Resumo: O novo “direito das famílias”, permeado pela valorização do afeto nos laços familiares, representado por recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, fez surgir uma nova modalidade de indenização decorrente da ausência de afeto paternal, reconhecendo que o abandono afetivo possui valor jurídico, constituindo uma violação do direito fundamental ao afeto agasalhado pela Constituição Federal. Isso porque, até muito pouco tempo atrás, o ordenamento jurídico nunca havia se preocupado em oferecer uma resposta aos filhos abandonados afetivamente pelos pais, mas agora, após anos e anos de omissão, o Judiciário, enfim, retira as vendas de seus olhos, consagrando a família como ninho de afeto e seio de solidariedade entre seus membros. O fato é que o abandono afetivo não tem preço e nunca terá, pois o dinheiro jamais poderá apagar das lembranças dos filhos rejeitados as ausências injustificadas dos pais em momentos que jamais voltarão. Contudo, por mais que essas situações fossem comuns, o Poder Judiciário somente agora se despertou para elas. Esse novo entendimento, fruto do neoconstitucionalismo e da irradiação de suas normas sobre a família, avançou a passos largos na despatrimonialização dos laços familiares ao reconhecer que o afeto é imprescindível na concretização da dignidade da pessoa humana, rompendo com uma doutrina tradicionalista que apenas enxergava na obrigação do pai o único dever de pagar alimentos, restando desonerado de todo e qualquer dever outro com relação ao filho. O ordenamento jurídico não poderia forçar o pai a amar seu filho, mas fez o que estava ao seu alcance, reconhecendo que a maior contribuição que um pai pode ofertar ao seu filho é o afeto, a presença, o cuidado e o amparo, não somente lhe oferecendo bens que o dinheiro pode pagar, mas, sobretudo, proporcionando-lhe cuidado, que nada mais é do que o compromisso de assegurar afeto.
Palavras–chave: afetividade; abandono; neoconstitucionalismo; direitos fundamentais; responsabilidade civil.
INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas, o direito das famílias passou por intensas transformações à luz das modificações ocorridas na estrutura familiar contemporânea. Afinal, a família vista sob olhos do passado, a qual era enxergada com uma concepção institucionalista, como um núcleo patrimonial centrado na autoridade do pai de família, cedeu espaço à família eudemonista, a qual aposta no estreitamento de laços afetivos e na solidariedade entre seus membros.
Assim, sob o olhar da contemporaneidade, a família existe em função do afeto entre seus membros, sendo um espaço destinado à realização afetiva e de concretização da felicidade de seus integrantes. O fato é que as transformações na família trouxeram um desafio à comunidade jurídica pátria, qual seja, o de repensar no conceito de família à luz dos princípios constitucionais da afetividade e da solidariedade, abandonando formalidades de um passado apegado à família que não possuía o compromisso de felicidade de seus membros.
O direito das famílias abre os olhos, então, para o futuro, mas sem descurar da realidade do presente, trazendo novos desafios para o Direito, os quais têm sido solucionados diante da constitucionalização do Direito Civil, por meio da aplicação de princípios explícitos e implícitos com escopo de tutelar os direitos fundamentais da pessoa humana.
Essa nova feição do Direito das Famílias concebe a família como espaço voltado à realização afetiva de seus membros, sendo que a afetividade assume na contemporaneidade o fundamento das relações familiares. Prova disso é que um mosaico de novas entidades familiares foram reconhecidas, passando a ser insuficientes as categorias jurídicas existentes no passado para classificar as estruturas familiares, de modo que passou-se a conceber uma família eudemonista ou afetiva, compromissada mais com o afeto nos laços familiares, menos aprisionada a padrões pré determinados.
Imprescindível, porém, se faz mencionar que o reconhecimento da afetividade no seio familiar deve-se ao princípio constitucional da solidariedade familiar, o qual confere aos membros da família o dever de cuidarem e ampararem um ao outro, com responsabilidades mútuas, sendo a família um ninho de realização pessoal de seus membros.
Assim, o novo olhar sobre o direito das famílias trouxe uma nova forma de se pensar a família, como sendo mais voltada à convivência familiar, aos laços afetivos e à solidariedade, sendo esses vértices orientadores de todos os institutos jurídicos relacionados à família.
Mas, insta consignar que nem sempre foi assim. O direito de família contemporâneo é fruto de um processo histórico que ocorreu com a evolução dos direitos fundamentais da pessoa humana, tendo como principal marco a constitucionalização das normas de direito de família trazida pelo neoconstitucionalismo, fenômeno que propiciou uma verdadeira “oxigenação” nos institutos de direito família, os quais passaram a ser concebidos sob a perspectiva dos princípios constitucionais basilares insculpidos na Carta Magna.
A família passou a ter como escopo a realização afetiva de seus integrantes e a dignidade da pessoa humana, as quais somente poderiam ser garantidas com a pluralidade das entidades familiares, através da igualdade e da liberdade nos relacionamentos familiares e a convivência e solidariedade entre seus membros.
Diante da evolução dos direitos fundamentais da pessoa humana e com as transformações pela quais passaram a sociedade, o Direito, permeável que é, adaptou-se à realidade social, em um processo lento e gradativo, pois a legislação vigente não regia relações afetivas que eram levadas à apreciação dos tribunais, e uma interpretação precipuamente formal limitou-se por muito tempo à letra da lei, sem estar preparada para enfrentar essas novas situações a serem enfrentadas pelo Direito.
Até o advento da recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), reconhecendo que o abandono afetivo paternal possui valor jurídico e que, por isso, deve ser indenizado pecuniariamente, muitos outros casos análogos levados à apreciação do Poder Judiciário não tiveram o mesmo resultado. Isso porque, a maioria dos magistrados não reconheciam o valor jurídico do afeto por não estar expresso na lei, o que acabava por presentear a irresponsabilidade paterna.
Nesse sentido, a doutrina e a jurisprudência tiveram primordial importância na superação do formalismo e do apego à lei, para, finalmente, desenvolver-se a consagração do valor da afetividade no seio dos laços familiares.
O relacionamento afetivo passou a ser priorizado em detrimento, inclusive, de laços sanguíneos, uma vez que o elo biológico passou a ser considerado menos importante do que a afetividade. Para a jurisprudência mais moderna, a socioafetividade é por si só suficiente para o vínculo parental. Essa nova concepção sobre a família alicerçada na afetividade desnudou novas formas de enxergar diversos institutos de direito de família, como por exemplo, a pluralidade na conceituação de entidade familiar, a igualdade entre irmãos havidos ou não na constância no matrimônio, o advento do conceito de alienação parental, dentre outros.
No entanto, ainda é fervoroso o debate envolvendo a questão se deve ou não o Direito reconhecer a afetividade e se esta deve ser erigida a princípio jurídico ou somente como um valor relevante.
A doutrina se encontra divida principalmente entre três correntes. Para a primeira delas, a afetividade seria um princípio implícito do direito de família brasileiro, descrito na Constituição Federal, o que denota sua imprescindibilidade nas relações familiares, devendo, pois, ser observado em toda e qualquer análise sobre os institutos de família. Entre seus principais autores, destacam-se, Maria Helena Diniz, Flávio Tartuce e José Fernando Simão, Caio Mário da Silva Pereira, Rolf Madaleno, Carlos Roberto Gonçalves, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, Maria Berenice Dias e Rodrigo da Cunha Pereira. Os defensores dessa primeira corrente são os que mais se destacam na mudança paradigmática da família à luz da constitucionalização do direito das famílias.
Por outro lado, os defensores da segunda corrente pregam a tese de que a afetividade seria apenas um valor relevante a ser observado, mas sem estar inserida no rol dos princípios do direito das famílias, são eles, Fábio Ulhoa Coelho, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, Paulo Nader, Arnoldo Wald e Eduardo de Oliveira Leite.
Por sua vez, a terceira corrente se manifesta totalmente contrária à afetividade como sendo princípio, aduzindo, inclusive, que não deveria nem mesmo ser tratada pelo Direito. Dentre seus autores é possível arrolar: Regina Beatriz Tavares da Silva, Marco Túlio de Carvalho Rocha e Roberto Senise Lisboa.
Entretanto, um estudo mais aprofundado sobre o tema pode ser suficiente para a melhor compreensão do que é a afetividade, elidindo os obstáculos trazidos pela segunda e pela terceira corrente, objetivo a que se dedica o presente trabalho.
Por meio do estudo da evolução da afetividade nas relações familiares e no ordenamento jurídico brasileiro será possível compreender o novo entendimento do Superior Tribunal de Justiça, para o qual o amar é uma faculdade, mas o cuidado com o filho é dever de todo pai, cuidado este que nada mais é do que compromisso de afeto com a prole.
Desta feita, não basta mais que o pai pague pensão alimentícia ou ofereça bens materiais ao filho. O Direito quis mais, fez o que pôde, que é buscar garantir ao filho a presença e o afeto do pai.
Dessa maneira, o presente trabalho busca apresentar as implicações jurídicas do abandono afetivo paternal e suas diversas facetas. No Capítulo I, aborda-se a presença dos direitos fundamentais na família à luz do neoconstitucionalismo, destacando a força normativa da Constituição Federal sobre o Novo Código Civil, bem como a eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações familiares, considerando o afeto como um direito fundamental. Assim, o abandono afetivo paternal seria uma verdadeira violação de direitos fundamentais da pessoa humana, uma vez que a presença de afeto paternal seria corolário do princípio constitucional da afetividade e da dignidade da pessoa humana.
O Capítulo II procura destacar o conceito moderno de família e sua evolução histórica que culminou com o pluralismo no direito de família brasileiro. Ainda, expõe a compreensão sobre a despatrimonialização do direito de família em decorrência da valorização do afeto, bem como o nascimento e a evolução histórica do afeto nos laços familiares. Elucida também que o descumprimento do dever se convivência familiar provoca danos à personalidade do filho, enaltecendo a imprescindível função da afetividade no seio familiar.
Por sua vez, o Capítulo III procura descrever o princípio da afetividade e o abandono moral no sistema jurídico brasileiro e suas consequências, sobretudo a responsabilidade civil originada em decorrência da ofensa à dignidade humana, bem como os pressupostos e elementos do dever de indenizar por abandono afetivo paternal e a crescente aceitação jurisprudencial da afetividade.
Desta feita, os objetivos específicos do presente estudo são: demonstrar que o afeto familiar é protegido pela Constituição Federal, sendo um direito fundamental, bem como é protegido pelo Código Civil em diversos de seus institutos; evidenciar que, por ser agasalhado pela Carta Magna, o afeto é considerado como direito constitucional de eficácia horizontal, suscetível de ser invocado ao Estado em face de outrem; elucidar que o reconhecimento do valor do afeto no seio da família é fruto de um processo histórico em que as leis aos poucos foram reconhecendo cada vez mais a família como espaço de concretização da felicidade e de realização existencial afetiva, com a solidariedade recíproca cada vez mais presente nos debates relativos à família, culminando com o novo “direito das famílias”; demonstrar que, diante do neoconstitucionalismo e da irradiação de suas normas sobre o direito de família, houve a despatrimonialização da família e o rompimento com uma tradição que apenas enxergava a família sob o viés patrimonial, reconhecendo que o afeto e a solidariedade recíproca no seio da família são muito mais valiosos à dignidade do que somente o pagamento de alimentos pelo genitor.
Ainda, almeja-se demonstrar que de nada adiantaria o ordenamento jurídico consagrar o afeto em diversos momentos se não houvesse uma penalização daquele genitor que descumprisse tal proteção ao filho; bem como procura-se elucidar quais os pressupostos da responsabilidade civil pela ausência de afeto paternal e demonstrar como os tribunais pátrios têm tratado em recente jurisprudência o instituto do dano afetivo.
1. DIREITOS FUNDAMENTAIS NA FAMÍLIA À LUZ DO NEOCONSTITUCIONALISMO
O tema que representa o escopo do presente estudo corresponde à apreciação do abandono afetivo paterno e sua consequente possibilidade de indenização decorrente do sofrimento e dos prejuízos causados ao filho abandonado, sobretudo à luz dos dolorosos danos afetivos causados pela ausência do pai, pela falta de seu afago, de suas palavras de carinho, do balanço de seu berço e da dor do filho em não ter a quem entregar o presente feito na escola especialmente para a festa comemorativa do dia dos pais (DIAS, 2012, p. 02).
E o que dizer do caso concreto em que a filha teve que bater às portas do Poder Judiciário a fim de pleitear o sonho de embalar sua valsa de formatura acompanhada do pai que sempre lhe rejeitou afetivamente?
O fato é que essas ausências não têm preço. Nunca terão. O dinheiro jamais poderá apagar das lembranças dos filhos rejeitados as ausências injustificadas dos pais em momentos que jamais voltarão.
Contudo, por mais que essas situações sejam sobejamente comuns, o Poder Judiciário somente recentemente se voltou para elas. Até muito pouco tempo atrás, o ordenamento jurídico nunca havia se preocupado em oferecer uma resposta aos filhos abandonados sentimentalmente pelos pais, mas agora, agora sim, após anos e anos de omissão, o Judiciário, enfim, retira as vendas de seus olhos e, representado por recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, reconhece de maneira inédita que a dor do abandono merece, sim, ser indenizada, avançando a passos largos na despatrimonialização dos laços de família ao reconhecer que o afeto é imprescindível na concretização da dignidade da pessoa humana e rompendo com uma doutrina tradicionalista que apenas enxergava na obrigação do pai o único dever de pagar alimentos, restando desonerado de todo e qualquer dever outro para com o filho.
Essa antiga concepção da obrigação do pai restrita a pagar alimentos tornava os filhos como sendo uma espécie de “estorvo”, do qual o genitor poderia facilmente “se livrar” com o mero pagamento de alimentos (DIAS, 2012, p. 02).
No entanto, “nem só de pão vive o homem”, sendo que a maior doação que um pai pode fazer a seu filho é o afeto, a presença e o cuidado. O ordenamento jurídico não poderia forçar o pai a amar seu filho, mas fez o que estava a seu alcance, que é obrigar o pai a cuidar e amparar o filho em seu crescimento, não somente lhe oferecendo bens que o dinheiro pode pagar, como alimentos, vestuário, assistência médica e educação, dentre outros, mas, sobretudo, oferecendo-lhe cuidados, que nada mais é do que o compromisso de assegurar afeto.
Desta feita, a nova perspectiva do “direito das famílias”, permeada pela valorização do afeto nas relações familiares, em consonância com o princípio constitucional da afetividade, fez surgir uma nova modalidade de indenização por dano afetivo, recentemente consagrado pelo Superior Tribunal de Justiça ao julgar caso concreto levado à sua apreciação, motivo pelo qual é sobejamente relevante o estudo e o aprofundamento nesse novo instituto que nasce em nosso ordenamento jurídico.
Assim, para Salomão (2014, p. 01), o “Abandono afetivo é termo hoje encontrado com relativa frequência no âmbito forense e nos mais variados manuais de direito de família”, consistindo “na indiferença afetiva dispensada por um genitor a sua prole, um desajuste familiar que sempre existiu na sociedade e, decerto, continuará a existir, desafiando soluções de terapeutas e especialistas”. No entanto,
O que é relativamente recente, contudo, é a transferência dessa contenda própria do ambiente familiar para as salas de audiências e tribunais país afora, essencialmente sob a forma de indenizações pecuniárias buscadas pelo filho em face do pai, ao qual se imputa o ilícito de não comparecer aos atos da vida relacionados ao desenvolvimento social e psíquico de seu descendente (SALOMÃO, 2014, p. 01).
O fato é que o princípio constitucional da afetividade trouxe à família a proteção de seus direitos fundamentais, de maneira que os interesses patrimoniais não mais podem se sobrepor ao sentimento de afeto e de solidariedade reconhecidos juridicamente no seio da família, a qual, nas próprias palavras da lei, esboçada na Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06, 5º, II), é uma relação íntima de afeto.
Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 teve papel fundamental na valorização da afetividade nos laços familiares, pois o novo olhar trazido pela Carta Magna às famílias reconheceu o amor e o afeto como pilares dos vínculos familiares, instalando “uma nova ordem jurídica para a família, atribuindo valor jurídico ao afeto” (DIAS, 2013, p. 74).
Assim, tendo a Constituição Federal uma nova forma de enxergar a família sob o viés do afeto em detrimento do patrimônio, irradiou-se a todas as demais leis infraconstitucionais um novo olhar sobre a família, nascendo no ordenamento jurídico pátrio novos valores e princípios norteadores dos laços familiares. A respeito, Dias (2013, p. 64) elucida que,
Os princípios constitucionais representam o fio condutor da hermenêutica jurídica, dirigindo o trabalho do intérprete em consonância com os valores e interesses por eles abrigados. É no direito das famílias onde mais se sente o reflexo dos princípios que a Constituição Federal consagra como valores sociais fundamentais, e que não podem se distanciar da atual concepção da família, com sua feição desdobrada em múltiplas facetas. Daí a necessidade de revisitar os institutos de direito das famílias, adequando suas estruturas e conteúdo à legislação constitucional, funcionalizando-os para que se prestem à afirmação dos valores mais significativos da ordem jurídica.
O princípio constitucional da afetividade é implícito na Constituição Federal, sendo fruto do princípio da dignidade da pessoa humana, o qual encontra previsão no Art. 1º, III, da Carta Magna, sendo um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito.
Nesse sentido, conforme traz à baila Streck (2009, p. 37), “A noção de Estado Democrático está, pois, indissociavelmente ligada à realização dos direitos fundamentais [...] aquilo que se pode denominar de plus normativo do Estado Democrático de Direito [...]”.
Na medida em que a ordem constitucional erigiu a dignidade da pessoa humana como fundamento da ordem jurídica, “houve uma opção expressa pela pessoa, ligando todos os institutos à realização de sua personalidade. Tal fenômeno provocou a despatrimonialização e a personalização dos institutos de família”, colocando “a pessoa humana no centro protetor do direito” (DIAS, 2013, p. 66).
Assim, para reduzir a posição individualista e patrimonialista na qual se fundava o antigo olhar sobre o direito das famílias, com o advento da Constituição Federal de 1988, passou-se a interpretar as leis infraconstitucionais e, dentre elas, as leis que regem o direito das famílias, dentro de um contexto interpretativo constitucional, de onde emerge o neoconstitucionalismo.
Com o advento do neoconstitucionalismo, a Constituição Federal tornou-se protagonista no ordenamento jurídico pátrio, servindo de fonte nascedoura de todas as demais normas jurídicas, reconhecendo a força normativa dos princípios carregados de elevados valores axiológicos e abrindo espaço ao debate moral (VALE, 2009, p. 129). Nesse aspecto, acrescenta Piovesan (2003, p. 355),
Os princípios constitucionais, concebidos originariamente, sob a perspectiva privatista, como fonte subsidiária do direito, passaram, sob a perspectiva publicista, a assumir o caráter de normas impositivas preponderantes nos principais sistemas constitucionais ocidentais.
Por sua vez, o escopo do neoconstitucionalismo é a concretização das normas constitucionais (e dentre elas encontram-se os princípios), os quais ganham destaque no ordenamento jurídico, servindo de vértice orientador para interpretação de todas as normas legais infraconstitucionais (HOGEMANN e SOUZA, 2013, p. 60).
Para Piovesan (2003, p. 360), “O estudo dos princípios fundamentais de cada constituição revela seu núcleo, donde se extrai toda a sua força normativa e, por isso, necessariamente, molda todo o cenário jurídico a ela subjacente.” (2003, p. 360).
O neoconstitucionalismo traz, portanto, ao direito das famílias os princípios constitucionais da família, dentre os quais se encontram os princípios da dignidade da pessoa humana, da solidariedade familiar, do pluralismo das entidades familiares e da afetividade, emancipando a instituição da família a enxergar em seu seio ideais supremos, que superam o valor do patrimônio, quais sejam, o afeto e a solidariedade nos laços familiares.
Isso porque, o novo olhar sobre o direito das famílias é baseado nos princípios constitucionais carregados de valores morais, os quais acabam por aperfeiçoar a maneira de se interpretar as “frias” normas positivas que até então traduziam o direito das famílias, uma vez que, “o neoconstitucionalismo alenta um ideário humanista, que aposta na possibilidade de emancipação humana pela via jurídica, através de um uso engajado da moderna dogmática constitucional” (SARMENTO, 2009, p. 5).
Desta feita, o neoconstitucionalismo integrou ao direito das famílias os direitos fundamentais trazidos pela Constituição Federal, de forma que “a partir do neoconstitucionalismo, passa-se, neste momento, à análise do direito fundamental ao afeto”, o qual é “corolário do valor supremo que fornece sentido e razão ao Estado Democrático de Direito” (HOGEMANN e SOUZA, 2013, p. 74).
Desta feita, o neoconstitucionalismo trouxe o “reconhecimento da força normativa dos princípios jurídicos e valorização da sua importância no processo de aplicação do Direito”, bem como ensejou a “constitucionalização do Direito, com a irradiação das normas e valores constitucionais, sobretudo os relacionados aos direitos fundamentais, para todos os ramos do ordenamento” (SARMENTO, 2009, p. 1).
Essa nova forma de se interpretar o ordenamento jurídico fez com que houvesse uma valorização do afeto nos laços familiares ao se atribuir aos princípios constitucionais que regem as famílias uma superioridade em detrimento da norma legal positiva. Para Sarmento (2009, p. 17) “a constitucionalização louvada e defendida pelo neoconstitucionalismo é aquela que parte de uma interpretação extensiva e irradiante dos direitos fundamentais e dos princípios mais importantes da ordem constitucional.”
Segundo Carbonell (2009, p. 197), o neoconstitucionalismo ensejou práticas judiciais que “passaram a recorrer a princípios constitucionais, à ponderação e a métodos mais flexíveis de interpretação, sobretudo na área de direitos fundamentais”.
Dessa maneira, verifica-se que o novo olhar sobre as famílias valorizou os laços familiares, fundamentando-os no afeto. Nesse contexto, o neoconstitucionalismo instaurou uma nova ordem jurídica à família, conferindo valor jurídico ao afeto, de modo que se torna possível afirmar que o princípio vértice orientador sobre o qual todas os laços familiares devem ser enxergados, seja o princípio constitucional da afetividade.
1.1. A força normativa da Constituição Federal: “Filtragem Constitucional”.
O questionamento sobre porquê foi abandonado seguramente atormenta a todos os filhos que não foram reconhecidos ou embalados pelos genitores. No entanto, nunca se preocupou a seara jurídica em oferecer uma resposta a esses filhos rejeitados afetivamente pelo genitor, o que se afigura como sendo o problema, ou melhor, o desafio, que impulsiona o presente estudo.
A lei e o Poder Judiciário se mantiveram omissos, “com uma venda nos olhos” diante de tal situação. “Basta lembrar que a lei impedia o reconhecimento do filho ilegítimo, o que não penalizava o pai, mas o próprio filho, como se fosse dele a culpa por ter sido gerado fora do casamento”, conforme muito bem lembra Maria Berenice Dias (2012, p. 01).
Por outro lado, ainda segundo a aludida autora, “a crença e o costume de que o filho era responsabilidade da mãe, afinal, havia saído de seu ventre, consolidavam a irresponsabilidade paterna”.
Assim, até então, a única obrigação do genitor em relação à prole consistia em pagar alimentos, restando desonerado de todo e qualquer dever outro para com o filho.
Contudo, reconhecer, como historicamente sempre aconteceu, que a obrigação do pai somente seria a de pagar alimentos, seria o mesmo que comparar os filhos a objetos, ou melhor, em um estorvo do qual seria possível se livrar mediante o simples pagamento de alimentos, sem nenhuma preocupação a mais com a personalidade, os sentimentos e o desenvolvimento desse filho (DIAS, 2012, p. 02).
No ano de 2005, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) afastou o dever do pai de indenizar o filho por abandono afetivo no julgamento de um caso concreto submetido à sua apreciação, em que o genitor, após contrair novas núpcias, teria abandonado sentimentalmente o filho que era fruto de seu relacionamento anterior.
No entanto, de maneira inédita, em meados de 2012, passados 7 (sete) anos, a Terceira Turma do STJ, à luz da nova perspectiva do novo “direito das famílias”, consagrou o valor jurídico da indiferença afetiva ao apreciar caso semelhante, reconhecendo que a dor do abandono merece, sim, ser indenizada, uma vez que “a responsabilidade pelo filho não se pauta somente no dever de alimentar, mas se insere no dever de possibilitar desenvolvimento humano aos filhos, com base no princípio da dignidade da pessoa humana”.
Mesmo que o juiz não possa obrigar o pai a sentir amor pelo filho, o ordenamento jurídico se enlaça na contínua missão de tornar as relações familiares permeadas por laços de afeto e cuidados, à luz do princípio constitucional da afetividade e do princípio da solidariedade familiar.
Inclusive, nos termos do que ressalvou a ministra Nancy Andrighi na ementa do novel julgado do STJ, “Amar é faculdade, cuidar é dever”, e continua, “Aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem filhos”, de modo que o amor estaria alheio ao campo legal, situando-se no metajurídico, filosófico, psicológico ou religioso.
No entanto, o instituto do dano afetivo ainda se apresenta muito recente no ordenamento jurídico e evidente que, como tal, ele ainda não é amplamente aceito pelos tribunais brasileiros, de modo que está apenas “engatinhando” em prol de seu reconhecimento como legitimador da existência de afeto nos vínculos familiares.
Assim, o problema da histórica omissão do Poder Judiciário em relação a tal instituto e de sua, ainda, resistência em aplicá-lo a casos concretos, revela-nos que o dano afetivo ainda possui eficácia tímida e, exatamente por isso, precisa de se debruce sobre suas potencialidades, examinando suas notáveis contribuições à valorização do afeto familiar, considerando que a família constitui um cenário de busca à felicidade e de realização pessoal, pois “A família precisa da felicidade como premissa de base maior para a sua subsistência permanente, independente dos influxos que a modernidade possa sugerir em suas ambiguidades ou contradições. A família não é somente um retrato na parede” (ALVES, 2013, p. 02).
Nesse sentido, o neoconstitucionalismo trouxe um novo olhar sobre o direito das famílias, erigindo os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da afetividade como fontes inspiradores para a interpretação das normas positivas que regulam os laços familiares.
Isso porque, através da chamada “filtragem constitucional do Direito”, os princípios insculpidos na Constituição Federal passaram a ser lentes sobre as quais todo o ordenamento jurídico pátrio deve ser enxergado e,
Além disso, a Constituição de 88 regulou uma grande quantidade de assuntos - muitos deles de duvidosa dignidade constitucional - subtraindo um vasto número de questões do alcance do legislador. Ademais, ela hospedou em seu texto inúmeros princípios vagos, mas dotados de forte carga axiológica e poder de irradiação. Estas características favoreceram o processo de constitucionalização do Direito, que envolve não só a inclusão no texto constitucional de temas outrora ignorados, ou regulados em sede ordinária, como também a releitura de toda a ordem jurídica a partir de uma ótica pautada pelos valores constitucionais - a chamada filtragem constitucional do Direito (SARMENTO, 2009, p. 7).
Dessa forma, através de uma interpretação a partir da “filtragem constitucional do Direito”, “a análise dos princípios fundamentais de cada constituição revela seu núcleo, donde se extrai toda a sua força normativa e, por isso, necessariamente, molda o cenário jurídico regulamentado por ela” (HOGEMANN e SOUZA, 2013, p.68)
Foi a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 que nasceu uma nova concepção sobre a tutela dos direitos fundamentais, muito mais centrada na proteção da dignidade da pessoa humana, a qual, por sua vez, elegeu o afeto como verdadeiro valor jurídico, erigindo-o como direito fundamental a ser garantido pelo Estado Democrático de Direito (HOGEMANN e SOUZA, 2013, p.69).
Para Barroso (2007, p. 8), o neoconstitucionalismo e a consequente nova forma de se interpretar o direito de família enseja a valorização dos princípios em detrimento ao positivismo exacerbado, de forma que os princípios constitucionais adquirem normatividade, passando os direitos fundamentais a serem a lente sobre a qual deve-se orientar o intérprete, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana.
Desse modo, a “filtragem constitucional do Direito” propõe a constitucionalização do direito de família de maneira que todas as relações familiares devem ser apreciadas sob a ótica introduzida pela Constituição Federal de 1988, a qual, farta de princípios, inova o ordenamento jurídico pátrio com um novo olhar sobre as famílias sustentado no afeto e na dignidade humana como fundamentos para a busca da felicidade no seio familiar. Isso porque, o novo direito das famílias, na expressão de Michel Perrot, é menos sujeito à regra e mais compromissado com o desejo (DIAS, 2013, p. 74), desejo este de emancipação de seus membros e de uma vida digna e feliz, voltada à valorização da pessoa humana que compõe a família.
1.2. A eficácia do novo Código Civil brasileiro após a Constituição de 1988
O Estado, através da Constituição Federal, impõe a si um rol imenso de obrigações com relação aos seus cidadãos, como direitos individuais e sociais, tendo por finalidade garantir a dignidade de todos, sendo que, essa postura de oferecer cuidados nada mais é do que o compromisso de assegurar afeto. Desse modo, o Estado seria o primeiro a assegurar afeto por seus cidadãos (DIAS, 2013, p. 72).
Contudo, ainda que a palavra afeto não apareça no texto constitucional, a Carta Magna enlaçou o afeto e o princípio da afetividade em diversos momentos, como quando reconhece como entidades familiares merecedoras da tutela jurídica as uniões estáveis, tornando luzente que a afetividade que une e enlaça duas pessoas, adquiriu reconhecimento e valor no sistema jurídico brasileiro. Ou seja, houve a constitucionalização de um modelo de família que conferiu maior espaço para o afeto e para a realização individual.
Do mesmo modo, o princípio constitucional da afetividade fez despontar a igualdade entre irmãos biológicos e adotivos, e o respeito a seus direitos fundamentais, de maneira que o sentimento de solidariedade recíproca não pode ser perturbado pela preponderância de interesses patrimoniais. Reconhecer o afeto como valor jurídico representa um salto à frente da pessoa humana nas relações familiares.
Assim, a Constituição faz enxergar que os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência familiar, não do sangue, sendo a própria posse de estado de filho nada mais é do que o reconhecimento jurídico do afeto, com o luzente escopo de garantir a felicidade, como um direito a ser alcançado.
A chave da normatização e da efetivação do direito à felicidade, enquanto Direito Social, parece uma boa alternativa. No âmbito da família isso é ainda mais importante, pois somente diálogo, amparo, tolerância, compreensão, cuidado, proteção, mediação de conflitos, assistência social, solidariedade, respeito, podem tornar possível as formas de realização deste tecido de valores que permitam um ambiente familiar capaz de resistir às ondas de transformação do mundo moderno (BITTAR, apud ALVES, 2013, p.02).
Nesse sentido, para Lôbo (2009, p. 327),
O macroprincípio da solidariedade perpassa transversalmente os princípios gerais do direito de família, sem o qual não teriam o colorido que os destaca, a saber: o princípio da convivência familiar, o princípio da afetividade, o princípio do melhor interesse da criança.
Para Maria Berenice Dias, “A família transforma-se na medida em que se acentuam as relações de sentimentos entre seus membros: valorizam-se as funções afetivas da família”, e continua, “A família e o casamento adquiriram novo perfil, voltados muito mais a realizar os interesses afetivos e existências de seus integrantes”, “menos sujeitas à regra e mais ao desejo, na expressão de Michel Perrot” (DIAS, 2013, p. 73).
A consagrada autora nos elucida que a comunhão de afeto se torna incompatível com um modelo único de família, razão pela qual a afetividade passou a fazer parte das cogitações dos juristas, com a finalidade de justificar as relações familiares contemporâneas.
Além disso, “o novo olhar sobre a sexualidade acabou por valorizar os vínculos conjugais, sustentando-se no amor e no afeto” (DIAS, 2013, p. 74). Assim, diante dessa nova perspectiva, o “direito das famílias” passou a atribuir valor jurídico ao afeto, tanto que a própria Lei Maria da Penha define família como uma relação íntima de afeto.
Assim, a nova roupagem trazida pelo “direito das famílias” torna os laços familiares como cenário para a busca da felicidade e para a realização pessoal, ninho de afeto e solidariedade recíproca, contexto no qual não se afigura mais possível afirmar que a única obrigação paterna seja a de pagar alimentos a seus filhos, vez que a maior doação que um pai pode oferecer a seus filhos é afeto.
Nesse sentido, após a introdução ao ordenamento jurídico pátrio dos princípios constitucionais nos laços familiares, o Código Civil deve ser interpretado sob um novo olhar, através da denominada “filtragem constitucional do Direito” trazida pelo neoconstitucionalismo. Pois, “a fonte primária para a solução dos conflitos nas relações privadas que, antes da CF/88, era o Código Civil, passou a ser a Carta Constitucional” (SILVA, 2013, p. 205).
A Constituição se tornou, então, o fundamento para interpretação de todo o Direito. Isso porque, “O direito de família recebeu uma nova roupagem oriunda da Constituição Federal de 1988. Seguindo as tendências constitucionais, o Código Civil tratou rapidamente de acompanhar o ritmo da Carta Magna” (SOUZA, 2013, p. 13).
Isso porque, no início do século passado, na vigência do antigo Código Civil de 1916, a família era concebida tão somente pelo matrimônio (em prol da patrimonialização das relações familiares), havendo uma discriminatória visão da família.
Ainda, o Código Civil de 1916 impedia a dissolução do casamento, “fazia distinções entre seus membros e trazia qualificações discriminatórias às pessoas unidas sem casamento e aos filhos havidos dessas relações” (Dias, 2010, p. 30). Dessa maneira, sob a égide do antigo Código, “As referências feitas aos vínculos extramatrimoniais e aos filhos ilegítimos eram punitivas e serviam exclusivamente para excluir direitos, na vã tentativa da preservação do casamento”, ou seja, a felicidade e a dignidade dos membros da família eram sacrificadas em prol da manutenção do casamento. A esse respeito, Mariano (2009, p. 3) elucida que,
A família matrimonializada do início do século passado era tutelada pelo Código Civil de 1916. Este código tinha uma visão extremamente discriminatória com relação à família. A dissolução do casamento era vetada, havia distinção entre seus membros, a discriminação, às pessoas unidas sem os laços matrimoniais e aos filhos nascidos destas uniões, era positivada.
No mesmo sentido, assevera Boeira (1999, p. 20),
A noção codificada de família, quando da elaboração, no Brasil, do Código Civil de 1916, em face de uma sociedade basicamente rural, revelava uma família que funcionava como uma unidade de produção, importando para tanto ser numerosa, uma vez que em número expressivo de membros representava uma maior força de trabalho e maiores condições de sobrevivência de todo o grupo. Esse modelo de família era chefiado por um homem, que além de exercer o papel de pai e marido, detinha toda a autoridade e poder sustentados numa estrutura patrimonial. Daí as características patriarcais e hierarquizadas do modelo centrado na chefia do marido, ocupando a mulher e os filhos uma posição de inferioridade no grupo familiar. Todo o sistema originário do Código Civil tem como base a família como grupo social de sangue com origem no casamento.
Por sua vez, Gama (2008, p. 30) acrescenta que,
O Código Civil de 1916 apresentava um Direito de Família aristocrático, ou seja, aquele que tinha por objetivo tutelar a família “legítima”, detentora de patrimônio e da paz doméstica, como valores absolutos, sem qualquer conteúdo ético e humanista nas relações travadas entre os participantes de tal organismo familiar.
No entanto, “a evolução social trouxe também alterações legislativas diretamente voltadas para a família” (MARIANO, 2009, p. 1), pois as mudanças gradativas pelas quais passaram as famílias ao longo do tempo, fizeram com que houvessem necessárias e sucessivas alterações na legislação. Contudo, a maior transformação pela qual passou o direitos das famílias foi certamente o advento da Constituição Federal de 1988, a qual “num único dispositivo, espancou séculos de hipocrisia e preconceito” (DIAS, 2013, p. 30), uma vez que a Carta Magna,
Instaurou a igualdade entre o homem e a mulher e esgarçou o conceito de família, passando a proteger de forma igualitária todos os seus membros. Estendeu igual proteção à família constituída pelo casamento, bem como à união estável entre o homem e a mulher e à comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, que recebeu o nome de família monoparental. Consagrou a igualdade dos filhos, havidos ou não do casamento, ou por adoção, garantindo-lhes os mesmos direitos e qualificações. Essas profundas modificações acabaram derrogando inúmeros dispositivos da legislação então em vigor, por não recepcionados pelo novo sistema jurídico (DIAS, 2013, p. 30).
Assim, para Fachin (1996, p. 83), com o advento da Carta Magna, o Código Civil perdeu seu papel de protagonista do direito de família, passando a Constituição Federal a ser a principal fonte normativa para regular as relações familiares, sobretudo com a aplicação dos princípios constitucionais da família, de forma que “O moderno enfoque dado à família pelo direito volta-se muito mais à identificação do vínculo afetivo que enlaça seus integrantes (DIAS, 2013, p. 31).
Para Dias (2013, p. 10), é o afeto que identifica uma relação jurídica como pertencente ao direito de família, deslocando-a das relações obrigacionais, senão vejamos.
O afeto foi reconhecido como o ponto de identificação das estruturas de família. É o envolvimento emocional que subtrai um relacionamento do âmbito do direito obrigacional – cujo núcleo é a vontade – e o conduz para o direito das famílias, cujo elemento estruturante é o sentimento de amor, o elo afetivo que funde as almas e confunde os patrimônios, fazendo gerar responsabilidades e comprometimentos mútuos.
Desse modo, é imperioso reconhecer que, “a família retratada no Código Civil de 1916 já não existe”, pois “Aquela família patriarcal, hierarquizada, centrada no matrimônio transforma-se hoje numa comunidade fundada no afeto, cujos membros se unem por um sentimento de solidariedade” (RENON, 2009, p. 81). Assim,
Com o advento da Constituição de 1988 e, posteriormente, o Código Civil de 2002, a família foi alçada sob o enfoque da tutela individualizada dos seus membros, ou seja, a visão constitucional apresenta o homem como centro da tutela estatal, valorizando cada componente do núcleo familiar de forma individual e não apenas a instituição familiar (RENON, 2009, p. 110).
Isso porque, “A família, no século XIX, era marcadamente patriarcal, e estruturava-se em torno do patrimônio familiar, visto que sua finalidade era, principalmente, econômica” (PEREIRA, 2006, p. 179). Desse modo,
O vínculo familiar tinha fundamentos formais. A família era, praticamente, um núcleo econômico e, tinha também grande representatividade religiosa e política. O pater famílias era o grande homem, o grande chefe, que acumulava em suas mãos uma imensa gama de poderes. A mulher, por seu turno, limitava-se à execução das tarefas domésticas e à criação dos filhos, de modo a garantir o normal andamento das diretrizes familiares. Com o passar do tempo, a estrutura familiar foi sofrendo paulatinas modificações. Com o feminismo e a inserção da mulher no mercado de trabalho, esta estrutura hierárquica e tradicional sofreu transformações importantes (PEREIRA, 2006, p. 179).
Nesse sentido, Dias (2013, p. 361) traz à baila que, “A necessidade de preservação do núcleo familiar – leia-se, preservação do patrimônio da família – autorizava que os filhos fossem catalogados de forma absolutamente cruel”, tanto que somente após dissolvido o vínculo matrimonial do genitor é que se tornava possível o registro do filho havido de relação fora do casamento, o que demonstra o quão discriminatória era a legislação da época.
Fazendo uso de terminologia plena de discriminação, os filhos se classificavam em legítimos, ilegítimos e legitimados. Os ilegítimos, por sua vez, em divididos em naturais ou espúrios. Os filhos espúrios se subdividiam em incestuosos e adulterinos. Essa classificação tinha como único critério a circunstância de o filho ter sido gerado dentro ou fora do casamento, isto é, do fato de a prole proceder ou não de genitores casados entre si. Assim, a situação conjugal do pai e da mãe refletia-se na identificação dos filhos: conferia-lhes ou subtraia-lhes não só o direito à identidade, mas também o direito à sobrevivência. Basta lembrar o que estabelecia o Código Civil anterior, em sua redação originária (CC/16 358): os filhos incestuosos e os adulterinos não podem ser reconhecidos. Clóvis Beviláqua já alertava: a falta é cometida pelos pais, a desonra recai sobre os filhos. A indignidade está no fato do incesto e do adultério, mas a lei procede como se estivesse nos frutos infelizes dessas uniões condenadas (Dias, 2013, p. 361). (grifo nosso)
Todavia, a família sofreu expressivas transformações ao longo do tempo, rumo à valorização de seus membros e ao seu reconhecimento como seio de busca da felicidade e como ninho de afeto e de dignidade humana, de modo que houve a vedação constitucional ao tratamento discriminatório com relação aos filhos havidos na constância ou não do matrimônio em seu art. 227, §6o, “o que levou à revogação do dispositivo do Código Civil que vedava o reconhecimento dos filhos espúrios” (DIAS, 2013, p. 362). Além disso, outras mudanças significativas merecem destaque, senão vejamos.
A família deixou de ter muitos membros para ser nuclear. A mulher rompeu as barreiras do lar e assumiu uma carreira profissional. Sua contribuição financeira tornou-se essencial para a subsistência familiar. Diante de sua saída dos limites domésticos, fez-se necessária a efetivação da presença masculina, compartilhando as tarefas familiares, o que provocou, por conseguinte, um repensar do exercício da paternidade.
Assim, a família aos poucos passou a ser vista como laços de afetividade, abandonando seu caráter econômico e patrimonial. O casamento entre os genitores passou a ser fato irrelevante para o tratamento legal conferido aos filhos, tendo todos os mesmos direitos de reconhecimento, de alimentos e de afeto, pois “negar reconhecimento ao filho é excluir-lhe direitos, é punir quem não tem culpa, é brindar quem infringiu os ditames legais”, pois “O nascimento de filho fora do casamento colocava-o em uma situação marginalizada para garantir a paz social do lar formado pelo casamento do pai. Prevaleciam os interesses da instituição matrimônio” (DIAS, 2013, p. 361) em detrimento da felicidade e da dignidade de cada um dos seus membros.
Desta feita, a família, “agora não mais uma instituição com fim em si mesma, assume um caráter instrumental, passando a meio de promoção da pessoa”. (FARIAS; ROSENVALD, 2008, p. 6).
Nesse diapasão, os membros de uma família passam a viver em espírito de solidariedade e cooperação, buscando auxílio recíproco, promovendo a realização pessoal daqueles com quem dividem o espaço mais íntimo e privado. Nessa nova ótica de interação, a família estruturada sob a orientação afetiva encontra ambiente favorável ao desenvolvimento de potencialidades, à formação integral da pessoa, uma vez que, construída sobre o cuidado, o respeito, o afeto e o amor - palavras semanticamente próximas - passam a merecer especial conteúdo valorativo na perspectiva da família constitucionalizada deste novo milênio (CABRAL, 2009, p. 02).
A esposa, por sua vez, deixou de ser objeto de propriedade do marido, deixando de estar presa ao casamento por motivos de dependência financeira e por subsistência, de forma que a família passou a ser estruturada sobre o afeto, uma vez que a mulher passou a ter condições de se manter por seu próprio trabalho. Assim,
A realização pessoal da afetividade e da dignidade humana, no ambiente de convivência e solidariedade, é a função básica da família de nossa época. Suas antigas funções econômica, política, religiosa e procracional feneceram, desapareceram, ou desempenham papel secundário. Até mesmo a função procracional, com a secularização crescente do direito de família e a primazia atribuída ao afeto, deixou de ser sua finalidade precípua (LÔBO, 2004, p. 155).
Assim, “O casamento por amor fez uma grande revolução nas relações de família. A partir daí as famílias deixaram de ser preponderantemente núcleos econômicos e reprodutivos. Surge o divórcio, já que o amor às vezes acaba” (PEREIRA, 2013, p. 01), em uma nova concepção sobre a família, na qual,
O afeto tornou-se um valor jurídico e em consequência surgiram diversas configurações de famílias conjugais e parentais, para além do casamento: uniões estáveis hetero e homoafetivas, multiparentalidade, famílias monoparentais, simultâneas, mosaico etc (PEREIRA, 2013, p. 01).
Desta feita, o novo olhar trazido pela Constituição Federal ao direito das famílias enxerga a família permeada por afeto em seu seio,
Um afeto que enlaça e comunica as pessoas, mesmo quando estejam distantes no tempo e no espaço, por uma solidariedade íntima e fundamental de suas vidas – de vivência, convivência e sobrevivência – quanto aos fins e meios de existência, subsistência e persistência de cada um e do todo que formam (BARROS, 2002, p. 9).
Sendo assim, “A família contemporânea, com o declínio do patriarcalismo, tornou-se um instituto de natureza afetiva. Nas relações familiares o vínculo sanguíneo não é mais a sua principal característica, hoje, ele é secundário” (HAMADA, 2013, p. 09), pois o principal elemento que fundamenta os laços familiares passou a ser o afeto entre seus membros.
Portanto, o Código Civil de 2002 deve ser interpretado com os olhos da Constituição Federal de 1988, sob a lente dos princípios constitucionais da família, os quais valorizam muito mais os laços afetivos que unem e nutrem o afeto e a solidariedade entre os membros da família do que a mera norma positiva, tornando o direito mais humano e o direito das famílias o mais humano de todos os direitos (BARROS, 2003, p. 143).
1.3. Eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações familiares: o afeto como direito fundamental
O afeto familiar é protegido pela Constituição Federal, sendo um direito fundamental, bem como é protegido pelo Código Civil em diversos de seus institutos. Por ser agasalhado pela Carta Magna, o afeto é considerado como direito constitucional de eficácia horizontal, suscetível de ser invocado ao Estado em face de outrem.
O reconhecimento do valor do afeto no seio da família é fruto de um processo histórico em que as leis aos poucos foram reconhecendo cada vez mais a família como cenário de busca à felicidade e de realização individual, com a solidariedade recíproca cada vez mais presente nos debates relativos à família, culminando com o novo direito das famílias. Nesse sentido, segundo Hogemann (2003, p. 144):
O direito ao afeto, cujo objeto é o sentimento maior que garante o agrupamento humano por um laço mais forte do que uma simples conjunção de interesses e assim dá consistência aos demais direitos humanos da família. Realmente, desde sua origem, a família é recoberta com um manto de ternura e carinho, de dedicação e empenho, mas também de responsabilidade para com quem se cativa. Esse manto protetor é o afeto, ao qual o direito deve dedicar especial atenção, sob pena de pôr em risco a própria garantia jurídica da família. Isso, porque o direito ao afeto é o mais imprescindível à saúde física e psíquica, à estabilidade econômica e social, ao desenvolvimento material e cultural de qualquer entidade familiar
Diante do neoconstitucionalismo e da irradiação de suas normas sobre o direito de família, houve a despatrimonialização da família, ou seja, o rompimento com uma tradição que apenas enxergava a família sob o viés patrimonial, reconhecendo que o afeto e a solidariedade recíproca no seio da família são muito mais valiosos à dignidade do que somente o pagamento de alimentos pelo genitor.
É imprescindível o reconhecimento de que a dor do abandono possui sim valor jurídico, sendo essa uma violação do direito fundamental ao afeto que nasce no seio da família e no texto da Constituição Federal, de modo que a indiferença afetiva gera dano que merece ser reconhecido e mensurado economicamente.
Até pouco tempo atrás, quando ocorria a separação do casal, a única obrigação do genitor era de pagar alimentos, permanecendo desonerado de todo e qualquer dever em relação ao filho.
O primeiro passo a favor da elaboração da responsabilidade civil paterna pelo abandono afetivo aconteceu quando nasceu a possibilidade de se identificar a verdade biológica por meio do exame de DNA, de modo que a perversa alegação de que a
genitora teria uma vida sexual promiscua, deixou de levar à improcedência da ação investigatória de paternidade.
Ainda, o Poder Judiciário despertou-se para critérios psicossociais que trouxeram à prova de que é indispensável a presença de ambos os genitores para o saudável crescimento do filho.
Assim, finalmente, surgiu o conceito de paternidade responsável, o que fez com que a lei passasse a priorizar a guarda compartilhada. Da mesma forma, o reconhecimento dos danos causados pela alienação parental deu ensejo à penalização do genitor que procurar impedir o convívio dos filhos com o outro.
Todas essas transformações conduziram à valorização dos laços afetivos no seio da família, sendo este um direito de índole constitucional, vez que a Carta Magna agasalha que a família possui o dever de assegurar a crianças, adolescentes e jovens, com absoluta prioridade, o direito à convivência familiar.
Da mesma forma, ao garantir a igualdade entre homem e mulher, assegura a Constituição Federal que a ambos são atribuídos os deveres e direitos inerentes à sociedade conjugal, sendo a responsabilidade para com os filhos tanto da mãe quanto do pai.
Portanto, é imprescindível o reconhecimento de que não viver sob o mesmo teto não exime o genitor de obrigações ou encargos em relação à prole, pois a ausência de concepção na constância do matrimonio em nada afeta o vínculo de parentalidade de cada um com os filhos, que perdura para sempre.
É exatamente por esse motivo que o Código Civil atribui a ambos os pais o poder familiar e o dever de convívio e de guarda, independente de eles manterem ou não entre si um relacionamento amoroso, sob pena, inclusive, de serem penalizados por crime de abandono, delito sujeito à pena de 6 (seis) meses à 3 (três) anos de detenção.
Desta feita, de nada adiantaria que, a começar pela Constituição Federal, todo o ordenamento jurídico pátrio consolidasse a importância do afeto nas relações entre genitor e prole se a ausência de afeto não pudesse gerar consequências e a penalização dos genitores que abandonaram ou rejeitaram afetivamente seus filhos.
Assim é que se destaca a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça que, pela primeira vez, reconheceu que a ausência de afeto enseja indenização, não de dano moral, mas de dano afetivo que pode ser mensurado economicamente.
Isso porque, o afeto é um direito fundamental, pois “não se pode pensar na vida humana sem pensar na família”, “uma implica a outra, necessariamente, e por isso é que o direito à vida implica o direito à família, fundando-o como o mais fundamental dos direitos familiais” (BARROS, 2003, p. 04). Ainda, complementa o referido autor que,
Outros direitos humanos fundamentais também se ligam à família. A liberdade, a igualdade, a fraternidade, a solidariedade, a segurança, o trabalho, a saúde, a educação e, enfim, a própria felicidade humana e tantos outros valores que são objeto de direitos humanos fundamentais e operacionais, todos eles se ligam ao direito à família e se realizam mais efetivamente no lar. No entanto, o lar sem o afeto desmorona. Por isso, o direito ao afeto constitui o primeiro dos direitos humanos operacionais da família, seguido pelo direito ao lar, cuja essência é o afeto. O lar sem o afeto é uma mentira de lar. Mas, assegurado pelo afeto, o lar é o recinto basilar da família, que a congrega. Para ele a família converge. Nele a família convive. Daí, que nos seus vários aspectos – o físico, o social, o econômico e o psíquico – o direito ao lar se associa aos demais direitos humanos operacionais da família, os quais se escalonam em diversos graus de fundamentalidade. (grifo nosso)
Assim, “os direitos humanos da família são verdadeiros direitos difusos, que não podem ser negados a nenhum sujeito humano. Não comportam, nem suportam nenhuma discriminação”, de forma que “a afetividade é o fundamento e finalidade da família” (BARROS, 2003, p. 04).
Nesse sentido, “o afeto é um elemento essencial de todo e qualquer núcleo familiar, inerente a todo e qualquer relacionamento conjugal ou parental” (PEREIRA, 2006, p. 180).
Imprescindível é notar que o reconhecimento do afeto como valor jurídico é fruto de um processo histórico que foi se desenvolvendo ao longo dos anos com a elaboração de leis cada vez mais protetivas da dignidade da pessoa humana e da solidariedade no seio da família, rompendo com uma tradição que beirava à patrimonialização do direito de família, a qual apenas tutelava a família sob o viés patrimonial.
1.4. O abandono afetivo como violação de direitos fundamentais da pessoa humana
1.4.1. O afeto parental como corolário do princípio constitucional da afetividade e da dignidade da pessoa humana
Todos vieram de um berço, foram recebidos neste mundo por pessoas que os protegeram, os cuidaram, os amamentaram, enfim, os deram o dom da vida. Essas pessoas que cuidam do recém-nascido ensinando-lhe os primeiros passos são os genitores, os quais na velhice também necessitarão desfrutar da mesma dedicação e amparo fornecido com tanto empenho aos filhos. Essa é a solidariedade recíproca fundamentada no princípio da afetividade que permeia o instituto da família em nossa sociedade contemporânea.
Nesse sentido, Roudinesco (2003, p. 10), citando Lévi- Strauss, nos elucida que “a vida familiar apresenta-se em praticamente todas as sociedades humanas, mesmo naquelas cujos hábitos sexuais e educativos são muito distantes dos nossos”, assim, a família “é um fenômeno universal, presente em todos os tipos de sociedades”.
Para o nascimento da família, por sua vez, é necessária a existência prévia de “duas outras famílias, uma pronta a oferecer o homem, a outra uma mulher, que por seu casamento farão nascer uma terceira e assim indefinidamente”, consoante agasalha Roudinesco (2003, p. 10), mencionando Claude Lévi-Strauss.
No entanto, os laços que unem a família se apresentam muito mais fortes do que o sangue, nos termos do que elucida, ainda, Roudinesco (2003, p. 10) prosseguindo com menção à Lévi-Strauss, senão vejamos:
O que diferencia realmente o homem do animal é que, na humanidade, uma família não seria capaz de existir sem sociedade, isto é, sem uma pluralidade de famílias prontas a reconhecer que existem outros laços afora os da consanguinidade. (grifo nosso)
A esse respeito, Roudinesco (2003, p. 12) muito bem enfatiza que o afeto familiar e o pátrio poder sobre o filho são frutos de uma evolução histórica, tendo a família passado por três grandes períodos, e prossegue destacando que,
Numa primeira fase, a família dita “tradicional” serve acima de tudo para assegurar a transmissão de patrimônio. Os casamentos são então arranjados entre os pais sem que a vida sexual e afetiva dos futuros esposos, em geral unidos em idade precoce, seja levada em conta. Nessa ótica, a célula familiar repousa em uma ordem do mundo imutável e inteiramente submetida a uma autoridade patriarcal, verdadeira transposição da monarquia de direito divino. Numa segunda fase, a família dita “moderna” torna-se receptáculo de uma lógica afetiva cujo modelo se impõe entre o final do século XVIII e meados do XX. Fundada no amor romântico, ela sanciona a reciprocidade dos sentimentos e os desejos carnais por intermédio do casamento. Mas valoriza também a divisão do trabalho entre os esposos, fazendo ao mesmo tempo do filho um sujeito cuja educação sua nação é encarregada de assegurar. A atribuição da autoridade torna-se então motivo de uma divisão incessante entre o Estado e os pais, de um lado, e entre os pais e as mães, de outro. Finalmente, a partir dos anos 1960, impõe-se a família dita “contemporânea” – ou “pós-moderna” -, que une, ao longo de uma duração relativa, dois indivíduos em busca de relações íntimas ou realização sexual. A transmissão da autoridade vai se tornando cada vez mais problemática à medida que divórcios, separações e recomposições conjugais aumentam.
A figura paterna autoritária, de herói e guerreiro nos tempos arcaicos, quando representava a encarnação de Deus na família, reinando sobre seus membros e decidindo sobre os castigos infligidos aos filhos, deu espaço ao pai contemporâneo idealizado pela Constituição Federal com maior percepção sentimental, mais solidário e, sobretudo, mais receptível ao afeto do que ao patrimônio.
Conforme Roudinesco (2003, p. 14) menciona, o pai toma posse de seu filho, “primeiro porque seu sêmen marca o corpo deste, depois porque lhe dá seu nome”. De modo que, o genitor “transmite, portanto, ao filho um duplo patrimônio: o do sangue, que imprime uma semelhança, e o do nome – prenome e patronímico, que confere uma identidade”.
No entanto, o fator afeto sempre deve se fazer presente nas relações paternais, por ser o afeto um direito fundamental corolário dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da afetividade. Nesse sentido, vejamos o escólio de HOGEMANN e SOUZA (2013, p. 71),
É sabido que os princípios fundamentais, dispostos nos artigos 1º a 4º da Constituição Federal de 1988, representam o substrato fundamental de todo o sistema jurídico, estando dentre eles o princípio da dignidade da pessoa humana. Sob tal perspectiva, a dignidade pode ser conceituada como a norma maior que orienta o neoconstitucionalismo, dotando-lhe de especial racionalidade, unidade, sentido e valor. (...) De acordo com Sarlet (2012), diante da tentativa de uma racionalização e apreensão de sentido, a dignidade da pessoa humana pode ser definida como: A qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.
A concepção sobre o caráter normativo dos princípios ficou consolidada em Bobbio, Del Vecchio, Esser e Dworkin. Mas, foi Robert Alexy quem deu passos adiante, ao elaborar uma teoria que fez uma distinção entre princípios e regras e enfrentou a questão da colisão dos princípios.
Alexy consagrou os princípios como normas de um grau de generalidade relativamente alto, e esse reconhecimento de que princípio é considerado norma jurídica que pode ser invocada e de que os valores constitucionais devem permear todo o ordenamento jurídico foram grandes conquistas introduzidas no ordenamento jurídico pelo neoconstitucionalismo, pois conforme traz à baila Sarmento (2009, p. 1), o Direito Constitucional “vem sofrendo mudanças profundas nos últimos tempos, relacionadas à emergência de um novo paradigma tanto na teoria jurídica quanto na prática dos tribunais, que tem sido designado como “neoconstitucionalismo”.
O princípio da afetividade não se encontra expressamente previsto na Constituição Federal, ele decorre da interpretação do princípio da dignidade da pessoa humana, o qual, por sua vez “é o princípio maior, fundante do Estado Democrático de direito, sendo afirmado já no primeiro artigo da Constituição Federal” (BARROS, 2007, p. 59). Assim,
O Princípio da Afetividade está diretamente vinculado ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, tendo em vista que a afetividade não está expressamente assegurada na Constituição Federal de 1988, nem no Código Civil, sendo este decorrente de mera interpretação do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, uma vez que ambos asseguram o digno desenvolvimento do ser humano perante a entidade familiar (REHBEIN e SCHIRMER, 2010, p. 13).
Para Lôbo (2008, p. 08), “o princípio da afetividade está implícito na Constituição”, pois “encontram-se na Constituição fundamentos essenciais do princípio, constitutivos dessa aguda evolução social da família brasileira”.
Nesse sentido, para Dias (2013, p. 73), “A família transforma-se na medida em que se acentuam as relações de sentimentos entre seus membros: valorizam-se as funções afetivas da família”, uma vez que, “A família e o casamento adquiriram novo perfil, voltados muito mais a realizar os interesses afetivos e existenciais de seus integrantes”, por isso, “a afetividade entrou nas cogitações dos juristas, buscando explicar as relações familiares contemporâneas”.
Com um novo olhar sobre o direito das famílias voltado à despatrimonialização do Direito Civil, que erigiu a dignidade da pessoa humana a fundamento da República Federativa do Brasil,
Toda a ordem jurídica focou-se na pessoa, em detrimento do patrimônio, que comandava todas as relações jurídicas interprivadas. Sem dúvida, a família é o lugar privilegiado de realização da pessoa, pois é o locus onde ela inicia seu desenvolvimento pessoal, seu processo de socialização, onde vive as primeiras lições de cidadania e uma experiência pioneira de inclusão no laço familiar, a qual se reportará, mais tarde, para os laços sociais (MANERICK, 2009, 529).
Desta feita, o princípio da dignidade da pessoa humana e sua inclusão no direito das famílias,
Demonstra a mudança de paradigmas sofrida pelas famílias após o advento da Constituição Federal de 1988, sendo a entidade familiar o campo mais propício para que o indivíduo venha a exercer sua dignidade enquanto ser humano (MACHADO, 2012, p. 02).
Assim, embora a estrutura familiar seja composta por vários elementos, a afetividade se afigura como sendo o mais relevante (PEREIRA, 2006, p. 182), uma vez que é “o afeto que conjuga” (BARROS, 2002, p. 9). A família passa então a ser concebida não mais apenas como um núcleo econômico e social, mas como um seio de afetividade, voltada à valorização e a dignidade humana de cada um de seus membros como sujeitos de direitos.
A partir do momento em que a família se desinstitucionaliza para o Direito – ou seja, que ela não mais se faz relevante enquanto instituição -, e que a dignidade humana passa a ser o foco da ordem jurídica, passa-se a valorizar cada membro da família e não a entidade familiar como instituição. Isto porque passou a vigorar a ampla liberdade de constituir ou de desfazer os laços conjugais, não sendo mais necessário viver junto até que “a morte nos separe”. A liberdade de constituição de família tem estreita consonância com o Princípio da Autonomia da Vontade, principalmente nas relações mais íntimas do ser humano, cujo valor supremo é o alcance da felicidade (PEREIRA, 2006, p. 182).
Além disso, “o art. 226, §8o da Constituição Brasileira de 1988 assimila o marco ora tratado da nova família, com contornos diferenciados, pois prioriza a necessidade da realização da personalidade dos seus membros” (PEREIRA, 2006, p. 183), em que se fundamenta a afetividade que configura a base para a mantença dos laços familiares.
Sob esse olhar da família constitucionalizada, “a família só faz sentido para o Direito a partir do momento em que ela é veículo funcionalizador à promoção da dignidade de seus membros” (PEREIRA, 2006, p. 183).
Em face, portanto, da mudança epistemológica ocorrida no bojo da família, a ordem jurídica assimilou tal transformação, passando a considerar o afeto como um valor jurídico de suma relevância para o Direito de Família. Seus reflexos crescentes vêm permeando todo o Direito, como é exemplo a valorização dos laços de afetividade e da convivência familiar oriundas da filiação, em detrimento, por vezes, dos vínculos se consanguinidade. Além disso, todos os filhos receberam o mesmo tratamento constitucional, independente da sua origem e se são biológicos ou não.
O novo olhar sobre as famílias tem por escopo que a família desempenhe a sublime missão de garantir a valorização de cada um de seus membros e a concretização da dignidade humana, sendo ninho de afeto e solidariedade mútua.
A família recuperou a função que, por certo, esteve nas suas origens mais remotas: a de grupo unido por desejos e laços afetivos, em comunhão de vida. O princípio jurídico da afetividade faz despontar a igualdade entre irmãos biológicos e adotivos e o respeito a seus direitos fundamentais, além do forte sentimento de solidariedade recíproca, que não pode ser perturbada pelo prevalecimento de interesses patrimoniais. É o salto, à frente, da pessoa humana nas relações familiares (LÔBO apud MACHADO, 2012, p. 09).
Assim, um novo olhar sobre o direito das famílias, sustentado no afeto e na solidariedade mútua, fez que com que o princípio da dignidade da pessoa humana e, mais especialmente, o princípio da afetividade, que é seu corolário, instaurassem uma nova ordem jurídica para a família, conferindo valor jurídico ao afeto nos laços familiares.
1.4.1.1. Afeto assegurado pela Constituição Federal
A Constituição Federal de 1988 e o advento do neoconstitucionalismo trouxeram expressivas inovações no ordenamento jurídico pátrio, envolvendo vários fenômenos diferentes, mas reciprocamente implicados, que podem ser assim sintetizados (SARMENTO, 2009, p. 1),
(a) reconhecimento da força normativa dos princípios jurídicos e valorização da sua importância no processo de aplicação do Direito; (b) rejeição ao formalismo e recurso mais frequente a métodos ou “estilos” mais abertos de raciocínio jurídico: ponderação, tópica, teorias da argumentação, etc.; (c) constitucionalização do Direito, com a irradiação das normas e valores constitucionais, sobretudo os relacionados aos direitos fundamentais, para todos os ramos do ordenamento (...).
Assim, os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da afetividade devem refletir sobre todo o ordenamento jurídico, sobretudo, no direito de família, seara pautada pela existência de laços afetivos no seio familiar.
Sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, que é uma das finalidades a ser sempre buscada e preservada pelo Estado, imprescindível se faz trazer à baila que seu idealizador, Immanuel Kant (2005, p. 77) agasalhava que “no reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade”, e continua aduzindo que,
Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade.
Nesse sentido, para Kant, o homem é um fim em si mesmo, não possuindo um preço, mas sim um valor supremo, que é a sua dignidade. Nessa mesma linha de raciocínio é que a nova roupagem do direito das famílias busca a despatrimonialização das relações familiares, erigindo o afeto como valor supremo que deve permear os laços familiares, não sendo mais suficiente o mero pagamento pelo pai de alimentos a seu filho, mas sim a afetividade que não possui preço.
Dias (2013, p. 73), citando Lobo, identifica na Constituição quatro fundamentos essenciais do princípio da afetividade, quais sejam: (a) igualdade de todos os filhos independentemente da origem (CF 227, parágrafo 6º); (b) a adoção, como escolha afetiva com igualdade de direitos (CF 227, parágrafos 5º e 6º); (c) a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo os adotivos, com a mesma dignidade da família (CF 226, parágrafo 4º); e (d) o direito à convivência familiar como prioridade absoluta da criança, do adolescente e do jovem (CF 227).
1.4.1.2. O afeto no Código Civil
O Código Civil utiliza a palavra “afeto” “somente para identificar o genitor a quem deve ser deferida a guarda unilateral” (CC 1.583, paragrafo 2º, I). Além disso, “invoca a relação de afetividade como elemento indicativo para a definição da guarda a favor de terceira pessoa (CC 1.584, parágrafo 5º)” (DIAS, 2013, p. 73).
Nesse sentido, Welter apud Dias (2013, p. 73) aponta também em outras passagens a valoração do afeto no Código Civil, quais sejam,
(a) ao estabelecer a comunhão plena de vida no casamento (CC 1.511); (b) quando admite outra origem à filiação além do parentesco natural e civil (CC 1.593); (c) na consagração da igualdade na filiação (CC 1.596); (d) ao fixar a irrevogabilidade da perfilhação (CC 1.604); e, (e) quando trata do casamento e de sua dissolução, discorrendo primeiro das questões pessoais do que dos seus aspectos patrimoniais.
Ainda que com grande esforço se consiga visualizar na lei a elevação do afeto a valor jurídico, é imprescindível reconhecer que tímido mostrou-se o legislador, sendo esse instituto ainda muito recente em nosso ordenamento jurídico.
Por sua vez, para Vianna (2008, p. 518), “o Código Civil, também não utiliza expressamente a palavra afeto”, contudo,
É possível vislumbrar à existência fundamental deste princípio em vários de seus artigos, como por exemplo o art. 1.584, parágrafo 5º, o qual trata da situação de guarda do(s) filho(s) no caso de separação dos pais.
Sendo assim, pode-se afirmar que ainda que o Código Civil não tenha previsto expressamente a palavra “afeto” ao tratar das relações familiares, o fez de modo implícito, invocando os laços de afeto e de solidariedade na interpretação de seus dispositivos legais, “com o claro objetivo de garantir a felicidade, como um direito a ser alcançado” (DIAS, 2013, p. 73), sobretudo, no seio familiar, ninho de concretização do direito à felicidade.
1.5. Princípio constitucional da paternidade responsável
A luzente impossibilidade do ser humano de sobreviver sozinho após o nascimento, “eis que necessita de cuidados especiais por longo período”, fez que com surgisse um “elo de dependência a uma estrutura que lhe assegure o crescimento e pleno desenvolvimento. Daí a imprescindibilidade da família, que acaba se tornando seu ponto de identificação social” (DIAS, 2013, p. 362).
O novo olhar sobre a família trazido pela principiologia da Constituição Federal e irradiado ao direito das famílias, fez com que os laços sanguíneos deixassem de ser determinantes para a definição do conceito de paternidade, vez que “a nova ordem jurídica consagrou como fundamental o direito à convivência familiar, adotando a doutrina da proteção integral” (DIAS, 2013, p. 363), valorizando a dignidade da pessoa humana no seio familiar.
Essas mudanças produziram reflexos na descrição do conceito de paternidade, uma vez que “a filiação passou a ser identificada pela presença do vínculo afetivo paterno-filial”, de modo que, “A paternidade deriva do estado de filiação, independentemente de sua origem, se biológica ou afetiva. A ideia da paternidade está fundada muito mais no amor do que submetida a determinismos biológicos” (DIAS, 2013, p. 363). Isso porque,
A paternidade envolve a função de pai, que vai muito além do dimensionamento do vínculo biológico. O aspecto da paternidade não se limita meramente à concepção; mais importante é o acompanhamento de todo o desenvolvimento após o nascimento, tomando para si a responsabilidade na criação, manutenção e educação do filho (QUEIROZ, 2001, p. 127).
Afinal, as mudanças mais recentes pelas quais passaram a entidade da família, “deixando de ser unidade de caráter econômico, social e religioso para se afirmar fundamentalmente como grupo de afetividade e companheirismo, imprimiram considerável reforço ao esvaziamento biológico da paternidade” (DIAS, 2013, p. 363).
O que é essencial é a consideração de que “a relação de paternidade não depende mais da exclusiva relação biológica entre pais e filhos, avós e neto”, uma vez que, “Os arranjos parentais privilegiam o vínculo da afetividade” (DIAS, 2013, p. 363).
O princípio constitucional da paternidade responsável encontra amparo no art. 226, §7o da Carta Magna, segundo o qual, a família possui como fundamentos a dignidade da pessoa humana e a paternidade responsável. No entanto, a responsabilidade paterna não se restringe a fornecer alimentação, vestuário, saúde, habitação, educação e garantir a subsistência do filho. É cediço que o fornecimento de todos esses recursos mencionados são sim imprescindíveis para alguém viver com dignidade. Mas, o novo olhar constitucional sobre a família não se contenta mais com a prestação paternal de recursos que o dinheiro pode comprar. A nova ordem jurídica impõe uma postura muito mais ativa e presente do pai no cotidiano dos filhos, tanto que a identificação da filiação não é mais buscada exclusivamente no campo genético, estando a filiação muito mais fundada no amor do que à determinação biológica.
Tanto é assim que “a afetividade foi levada à categoria de princípio jurídico” (PEREIRA, 2006, p. 186), o que pode ser demonstrado por julgado do Tribunal de Alçada de Minas Gerais, o qual fixou a responsabilização civil ao genitor que abandonou afetividade seu filho, e “Embora este filho tenha buscado o pai – tanto na infância, quanto na adolescência e agora, na fase adulta -, este rejeitou-o e não arcou com sua responsabilidade paterna, inerente ao poder familiar” (PEREIRA, 2006, p.187), ferindo a imposição constitucional de criar e educar os filhos, prevista no art. 229. da Constituição Federal.
INDENIZAÇÃO DANOS MORAIS – RELAÇÃO PATERNO-FILIAL – PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE
A dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno, que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável, com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana
(TAMG, AC Nº 408550-5, 7a CC, Rel. Unias Silva. J. 1.4.04).
Valioso também foi o voto do referido acórdão, o qual consagra expressamente o afeto como sendo um valor jurídico, senão vejamos.
No seio da família da contemporaneidade desenvolveu-se uma relação que se encontra deslocada para a afetividade. Nas concepções mais recentes de família, os pais de família têm certos deveres que independem do seu arbítrio, porque agora quem os determina é o Estado. Assim, a família não deve mais ser entendida como uma relação de poder, ou de dominação, mas como uma relação afetiva, o que significa dar a devida atenção às necessidades manifestas pelos filhos em termos, justamente, de afeto e proteção. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência e não somente do sangue. (…) O princípio da afetividade especializa, no campo das relações familiares, o macroprincípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da Constituição Federal), que preside todas as relações jurídicas e submete o ordenamento jurídico nacional. No estágio atual, o equilíbrio do privado e do público pauta-se exatamente na garantia do pleno desenvolvimento da dignidade das pessoas humanas que integram a comunidade familiar. No que respeita à dignidade da pessoa da criança, o artigo 227 da Constituição expressa essa concepção, ao estabelecer que é dever da família assegurar-lhe 'com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária', além de colocá-la 'à salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão'. Não é um direito oponível apenas ao Estado, à sociedade ou a estranhos, mas a cada membro da própria família. Assim, depreende-se que a responsabilidade não se pauta tão somente no dever alimentar, mas se insere no dever de possibilitar o desenvolvimento humano dos filhos, baseado no princípio da dignidade da pessoa humana. (…) Assim, ao meu entendimento, encontra-se configurado nos autos o dano sofrido pelo autor, em relação à sua dignidade, a conduta ilícita praticada pelo réu, ao deixar de cumprir seu dever familiar de convívio e educação, a fim de que, através da afetividade, formar laço paternal com seu filho, e o nexo causal entre ambos.
A presença da responsabilidade civil no seio da família quando ocorre o abandono do filho pela ausência do pai, representa uma forma de penalização pela violação de deveres morais imprescindíveis para a formação da personalidade e para assegurar a dignidade do filho rejeitado. Nesse sentido, para Pereira (2006, p. 188),
Em função da expressa negativa deste pai de proporcionar ao filho a possibilidade da construção mútua da afetividade, violando por esta razão, seus direitos de personalidade é que foi imputado ao pai o pagamento da indenização por dano moral. Restou provado, no caso, a flagrante ofensa aos direitos da personalidade do filho, principalmente a tutela da integridade psicofísica, que faz parte do conteúdo da sua dignidade. Por isso, além da decisão ter sido paradigmática, fulcra seu mérito no embasamento principiológico constante de sua fundamentação, que reconhece a afetividade como um relevante princípio do atual ordenamento.
Assim, o valor jurídico conferido ao afeto pela Constituição Federal, torna luzente que todos têm direito de nascer em berço repleto de laços de afeto, solidariedade e cuidados, mas, no entanto, muitos genitores abandonam seus filhos tão logo saibam da gravidez ou depois de uma separação.
O afeto possui tamanha relevância nos laços familiares que, nas palavras de Pereira (2003, p. 121), o que importa é saber quem funcionou para aquele sujeito como sendo seu pai, qual é a referência que ele tem como figura paterna, senão vejamos:
O genitor, o marido da mãe, o amante oficial, o companheiro da mãe, o protetor da mulher durante a gravidez, o tio, o avô, aquele que cria a criança, aquele que dá o seu sobrenome, aquele que reconhece a criança legal ou ritual, aquele que fez a adoção.
Desta feita, assim como o abandono material, o abandono afetivo constitui tema de luzente relevância, sendo, no entanto, um tema ao qual ainda não se confiou a devida atenção, pois não basta alimentar, sendo, sobretudo, imprescindível cuidar e amparar, em consonância com o que agasalha o princípio da afetividade, decorrente da previsão constitucional do princípio da dignidade da pessoa humana. Além disso, “o mau exercício do poder familiar é um dano ao direito da personalidade do filho (PEREIRA, 2012).
Sobre a responsabilidade civil por abandono afetivo, Dias (2012, p. 02) explica que,
Claro que o valor fixado não compensa a dor da ausência, a falta de um afago, de uma palavra de carinho. Também não dá destino ao presente feito para ser entregue na festa da escola comemorativa ao Dia dos Pais. Nada disso tem preço. O dinheiro não paga, não apaga.
No mesmo sentido, Madaleno (2012, p. 03) elucida que,
Decisões judiciais buscando reparar com indenizações pecuniárias a dilaceração da alma de um filho em fase de formação de sua personalidade, cujos pais se abstêm de todo e qualquer contato e deixam seus filhos em total abandono emocional, não condenam a reparar a falta de amor, ou o desamor, nem tampouco a preferência de um pai sobre um filho e seu descaso sobre o outro, mas penalizam a violação dos deveres morais contidos nos direitos fundamentais da personalidade do filho rejeitado. Penalizam o dano à dignidade do filho em estágio de formação, mas não com a intenção de recuperar o afeto não desejado pelo ascendente, mas, principalmente, por seu poder dissuasório a demonstrar que, doravante, este velho sentimento de impunidade tem seus dias contados e que possa no futuro desestabilizar quaisquer outras inclinações de irresponsável abandono, se dando conta pelos exemplos jurisprudenciais, que o afeto tem um preço muito caro na configuração familiar.
Por sua vez, a ministra Nancy Andrighi, em recente julgado do STJ, pondera que, “todo esse contexto resume-se apenas em uma palavra: a humanização da Justiça” (STJ, Resp 1.159.242/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. em 24.04.2012, Dje 10.05.2012). E, Dias arremata que, “É a consagração do reconhecimento do compromisso ético que deve permear as relações familiares”. A esse respeito, acrescenta Pereira (2006, p. 188) que,
Não se trata, aqui, de uma imposição jurídica de amar, mas de um imperativo judicial de criação da possibilidade da construção do afeto, em um relacionamento em que o amor, a afetividade lhe seriam inerentes. Essa edificação torna-se apenas possível na convivência, na proximidade, no ato de educar, no qual são estruturados e instalados a referência paterna.
Por ser ainda recente no ordenamento jurídico, a doutrina diverge a respeito da aplicabilidade ou não da responsabilidade civil por dano afetivo nas relações familiares. A favor da impossibilidade de se aplicar tal instituto, temos a doutrina representada por Lopes (2006, p. 54), vejamos:
Filio-me ao entendimento que a violação aos deveres familiares gera apenas as sanções no âmbito do direito de família, refletindo, evidentemente, no íntimo afetivo e psicológico da relação [...].
No entanto, em sentido contrário, e esposando o mesmo entendimento do STJ, apresenta-se a doutrina representada por Rolf Madaleno (2006, p. 159), segundo o qual, “o direito de dano é aplicável sim ao direito de família, tendo por fundamento o abuso de direito que prevê o artigo 187 do Código Civil e não o ato ilícito”.
Por vezes, o abandono afetivo paternal e a paternidade irresponsável decorrem do rompimento de laços afetivos entre os genitores da prole que culminam com a contração de um novo matrimônio pelo genitor e o abandono sentimental dos filhos havidos do relacionamento anterior. No entanto, diante do novo olhar sobre as famílias trazido pela Constituição Federal de 1988, a irresponsabilidade paterna não pode mais ser presenteada pela ausência de reconhecimento jurídico da valorização do afeto como direito fundamental imprescindível à dignidade da pessoa humana.
Justamente por conta das separações e dos ressentimentos que remanescem na ruptura da sociedade conjugal, não é nada incomum deparar com casais apartados, usando os filhos como moeda de troca, agindo na contramão de sua função parental e pouco se importando com os nefastos efeitos de suas ausências, suas omissões e propositadas inadimplências dos seus deveres. Terminam os filhos, experimentando vivências de abandono, mutilações psíquicas e emocionais, causadas pela rejeição de um dos pais e que só servem para magoar o genitor guardião. Como bombástico e suplementar efeito, baixa a níveis irrecuperáveis a auto-estima e o amor próprio do filho enjeitado pela incompreensão dos pais. (MADALENO, apud PEREIRA, 2004, p. 03).
Uma das mais expressivas consequências do princípio da afetividade “encontra-se na jurisdicização da paternidade socioafetiva, que abrange os filhos de criação”, pois “o que garante o cumprimento das funções parentais não é a similitude genética ou a derivação sanguínea, mas sim, o cuidado e o desvelo dedicados aos filhos”, (PEREIRA, 2006, p. 184), uma vez que, “a paternidade reside antes no serviço e no amor que na procriação” (VILLELA, 1980, p. 45). É inequívoco, portanto, que o afeto paternal afigura-se muito mais relevante que os laços sanguíneos, vez que “é capaz de contribuir de forma efetiva para a estruturação do sujeito” (PEREIRA, 2006, p. 184).
Os filhos são realmente conquistados pelo coração, obra de uma relação de afeto construída a cada dia, em ambiente de sólida e transparente demonstração de amor a pessoa gerada por indiferente origem genética, pois importa ter vindo ao mundo para ser acolhida como filho de adoção por afeição. Afeto para conferir tráfego de duas vias a realização e a felicidade da pessoa. Representa dividir conversas, repartir carinho, conquistas, esperanças e preocupações; mostrar caminhos, aprender, receber e fornecer informação. Significa iluminar com a chama do afeto que sempre aqueceu o coração de pais e filhos sócioafetivos, o espaço reservado por Deus na alma e nos desígnios de cada mortal, de acolher como filho aquele que foi gerado dentro do seu coração (MADALENO, 2004, p. 08).
O princípio da paternidade responsável propõe que para que um filho de fato se torne filho, não bastam apenas vínculos biológicos, de forma que o elemento realmente imprescindível à paternidade é a presença de cuidados e afeto ao filho, não sendo suficiente a mera prestação de alimentos à prole. Assim,
A filiação biológica não é nenhuma garantia da experiencia da paternidade, da maternidade ou da verdadeira filiação. Portanto, é insuficiente a verdade biológica, pois a filiação é uma construção que abrange muito mais do que uma semelhança entre os DNA. Afinal, o que é essencial para a formação de alguém, para que possa tornar-se sujeito e capaz de estabelecer laço social, é que uma pessoa tenha, em seu imaginário, o lugar simbólico de pai e de mãe. A presença do pai ou da mãe biológicos não é nenhuma garantia de que a pessoa se estruturará como sujeito. O cumprimento de funções paternas e maternas, por outro lado, é o que pode garantir uma estruturação biopsíquica saudável a alguém. Por isso, a família não é apenas um dado natural, genético ou biológico, mas cultural, insista-se (PEREIRA, 2006, p. 185).
A imprescindível responsabilidade paterna na criação e amparo dos filhos traz como fundamento a afetividade, pois “a família atual só faz sentido se for alicerçada no afeto”, como bem elucida Hironaka (1999, p. 17):
Vale dizer, a verdade jurídica cedeu vez à imperiosa passagem e instalação da verdade da vida. E a verdade da vida está a desnudar aos olhos de todos, homens ou mulheres, jovens ou velhos, conservadores ou arrojados, a mais esplêndida de todas as verdades: neste tempo em que até o milênio muda, muda a família, muda o seu cerne fundamental muda a razão de sua constituição, existência e sobrevida, mudam as pessoas que a compõem, pessoas estas que passam a ter coragem de admitir que se casam principalmente por amor, pelo amor e enquanto houver amor. Porque só a família assim constituída – independente da diversidade de sua gênese – pode ser mesmo aquele remanso de paz, ternura e respeito, lugar em que haverá, mais que em qualquer outro, para todos e para cada um de seus componentes, a enorme chance da realização de seus projetos de felicidade.
Sendo assim, a Constituição Federal, ao enumerar o princípio da paternidade responsável como fundamento para a família, almejou conferir a todos o direito de ter um pai presente e comprometido com o desenvolvimento da integridade física e moral da prole, não sendo suficiente o mero pagamento de alimentos. A intenção do legislador foi muito além, foi muito mais nobre. Quis o constituinte que todos tivessem um berço de afeto, coberto por laços de solidariedade mútua, elementos imprescindíveis à dignidade da pessoa humana.
O dever dos pais não se restringe à natureza alimentar, ele abrange o direito de convivência familiar, o direito à educação e o provimento de subsistência dos filhos. No entanto, o abandono afetivo, grave descumprimento dos deveres dos pais, priva a criança e o adolescente do direito constitucional de convivência familiar e de cuidados fundamentais, de amparo afetivo, psicológico e, principalmente, afetivo, causando-lhe sérios danos (HAMADA, 2013, p. 12).
A nova ordem jurídica imposta pela Constituição Federal, vértice orientador de todo o ordenamento jurídico pátrio, não mais concebe um pai ausente que compensa com valores monetários e presentes materiais a ausência na vida do filho. Afinal, “se uma criança veio ao mundo – desejada ou não, planejada ou não – os pais devem arcar com a responsabilidade que esta escolha (consciente ou não) lhes demanda.” (TEIXEIRA, 2005, p. 156). Assim, é cediço que,
O conviver que é basicamente afetivo, enriquecido com uma convivência mútua, alimenta o corpo, mas também cuida da alma, da moral, do psíquico. Estas são as prerrogativas do poder familiar e principalmente da delegação divina do amparo aos filhos (SILVA, 2000, p. 123).
Além disso, conforme assinala Rodrigues (2004, p. 368),
Dentro da vida familiar o cuidado com a criação e educação da prole se apresenta como a questão mais relevante, porque as crianças de hoje serão os homens de amanhã, e nas gerações futuras é que se assenta a esperança do porvir.
A ausência de afeto aos filhos no seio familiar pode comprometer o seu desenvolvimento psíquico e moral, o que acaba por refletir em seu futuro e provocar diversos reflexos na sociedade, senão vejamos.
O afeto deve ser entendido um bem jurídico, que é dever dos pais, uma vez que, incumbe a eles a formação do caráter e da personalidade dos filhos para que estes possam conviver harmoniosamente com os demais grupos sociais de modo a contribuir e acrescentar na evolução da sociedade. Trata-se de uma relação de via dupla, onde, também, é de interesse da sociedade o efetivo oferecimento do afeto, pois resta comprovado estatisticamente que a falta de amor no seio familiar proporciona e desencadeia uma série de riscos sociais, oriundos de famílias desestruturadas, sejam eles: criminalidade, ilegalidade, vícios, dentre outros que envergonham a entidade familiar e desrespeitam a sociedade como um todo (SOUSA, 2012, p. 07).
A nova família exige a valorização e o fortalecimento do afeto e da solidariedade como requisitos indispensáveis à sua estruturação, uma vez que, os laços de afetividade “possibilitam que as pessoas se amem, se respeitem e desejem a felicidade reciprocamente”, pois “o afeto é o propulsor do desenvolvimento do senso de respeito e de cuidado nas relações familiares” (CABRAL, 2009, p. 14).