento do conceito de afetividade com o conceito de amor, pois até então muitos julgados faziam alusão ao afeto como se fosse sinônimo de amor e, considerando que ninguém pode ser compelido a amar outra pessoa, ainda que seja seu filho, os tribunais acabavam por não reconhecer a obrigação de reparação por dano afetivo. No entanto, consoante melhor esclarece Tartuce (2012, p. 1),

Para os devidos fins de delimitação conceitual, deve ficar claro que o afeto não se confunde necessariamente com o amor. Afeto quer dizer interação ou ligação entre pessoas, podendo ter carga positiva ou negativa. O afeto positivo, por excelência, é o amor; o negativo é o ódio. Obviamente, ambas as cargas estão presentes nas relações familiares.

No mesmo sentido, para Calderón (2013, p. 348),

Afetividade não se confunde com o amor, visto que este último escapa ao Direito; já a afetividade decorre de uma atividade concreta exteriorizadora de uma manifestação de afeto. Ao ser reconhecida pelo direito, assume o perfil de afetividade jurídica a partir das balizas que lhes são impostas. Para um melhor tratamento jurídico da afetividade deve ser destacada tal distinção.

Assim, para a relatora do julgado em apreço, a Ministra Nancy Andrighi, o dano moral por abandono afetivo se faria presente no caso concreto em questão “diante de uma obrigação inescapável dos pais em dar auxílio psicológico aos filhos. Aplicando a ideia do cuidado como valor jurídico”. Sendo assim,

A magistrada deduziu pela presença do ilícito e da culpa do pai pelo abandono afetivo, expondo frase que passou a ser repetida nos meios sociais e jurídicos: ‘amar é faculdade, cuidar é dever’ (TARTUCE, 2012, p. 2).

Em que pese o entendimento dos ministros não tenham sido por unanimidade, tendo havido voto em posição contrária do Ministro Massami Ueda, o qual se posicionou em prol do entendimento anterior seguido pelo Superior Tribunal, a relatora obteve apoio dos Ministros Sidnei Beneti e Paulo de Tarso Sanseverino.

Quanto à conceituação do que seja o abandono afetivo, Calderón (2013, p. 348) assevera que,

Embora seja cada vez mais recorrente e remissão à afetividade tanto pela doutrina como pela jurisprudência de direito de família, ainda não se percebe a consolidação e a estabilização do seu sentido jurídico na atualidade, o que pode ser um dos motivadores das inquietações advindas do referido julgado sobre abandono afetivo. É recomendável o enfrentamento do tema pelos juristas para verticalização desses significados, na esteira do que – de certo modo e ainda que brevemente – fez o acórdão que é objeto da presente análise.

Assim, por ser um tema novo que ainda desperta polêmicas e inquietações nos juristas, não existe no ordenamento jurídico um conceito expresso sobre o que seja abandono afetivo, tendo a jurisprudência e a doutrina um papel fundamental nessa maturação sobre o conceito, o alcance e os limites desse novo instituto consagrado pelo STJ, rompendo com visões tradicionais do direito que, até então, acreditavam que a afetividade não era assunto para o Poder Judiciário.

O Tribunal de Justiça do Estado de Goiás possui julgado do ano de 2013 fixando a indenização por abandono afetivo. Afinal, o juiz de direito, Dr. Danilo Luiz Meireles dos Santos, da 2ª Vara de Família e Sucessões da Comarca de Anápolis, condenou um genitor que foi ausente na criação de seu filho a pagar indenização por abandono afetivo.

Na referida condenação, o valor fixado foi de R$ 22.420,00, além do pagamento de alimentos ao adolescente, na quantia corresponde a 50% do salário mínimo por mês e, ainda, 50% de eventuais gastos com assistência médica, medicamentos e materiais escolares. Para o juiz,

A indenização tem, além do caráter punitivo e compensatório, função pedagógica, pois visa combater as atitudes que afrontam os princípios constitucionais de proteção e garantia da dignidade humana. No caso específico, as consequências psicológicas são consideradas irreversíveis e permanentes, pois nenhuma conduta do pai poderá amenizar os danos do abandono (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE GOIÁS, 2013, p. 01).

Em que pese o genitor tenha registrado o filho após o seu nascimento, ele nunca foi presente em seu crescimento, motivo pelo qual o filho alegou em Juízo que a ausência afetiva do pai produziu danos em sua formação psicológica e social.

O juiz entendeu que o abandono afetivo paternal feriu o princípio da dignidade humana, senão vejamos.

A afetividade se trata de um dever familiar, fundamental na formação do menor. Assim, se conclui que não se trata de mensurar os sentimentos, no caso, o amor paterno, mas sim, analisar se houve o descumprimento de uma obrigação legal (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE GOIÁS, 2013, p. 01).

O Tribunal de Justiça do Estado de Goiás tem se manifestado em seus julgados favoravelmente a inserção do conceito de afetividade no seio da família. Prova disso é que neste ano, no mês de janeiro, a 4ª Câmara Cível do Tribunal determinou a perda da guarda de trigêmeos recém-nascidos abandonados pelos genitores por 43 (quarenta e três) dias na maternidade.

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR. ABANDONO MATERIAL E AFETIVO. 1. O abandono, capaz de ensejar a destituição do poder familiar, se caracteriza também pela atitude omissiva dos genitores no que diz respeito à saúde, educação, formação, interesses morais, sociais e afetivos dos filhos, elementos essenciais que concorrem para a formação do indivíduo. 2. Na hipótese, tendo os genitores biológicos abandonado os recém-nascidos na maternidade, deixando ambos de se envolver com a criação dos infantes, mesmo após receberem alta hospitalar e, diante da desestrutura familiar e violência conjugal e o abandono material e afetivo dos trigêmeos, a destituição do poder familiar é medida impositiva, em atenção ao princípio do melhor interesse das crianças. 3. APELOS CONHECIDOS E DESPROVIDOS. SENTENÇA MANTIDA.

(TJGO, APELACAO CIVEL 243445-19.2011.8.09.0052, Rel. DES. KISLEU DIAS MACIEL FILHO, 4A CAMARA CIVEL, julgado em 18/12/2014, DJe 1708 de 16/01/2015)

Outo exemplo em que o Tribunal de Justiça de Goiás destaca posicionamento pautado pela imprescindível existência de vínculos afetivos no seio familiar é o seguinte:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR C/C MEDIDA PROTETIVA DE BUSCA E APREENSÃO DE MENOR E ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL. GUARDA PROVISÓRIA DEFERIDA. PRINCÍPIO DA PREVALÊNCIA DO INTERESSO DO MENOR. 1. A manutenção de criança no seio da família biológica pressupõe a existência de vínculos afetivos, o que costuma se estabelecer com o convívio. De outra parte, verificando-se o abandono da criança pela genitora, a paternidade desconhecida da infante, a boa-fé dos agravantes, o ambiente familiar favorável oferecido pelos guardiões de fato, bem assim o estreitamento do vínculo afetivo estabelecido entre eles e a infante durante o período de convivência, impõe-se a permanência da guarda provisória da menor aos cuidados dos agravantes. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.

(TJGO, AGRAVO DE INSTRUMENTO 149949-24.2013.8.09.0000, Rel. DES. ORLOFF NEVES ROCHA, 1A CAMARA CIVEL, julgado em 22/04/2014, DJe 1532 de 30/04/2014)

Em sua 1ª Câmara Cível, o Tribunal de Justiça goiano foi expresso no sentido de que o abando afetivo merece ser indenizado economicamente, senão vejamos.

AGRAVO REGIMENTAL NA APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE ALIMENTOS. VALOR DA PENSÃO. POSSIBILIDADE DO ALIMENTANTE. LIMITADA. REDUÇÃO. INDE­NIZAÇÃO POR DANO MORAL. ABANDONO AFETIVO. DEVIDO. MINORAÇÃO DO QUANTUM. AUSÊNCIA DE FATO NOVO. PREQUESTIONAMENTO. 1. Na fixação do valor dos alimentos ao filho menor o julgador deve avaliar as possibilidades do alimentante, bem como as necessidades do alimentando, nos termos do art. 1.694, § 1º, do Código Civil, a fim de estipular pensão condizente com a situação fática do caso concreto. Constatado que os alimentos afiguram-se despro­porcionais à capacidade financeira do alimentante, em razão do comprometimento de seus rendimentos integrais com outros gastos, torna-se razoável a redução do valor da verba fixada pelo magistrado singular. 2. O abandono afetivo por parte do genitor, capaz de gerar dor, vergonha e sofrimento, caracteriza dano moral passível de indenização. O valor arbitrado a título de indenização, deve atender aos parâmetros da razoabilidade e proporcionalidade. 3. Se a parte agravante não traz argumento suficiente para acarretar a modificação da linha de raciocínio adotada na decisão monocrática, impõe-se o desprovimento do agravo regimental, porquanto interposto sem elementos novos capazes de desconstituir o 'decisum' que deu parcial provimento ao apelo interposto pelo ora agravado. 4. No tocante ao prequestionamento, esclarece-se que dentre as funções do Judiciário não se encontra a de órgão consultivo. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO.

(TJGO, APELACAO CIVEL 356778-53.2012.8.09.0006, Rel. DR(A). CARLOS ROBERTO FAVARO, 1A CAMARA CIVEL, julgado em 14/01/2014, DJe 1472 de 27/01/2014) (grifo nosso)

Consoante julgado da 3ª Câmara Cível do mesmo Tribunal, o tema em estudo é naturalmente polêmico na jurisprudência e na doutrina, mas ressalva que para a fixação de ressarcimento pelo abandono afetivo, é imperioso a prova do parentesco, seja ele registral, biológico ou socioafetivo.

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE C/C ANULAÇÃO DE REGISTRO, ALIMENTOS E DANOS MORAIS POR ABANDONO AFETIVO. RÉU REVEL CITADO POR EDITAL. NOMEAÇÃO DE CURADORA ESPECIAL - ART. 9º, II, CPC. EXAME DE DNA CONCLUSIVO. ALIMENTOS. ATENDIMENTO AO BINÔNIMO NECESSIDADE/POSSIBILIDADE - ART. 1.694, § 1º, CC. DANOS MORAIS POR ABANDONO AFETIVO NÃO CONFIGURADOS NA ESPÉCIE. JUSTIÇA GRATUITA DENEGADA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS REDIMENSIONADOS. [...] 5 - A indenização por danos morais decorrentes de abandono afetivo nas relações parentais afigura-se matéria naturalmente polêmica, rendendo acirrado debate na doutrina e jurisprudência. 6. - Ainda que acolhida a tese de que possível o ressarcimento pelo abandono afetivo, consubstanciado no desrespeito aos primados constitucionais e atingindo a esfera dos direitos de personalidade do filho, notadamente o direito a ser cuidado, amado e respeitado, exige-se, para o acolhimento da teoria, a prova do parentesco, seja registral, biológico ou socioafetivo. Isso porque não se pode compelir a conduta de pai a alguém que intimamente não nutre essa convicção, nem punir sujeito que, suspeita-se, seja o genitor, mas não com plena certeza. [...] 9 - Apelo conhecido e parcialmente provido.

(TJGO, APELACAO CIVEL 199947-24.2010.8.09.0110, Rel. DR(A). FERNANDO DE CASTRO MESQUITA, 3A CAMARA CIVEL, julgado em 03/12/2013, DJe 1449 de 17/12/2013)

Ainda, a 6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Goiás reafirmou o entendimento sedimentado pelo STJ, favoravelmente à aplicação da responsabilidade civil ao seio familiar, destacando que o genitor que descumpre o dever objetivo de cuidado, pratica ato ilícito na modalidade omissiva, ensejando danos morais por abandono psicológico, caso estejam presentes os requisitos imprescindíveis à responsabilidade civil.

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. RESPONSABILIDADE CIVIL POR ABANDONO AFETIVO. 1- O Superior Tribunal de Justiça possui entendimento de que inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família. 2- O descumprimento do dever objetivo de cuidado paterno caracteriza ato ilícito na modalidade omissiva, ensejador da compensação por danos morais por abandono psicológico, acaso presentes os requisitos da responsabilidade civil (conduta, dano, nexo de causalidade e dolo/culpa). 3- Não havendo comprovação nos autos de que o pai possuía consciência do vínculo biológico e de sua omissão no dever de cuidado e educação de seu filho anteriormente à realização do exame de paternidade e da propositura da respectiva ação judicial, não há que se falar em omissão voluntária a ensejar ato ilícito e indenização por danos morais, nos termos do artigo 186 do Código Civil, posto que ausente o elemento subjetivo: dolo ou culpa. APELO CONHECIDO E DESPROVIDO.

(TJGO, APELACAO CIVEL 372372-97.2010.8.09.0129, Rel. DES. FAUSTO MOREIRA DINIZ, 6A CAMARA CIVEL, julgado em 07/08/2012, DJe 1124 de 15/08/2012)

Por sua vez, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul também esposa o mesmo entendimento, consagrando a afetividade nos laços familiares e a possibilidade jurídica da fixação de indenização em pecúnia em caso de abandono afetivo. Assim, em seu julgado, a 7ª Câmara Cível do referido Tribunal entendeu que:

[...] A fixação do quantum indenizatório requer prudência, pois, além de se valer para recuperar - quando é possível - o status quo ante, tem função pedagógica e compensatória, com o intuito de amenizar a dor do ofendido. 3. - É razoável o valor fixado na r. sentença, uma vez que a quantia de 100 (cem) salários mínimos nacionais é suficiente, no caso concreto, para indenizar o autor do abalo injustamente sofrido pelo filho apelante. Recurso do réu não conhecido e Recurso do autor desprovido.

(TJRS - 7ª Câm. Cível; ACi nº 70021592407-São Leopoldo-RS; Rel. Des. Ricardo Raupp Ruschel; j. 14/5/2008; v.u.)

A 2ª Câmara Cível do mesmo Tribunal enfatiza, ainda, que a afetividade configura-se como fato tão primordial nos laços familiares que sua ausência poderia ser fundamento suficiente, até mesmo, para a destituição do poder familiar.

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE ADOÇÃO. DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR. ADOÇÃO. REQUISITOS DO ARTIGO 1.638 DO CÓDIGO CIVIL. INTERPRETAÇÃO EM FAVOR DO INTERESSE DO MENOR. 1. - O poder familiar, antes de ser uma prerrogativa, constitui verdadeiro dever dos pais, a quem incumbe dirigir a criação e educação dos filhos. A sua destituição não é matéria entregue livremente ao arbítrio do Juiz, sendo necessário o atendimento de determinados requisitos, estabelecidos pelo artigo 1.638 do Código Civil. A destituição do poder familiar é sanção também aplicável à mãe ou ao pai que deixaram de demonstrar qualquer sentimento pelos filhos, deixando caracterizado o abandono afetivo. 2. - Declarada a destituição do poder familiar da mãe biológica e reconhecido o fato de que a convivência com a família substituta é a que melhor atende o interesse da menor, é de se julgar procedente o pedido de adoção, com a alteração do nome e averbação junto ao Cartório competente. APELAÇÃO CONHECIDA E PROVIDA. SENTENÇA REFORMADA.

(TJGO, APELACAO CIVEL 286506-34.2004.8.09.0032, Rel. DR(A). AMARAL WILSON DE OLIVEIRA, 2A CAMARA CIVEL, julgado em 28/09/2010, DJe 684 de 20/10/2010)

Por sua vez, a 1ª Câmara Cível ressaltou, em um caso concreto, que não é suficiente que genitor pague pensão alimentícia à filha, sendo imperiosa sua presença e cuidado no crescimento e no cotidiano da filha, sob pena de a filha sofrer abandono afetivo.

AGRAVO DE INSTRUMENTO. ACAO DE SEPARACAO JUDICIAL LITIGIOSA. ALIMENTOS PROVISORIOS. CRITERIO DE FIXACAO DO QUANTUM. PEDIDO DE REDUCAO AFASTADO. VISITACAO. DIREITO GARANTIDO AQUELE QUE NAO DETEM A GUARDA DA INFANTE. [...]. III - O DEVER DO PAI NAO SE LIMITA APENAS A CUSTEAR A MANTENCA DA FILHA, MAS TAMBEM DE PARTICIPAR ATIVAMENTE DA VIDA DELA, SOB PENA DA FILHA SOFRER ABANDONO AFETIVO, MORMENTE PORQUE A CRIANCA NAO PRECISA APENAS DO AMPARO MATERIAL, MAS TAMBEM DE CARINHO E DA PRESENCA PATERNA. [...]. AGRAVO CONHECIDO E PROVIDO PARCIALMENTE.

(TJGO, AGRAVO DE INSTRUMENTO 76830-3/180, Rel. DES. LUIZ EDUARDO DE SOUSA, 1A CAMARA CIVEL, julgado em 06/10/2009, DJe 452 de 04/11/2009) (grifo nosso)

Do mesmo modo, o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, representado por sua 5ª Câmara Cível, em um caso concreto levado à sua apreciação, posicionou-se no sentido de que a ausência afetiva do genitor configura ato ilícito passível de indenização por danos morais, senão vejamos.

APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE DANOS MORAIS – ABANDONO AFETIVO DE MENOR – GENITOR QUE SE RECUSA A CONHECER E ESTABELECER CONVÍVIO COM FILHO – REPERCUSSÃO PSICOLÓGICA – VIOLAÇÃO AO DIREITO DE CONVÍVIO FAMILIAR – INTELIGÊNCIA DO ART. 227, DA CR/88 – DANO MORAL – CARACTERIZAÇÃO – REPARAÇÃO DEVIDA – PRECEDENTES – ‘QUANTUM’ INDENIZATÓRIO – RATIFICAÇÃO – RECURSO NÃO PROVIDO – SENTENÇA CONFIRMADA. – A responsabilidade pela concepção de uma criança e o próprio exercício da parentalidade responsável não devem ser imputados exclusivamente à mulher, pois decorrem do exercício da liberdade sexual assumido por ambos os genitores.

(TJ-MG – AC: 10145074116982001 MG , Relator: Barros Levenhagen, Data de Julgamento: 16/01/2014, Câmaras Cíveis / 5ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 23/01/2014)

Sendo assim, verifica-se que a jurisprudência pátria tem se posicionado favoravelmente à fixação de indenização em caso de abandono afetivo paternal. Contudo, como é natural de um tema tão polêmico, uma parte minoritária esposa entendimento em sentido contrário, senão vejamos.

ACAO DE INDENIZACAO - DANOS MORAIS - ABANDONO AFETIVO - REQUISITOS PARA CONFIGURACAO DA RESPONSABILIDADE CIVIL - INEXISTENCIA. 1. - A RESPONSABILIDADE CIVIL ASSENTA-SE EM TRES INDISSOCIAVEIS ELEMENTOS, QUAIS SEJAM: ATO ILICITO, DANO E NEXO CAUSAL, DE MODO QUE, NAO DEMONSTRADO ALGUM DELES, INVIAVEL SE TORNA ACOLHER QUALQUER PRETENSAO RESSARCITORIA. 2. - O ABANDONO AFETIVO DO PAI NAO RENDE AO FILHO DIREITO A INDENIZACAO, JA QUE NAO NO ORDENAMENTO JURIDICO OBRIGACAO LEGAL DE AMAR OU DE DEDICAR AMOR. 3. - O DANO MORAL DECORRE DE SITUACOES ESPECIAIS, QUE CAUSAM IMENSA DOR, ANGUSTIA OU VEXAME, NAO DE MEROS ABORRECIMENTOS DO COTIDIANO, QUE ACONTECEM QUANDO SAO FRUSTRADAS AS EXPECTATIVAS QUE SE TEM EM RELACAO AS PESSOAS QUE NOS CERCAM. 4. - RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. SENTENCA MANTIDA.

(TJGO, APELACAO CIVEL 131468-4/188, Rel. DES. GERALDO GONCALVES DA COSTA, 3A CAMARA CIVEL, julgado em 18/08/2009, DJe 418 de 14/09/2009) (grifo nosso)

O fato é que o novo direito das famílias oxigenado por princípios constitucionais de alta carga axiológica tem feito a comunidade jurídica (re) pensar os velhos posicionamentos e as antigas concepções, mostrando que a principal finalidade do direito das famílias é a busca pela felicidade de seus membros e a efetivação em seu seio dos direitos fundamentais da pessoa humana.

3.6.1. A crescente aceitação na jurisprudência da afetividade

A expressiva novidade em estudo trazida ao ordenamento jurídico ensejou profundas divergências no que concerne ao reconhecimento de que o pai pode ser compelido a pagar indenização por danos morais por não ter sido presente nos momentos mais especiais da vida seus filhos e no seu cotidiano, ainda que tenha sempre cumprido com o seu dever de pagar alimentos.

Esse entendimento é fundamentado pelo princípio da dignidade da pessoa humana, aplicado ao direito das famílias através de uma interpretação civil-constitucional, como reconheceu, inclusive, o julgado a seguir colacionado, o qual foi o primeiro a reconhecer que a dor do abandono pode e merece ser indenizada.

Indenização. Danos morais. Relação paterno-filial. Princípio da dignidade da pessoa humana. Princípio da afetividade. A dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno, que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável, com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana.

(TJMG, AC 408.550-5, 7ª C. Cív., Rel. Unias Silva, j. 01/04/2004).

No entanto, tendo sido levado à apreciação do STJ, no ano de 2005, o Egrégio Tribunal reformou a decisão no sentido de que o abandono afetivo não renderia reparação pecuniária, senão vejamos.

Responsabilidade Civil. Abandono moral. Reparação. Danos morais. Impossibilidade. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159. do CC/16 [arts. 186. e 927, CC/02] o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária. Recurso Especial conhecido e provido.

(STJ, REsp 757.411 – MG, 4ª T., Rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 29/11/2005).

Mais tarde, no ano de 2012, o STJ, por sua Terceira Turma, reconheceria pela primeira vez a existência de dano moral em virtude do abandono afetivo, conforme apresentado em linhas volvidas.

Pois, o fato é que, nas palavras de Madaleno (2012, p. 01)

Volta e meia, juízes e tribunais têm se deparado com demandas buscando atribuir valor venal à negligência do afeto em postulações fundadas no inarredável princípio da dignidade da pessoa humana, no valor supremo de uma paternidade responsável, sobretudo, quando também é dever primordial da família, da sociedade e do Estado colocar a criança e o adolescente salvo de toda a forma de negligência, crueldade ou opressão.

Para Dias (2013, p. 471), “quem causa dano é obrigado a indenizar”, e no caso da reparação por abandono afetivo, “a indenização deve ser em valor suficiente para cobrir as despesas necessárias para que o filho possa amenizar as sequelas psicológicas”. Ainda, continua a referida autora afirmando que,

Não só o genitor que abandona o filho, mas também aquele que oculta do outro a existência do filho, impedindo o estabelecimento do vínculo de paternidade, deve ser responsabilizado. Tanto sofre dano o filho que não conheceu o pai, como este que, por não saber da existência do filho, ou ter sido dele afastado de forma a não conseguir conviver com ele. A genitora pode ser penalizada por sua postura e, ser condenada a indenizar o pai e o filho por ter ocasionado a ambos o dano afetivo.

A esse respeito, quando a genitora omite a gravidez e a paternidade, ou impende que o genitor venha a conviver com seu filho, tem-se o julgado a seguir colacionado, em que a reparação por abandono afetivo não é reconhecida em face do genitor pelo fato de que a ausência na vida de seu filho não se deu por sua vontade, senão vejamos.

Responsabilidade Civil. Família. Apelação em ação de compensação por danos morais. Abandono afetivo. Possibilidade excepcionalmente. Necessidade de demonstração de elementos atentatórios ao direito da personalidade. Não configuração de conduta do genitor contrária ao ordenamento jurídico. Improcedência. 1. A compensação por danos morais em razão de abandono afetivo é possível, em que pese exista considerável resistência da jurisprudência pátria, mas é hipótese excepcional. 2. Na espécie, o réu descobriu a existência de seu filho apenas 20 anos após o nascimento deste, sendo que aquele morava na Rússia em razão de serviço público. 3. A conduta do genitor apta a dar azo à “reparação” de direito da personalidade deve conter negativa insistente e deliberada de aceitar o filho, além do desprezo com relação a sua pessoa. 4. Não se vislumbram tais requisitos se o pai, tanto por desconhecimento desta condição, quanto por contingências profissionais, aceitou a paternidade sem contestar, mas não pôde ter contato mais próximo com seu filho, mormente tendo em vista jamais ter a genitora o procurado para exigir participação na criação da criança ou ao menos dizer que estava grávida. 5. Recurso conhecido e provido.

(TJDF, AC 20090110114820, 2ª C. Cív., Rel. Des. J. J. Costa Carvalho, j. 13/04/2011).

Faz-se imprescindível “reconhecer o caráter didático dessa orientação, despertando a atenção para o significado do convívio entre pais e filhos”, pois “mesmo que os genitores estejam separados, a necessidade afetiva passou a ser reconhecida como bem juridicamente tutelado” (DIAS, 2013, p. 472).

A indenização por abandono afetivo pode converter-se em instrumento de extrema relevância e importância para a configuração de um direito das famílias mais consentâneo com a contemporaneidade, podendo desempenhar papel pedagógico no seio das relações familiares (DIAS, 2013, p. 472).

Insta consignar que é luzente que um relacionamento ou um vínculo sustentado sob a ameaça de indenização financeira não se apresenta como a forma mais eficaz para se manter laços afetivos, mas, “ainda que o pai só visite o filho por medo de ser condenado a pagar uma indenização, isso é melhor do que gerar no filho o sentimento de abandono”. Afinal de contas, “se os pais não conseguem dimensionar a necessidade de amar e conviver com os filhos que não pediram para nascer, imperioso que a justiça imponha coactamente essa obrigação” (DIAS, 2013, p. 472), e continua a referida autora afirmando que,

No dizer de Rodrigo da Cunha Pereira, quem primeiro levou o tema à justiça, o abandono parental deve ser entendido como uma lesão extrapatrimonial a um interesse jurídico tutelado, causada por omissão do pai ou da mãe no cumprimento do exercício do poder familiar (CC, 1.634), o que configura um ilícito, sendo, portanto, fato gerador de obrigação indenizatória para as funções parentais. Dessa forma, o dano à dignidade humana do filho em estágio de formação deve ser passível de reparação material, não apenas para que os deveres parentais deliberadamente omitidos não fiquem impunes, mas, principalmente, para que, no futuro, qualquer inclinação ao irresponsável abandono possa ser dissuadida pela firme posição do Judiciário, ao mostrar que o afeto tem um preço muito alto na nova configuração familiar.

Para Madaleno (p. 05), “Há vozes que se posicionam em contrário à reparação do afeto que foi negado aos filhos, temendo que o pai condenado à pena por sua ausência jamais tornará a se aproximar daquele rebento”, caso em que nada contribuiria pedagogicamente “o pagamento da indenização para restabelecer o amor”.

Ainda, Madaleno (p. 01) acrescenta que, “A omissão injustificada de qualquer dos pais no provimento das necessidades físicas e emocionais dos filhos sob o poder parental tem propiciado o sentimento jurisprudencial e doutrinário de proteção” à criança e ao adolescente dos danos emocionais e psíquicos provocados pela privação de afeto na formação de sua personalidade.

Isso porque, “os filhos têm o direito à convivência com os pais e têm a necessidade inata do afeto do seu pai e da sua mãe, porque cada genitor tem uma função específica no desenvolvimento da estrutura psíquica de sua prole” (MADALENO, p. 03), de maneira que,

Tem gravíssima repercussão negativa qualquer injustificada frustração ao exercício do direito de visitas e do poder parental, quando os pais se omitem deste fundamental ditame da consciência e da natureza, cuja ausência consciente implica assumir a responsabilidade por irreparáveis efeitos negativos no resto da vida dos filhos, com sintomas de depressão, ansiedade, tristeza, insegurança e complexo de inferioridade na comparação com seus conhecidos e amigos (MADALENO, p. 03).

O novo olhar sobre direito das famílias fez com que a família deixasse de estar coberta por um manto que impedia que fosse enxergada como berço de danos que devem ser indenizados em pecúnia.

Nesse sentido, Madaleno (2012, p. 03) assevera que não se trata de ato ilícito no seio da família, mas sim de abuso de direito previsto no art. 187. do Código Civil Brasileiro, uma vez que,

O abuso de direito independe da culpa, pois sua noção extrapola a teoria da responsabilidade civil. Trata da imposição de restrições éticas ao exercício de direitos subjetivos, tendo em conta que no âmbito do conteúdo do direito de visitas e na obrigação de comunicação com seus filhos, existem espaços que não podem ser relegados e barreiras que não podem ser ultrapassadas. E no abuso do direito a pessoa justamente excede as fronteiras do exercício de seu direito, sujeitando-se às sanções civis, que passam pelas perdas e danos aferíveis em dinheiro. Existe uma linha tênue entre abuso do direito (art.187 do CC), e o abuso do poder familiar (ar. 1.630. do CC), sendo difícil e arriscado generalizar seus diagnósticos, pois cada situação exige um detido exame e talvez seu único denominador em comum seja que, de uma maneira ou de outra, em todas as hipóteses de abuso estará sendo comprometido o bem-estar psíquico e o interesse do menor. Abusa do direito de visitas o genitor que se omite do filho; que não tem afeto pela prole e nem lhe proporciona proteção, vestuário, alimentação adequada, afastando-se do dever que tem de transmitir aos filhos carinho e orientação.

O que é relevante, contudo, é a percepção da introdução da responsabilidade civil no seio familiar, impedindo abusos e trazendo à luz a valorização de conceitos imprescindíveis para toda família, qual seja, o afeto entre seus membros e a dignidade de seus integrantes.

3.6.2. A quantia a ser fixada na reparação pecuniária pelo abandono afetivo

Quanto à questão da reparação do dano causado pelo abandono afetivo, o STJ apenas mencionou que não lhe caberia intervir no valor fixado, de forma que apenas adentraria ao tema em casos de valores notoriamente irrisórios ou exacerbados.

No caso concreto levado à sua apreciação, o Superior Tribunal acabou por intervir por considerar o valor muito elevado.

Na hipótese, não obstante o grau das agressões ao dever de cuidado, perpetradas pelo recorrente em detrimento da sua filha, tem-se como demasiadamente elevado o valor fixado pelo Tribunal de origem – R$ 415.000,00 (quatrocentos e quinze mil reais) -, razão pela qual reduzo para R$ 200.000,00 (duzentos mil reais), na data do julgamento realizado pelo Tribunal de origem (26/11/2008) – e – STJ, fl. 429), corrigido desde então

(REsp 1159242/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 24/04/2012, DJe 10/05/2012).

A Ministra Relatora não apresentou em seu voto a justificativa dos critérios dos quais se valeram para fixar o valor na quantia acima mencionada. No entanto, deveriam ter sido elucidados quais foram os pressupostos que foram determinantes para a fixação da importância arbitrada, pois

O magistrado deve justificar detalhadamente a sua decisão, especificamente no que diz respeito à determinação da verba indenizatória. A decisão necessita ser adequadamente motivada, para que, tanto quanto possível, se reduza o ato nível de subjetivismo constante das decisões judiciais que hoje se vem proferindo em matéria de dano moral. Motivação, sublinhe-se, especificamente, do quantum debeatur. Só a sua fundamentação lógico – racional permitirá que se construa um sistema de indenizações justo, do ponto de vista da cultura do nosso país e do nosso tempo (MORAES, 2009, p. 334)

Por sua vez, o Ministro Sidnei Beneti destacou em seu voto que “é excessivo o valor fixado, porque não observada a proporcionalidade de ação e omissão do genitor, ora Recorrente, na causação do sofrimento moral à filha, ora Recorrida” (REsp 1159242/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 24/04/2012, DJe 10/05/2012). Segundo Calderón (2013, p. 387),

O critério final utilizado para fixar o valor da indenização pelo Ministro Beneti foi partir da análise dos seis fatos narrados principais na petição inicial como caracterizadores do abandono, todos com foco central na conduta paterna: 1 – aquisição de propriedades, por simulação, em nome de outros filhos; 2 – desatendimento a reclamações da autora quanto a essa forma de aquisição disfarçada; 3 – falta de carinho, afeto, amor e atenção, apoio moral, nunca havendo sentado no colo do pai, nunca recebendo conselhos, experiência e ajuda na escola, cultural e financeira. 4. – falta de auxílio em despesas médicas, escolares, abrigo, vestuário e outras; 5 – pagamento de pensão alimentícia somente por via judicial; 6 – somente ser reconhecida judicialmente como filha. Na sequência de sua análise, declarou o Ministro que os itens 1, 5 e 6 seriam de responsabilidade exclusiva paterna (e deveria assim balizar a fixação), já os demais – itens 2, 3 e 4 – poderiam ser de responsabilidade compartilhada ou obstados pela genitora, o que deveria ser ponderado e sopesado no momento da fixação do valor reparatório.

Com isso, o Ministro Sidnei Beneti entendeu que,

Deve-se dosar o valor dos danos morais, proporcionalmente à responsabilidade do genitor, ora Recorrente, em valor próximo à metade do valor fixado pelo Acórdão, ou seja, R$ 200.000,00, à mesma data do julgamento do Tribunal de Origem

(REsp 1159242/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 24/04/2012, DJe 10/05/2012).

É possível observar que o enfoque é sempre direcionado ao ofensor, afastando para segundo plano a dor e as lesões causadas à filha que foi vítima, de maneira que a finalidade é sempre penalizar o ofensor, e não propiciar uma compensação integral, adequada e digna à vítima pelos danos que lhe foram causados.

Mas, o ideal seria que a reparação nos casos de abandono afetivo não se desse somente através da quantificação em pecúnia pelo abandono sofrido, devendo haver formas alternativas para recomposição do dano afetivo, pois, a princípio, não seria viável fixar remuneração financeira para reparar um dano extrapatrimonial que não possui valor em pecúnia.

O dano afetivo atinge a dignidade da pessoa humana e os direitos da personalidade, os quais estão acima de qualquer quantificação monetária. No entanto, a responsabilidade civil não apresenta outra forma de reparação de danos que não seja a financeira.

É imprescindível o cuidado para que não haja uma monetarização do afeto, havendo até alguns que falam em “indústria do amor”, devendo-se evitar “uma patrimonialização excessiva das relações familiares” (CALDERÓN, 2013, p. 390).

Isso porque, “O dano gerado pelo abandono afetivo deve ser compensado, inclusive financeiramente na ausência de outra composição mais adequada, sendo esta forma usual para indenizar casos de dano moral em nosso sistema” (CALDERÓN, 2013, p. 391).

Os danos sofridos pelos filhos em função destes descumprimentos devem ser compensados, mas, dependendo da natureza daqueles, de forma diferente da habitual, ou seja, dinheiro. Caso o dano seja emocional, ou seja, se atingiu a psique da vítima, dever-se-ia compensá-la pelo pagamento de um tratamento psicológico ou até mesmo psiquiátrico […]. Consequentemente, quando este tratamento for ineficaz ou não recomendável, diante de diagnóstico realizado por profissional habilitado, a compensação deverá ser mesmo em dinheiro (VIANNA, in TEIXEIRA; RIBEIRO, 2010, p. 447).

Certamente, o melhor é que não se permita a ocorrência de abandono afetivo parental, o que deve ser um compromisso de toda a sociedade. Mas, caso ele exista, a lesão causada na vítima deve ser reparada, e a única forma que o direito pode compelir o genitor a compensar os danos causados é através do pagamento de indenização.

Nesse sentido, leciona Rolf Madaleno (p. 14),

Foi-se o tempo dos equívocos das relações familiares gravitarem exclusivamente na autoridade do pai, como se ele estivesse acima do bem e do mal apenas sua antiga função provedora, sem perceber que deve prover seus filhos muito mais de carinho do que de dinheiro, ou vantagens patrimoniais.

É cediço que, caso o magistrado vislumbre no caso concreto outra maneira de compensar o dano causado, como através de conciliação entre as partes ou pela aproximação afetiva entre genitor e filho, seria mais aconselhável do que a fixação de indenização financeira. Porém, não tem como o magistrado compelir o genitor a se aproximar do filho e a lhe proporcionar afeto, então o ordenamento jurídico fez o que pôde, fez o que estava a seu alcance e, como o dano sofrido da vítima não pode ficar sem reparação, deve fixar-se a compensação mesmo que financeira, mas sempre com a finalidade precípua de proteção à vítima e em consideração ao sofrimento que lhe fora ocasionado.

Sobre a autora
Loyanne Verdussen de Almeida Firmino Calafiori

Escrivã Judiciária e Encarregada de Escrivania de Família, Sucessões, da Infância, da Juventude, Cível e Juizado Especial Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás. Graduada em Direito pela Pontífica Universidade Católica de Goiás. Pós-graduada em "Direito Civil - Atualização no novo Código Civil de 2002" pela Universidade Federal de Goiás. Pós-graduada em "Direito Material e Processual do Trabalho" pela Universidade Cândido Mendes. Pós-Graduanda em Direito Notarial e Registral pela Universidade Anhanguera (UNIDERP). Mestra em Direito, Relações Internacionais e Desenvolvimento pelo programa de mestrado da Pontifícia Universidade Católica de Goiás, tendo obtido nota máxima na banca de defesa de dissertação. Durante seu mestrado, foi selecionada como bolsista integral da CAPES. Exerceu a advocacia entre os anos de 2012 e 2013, até ter sido aprovada em concurso público para integrar o quadro de servidores efetivos do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, onde ocupa, ainda, a função de Tutora dos Cursos de Ensino à Distância da Escola Judicial e Técnica em Preparação Psicossocial e Jurídica de Adotantes.

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