Sumário:1. O direito ao meio ambiente sadio como direito fundamental; 2. O art. 225 da Constituição Federal enquanto norma estruturante do direito fundamental ao meio ambiente; 3. A atuação das normas de proteção que objetivam um fazer do particular; 4. Normas de proteção que exigem controle ou fiscalização da administração; 5. Prestações decorrentes do dever de o Estado gerenciar o meio ambiente; 6. A questão do risco ambiental; 7. A importância da distinção entre regras e princípios para a efetividade da tutela do meio ambiente; 8. Sobre a exigibilidade do estudo de impacto ambiental; 9. Concessão do licenciamento em contrariedade ao estudo de impacto ambiental; 10. Possibilidade da impugnação da concessão do licenciamento que está de acordo com o estudo de impacto ambiental; 11. O problema da incerteza científica quanto ao risco ambiental. A questão do risco do desenvolvimento; 12. A importância do princípio da precaução diante do risco do desenvolvimento; 13. O caso exemplar dos trangênicos; 14. A responsabilidade pelo dano como mecanismo de gerenciamento dos riscos e dos benefícios diante do direito ambiental; 15. As ações inibitória e de remoção do ilícito à luz do direito ambiental.
1. O direito ao meio ambiente sadio como direito fundamental
Como é sabido, nem todos os direitos fundamentais estão previstos no artigo 5º da Constituição Federal. Há direitos que, por sua imprescindibilidade para a dignidade da vida da pessoa humana, não precisam estar aí definidos. É o que acontece em relação ao direito ao meio ambiente sadio.
O caput do art. 225 da Constituição Federal afirma que o meio ambiente saudável é "essencial à sadia qualidade de vida" e, assim, que "todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo". Por esse motivo, ressalta, em sua parte final, que o poder público e a coletividade têm o "dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações". Ora, isso é suficiente para qualificá-lo como direito fundamental.
Se o direito ao meio ambiente constitui direito fundamental, resta saber como esse direito deve se enquadrar diante das "funções" dos direitos fundamentais. O direito ambiental obviamente se impõe contra o Estado, que fica impedido de violá-lo. Porém, é claro que isso não basta. A efetividade do direito ambiental depende de prestações do poder público para a proteção e a prevenção do bem ambiental. Essas prestações podem ter por objeto um simples fazer do poder público, sem qualquer repercussão perante terceiros, ou se constituírem em normas e atividades que têm por meta proteger o meio ambiente contra terceiros. Além disso, porque o poder público deve ser controlado pela sociedade – que, como visto, possui o "dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações" – o direito ambiental não pode se desligar do direito à participação, ou melhor, do dever do Estado criar condutos para a participação da sociedade na gestão do poder, o que acontece, por exemplo, quando se pensa na ação popular e nas ações coletivas.
2. O art. 225 da Constituição Federal enquanto norma estruturante do direito fundamental ao meio ambiente
Segundo o art. 225, §1º, da Constituição Federal, para assegurar a efetividade do direito ao meio ambiente, incumbe ao poder público: "i) preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; ii) preservar a diversidade e integridade do patrimônio genético do país e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; iii) definir, em todas as unidades da federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; iv) exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; v) controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; vi) promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente; vii) proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade".
Como se vê, embora todas essas normas tenham o poder público como destinatário, para algumas a prestação pode se exaurir em ato estatal e, para outras, objetiva-se, com a prestação estatal, impedir ato de particular.
Note-se, por exemplo, que o dever de controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente (art. 225, §1º, V, CF), assim como o dever de proteger a fauna e a flora (art. 225, §1º, VII, CF), dependem de prestações normativas e fáticas dirigidas contra os particulares. No caso da exigência do estudo de impacto ambiental, previsto no art. 225, §1º, IV da Constituição Federal, cabe ao legislador definir o que é "obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente", e à administração pública exigir esse "estudo", lembrando-se que a enumeração das obras e atividades potencialmente causadoras de significativa degradação do meio ambiente, realizada pelo art. 2º da Resolução 001/86 do Conama, é meramente exemplificativa (como não poderia deixar de ser) [1], e que assim o administrador tem o dever de, diante do caso concreto, analisar o impacto da obra ou da atividade para a qual se pede o licenciamento [2].
A razão dessa distinção decorre do fato de que, quando é necessária a imposição de norma ou de atividade administrativa que exija um ato do particular, o que deve ser analisado, à luz do direito fundamental ao meio ambiente, é a repercussão do ato do poder público sobre o particular. Ao contrário, quando a realização da prestação se exaure em um ato do próprio poder público, sem recair sobre o particular, somente poderá ser analisado, com base no direito fundamental, o ato devido pelo Estado.
3. A atuação das normas de proteção que objetivam um fazer do particular
Se é inegável que o meio ambiente depende de normas de direito material de proteção, é preciso frisar que essas normas impõem condutas negativas (proibição de construção em certo local) ou positivas (obrigação da adoção de determinada medida de prevenção).
Quando uma dessas normas é inobservada, o processo civil assume a responsabilidade de atuá-las. Nessa linha, o juiz deverá impor um não-fazer ou um fazer, conforme a norma de direito material preveja uma omissão ou uma ação. Contudo, alguém poderia imaginar que a função preventiva do processo civil se resumiria à imposição do não-fazer. Essa visão, como é óbvio, reflete a época em que não se pensava em normas impositivas de condutas positivas destinadas a evitar a violação dos direitos.
Entretanto, a norma de direito material não perde a sua natureza no caso em que a jurisdição é acionada para obrigar o particular a atendê-la. Ora, no caso de norma destinada à proteção, não importa o conteúdo do que deve ser feito pelo particular – ou seja, se a conduta exigida é positiva ou negativa. Ocorrendo violação de qualquer dessas normas, a atuação da jurisdição – na hipótese de reconhecimento da violação - será de realização do desejo preventivo da norma violada, pouco importando se ela impõe um não-fazer ou um fazer [3].
Dizer que o processo civil, em um caso como esse, apenas obriga a observância de um dever de fazer, significa retirar da norma que impõe a prestação de fazer todo o seu conteúdo valorativo. Ou seja, transformar as normas que exigem um fazer do particular em simples tutela jurisdicional dos deveres de fazer é, para se utilizar poucas palavras, neutralizar o direito material – ou dissolver os diferentes valores que estão nas normas.
Uma norma que impõe um fazer, para evitar a violação do meio ambiente, possui óbvio fim preventivo. Não é possível esquecer do objetivo da norma de direito material no momento em que a jurisdição é chamada a atuar, sob pena de o processo deixar de cumprir sua função instrumental. Perceba-se que uma norma voltada à prevenção do meio ambiente não pode ser tratada como uma simples norma que exige um fazer, pois se assim acontecer o próprio juiz ficará impossibilitado de compreender a situação concreta. Note-se, por exemplo, que a tutela antecipatória deve ser pensada de modo particular diante da necessidade de atuação de norma de caráter preventivo.
Tudo isso, aliás, é bastante claro aos estudiosos do direito ambiental [4]. Afirma-se, com base em Convenções Internacionais de Proteção ao Meio Ambiente, que as medidas de prevenção ou de precaução não podem ser postergadas (assim, por exemplo, a Declaração do Rio de Janeiro, de 1992). Não podem ser postergadas quando previstas em lei, quando impostas em acordos administrativos ou realizados com o Ministério Público e, como é óbvio, quando decorrentes de decisões judiciais. É por isso que, no caso desses acordos, o adiamento das medidas de precaução é visto com muito rigor. Como ressalta Paulo Affonso Leme Machado, "a necessidade do adiamento das medidas de precaução em acordos administrativos ou em acordos efetuados pelo Ministério Público deve ser exaustivamente provada apelo órgão público ambiental ou pelo próprio Ministério Público" Na dúvida, adverte esse autor, "opta-se pela solução que proteja imediatamente o ser humano e conserve o meio ambiente" [5].
De modo que, no caso de afirmação de violação de norma que impõe ao particular a adoção de medida de prevenção ou de precaução, o juiz, porque tem o dever de se comportar conforme o desejo do direito material, não pode esquecer dos princípios que lhe são próprios, deixando de observar os princípios da prevenção e da precaução, e, especificamente no que diz respeito à interpretação da situação concreta, os princípios do in dubio pro natura e do in dubio pro salute. Eis o motivo da impossibilidade de se pensar a norma dirigida à prevenção como simples norma que impõe um fazer.
4. Normas de proteção que exigem controle ou fiscalização da administração
Quando o poder público editou a norma de proteção, mas é necessário o controle ou a fiscalização estatal, é claro que o dever do Estado não pára na realização da norma. Com efeito, ao lado de uma norma de proteção, pode ser necessária a atuação concreta da administração pública. Nesse caso, havendo omissão da administração, a ação deverá ser proposta contra o Estado, pois aí o ilícito omisso é estatal.
Nessa situação - é importante que se esclareça o Estado cumpriu apenas em parte o seu dever de proteção, deixando de atuar concretamente para a efetivação da norma. Assim, nessa perspectiva, a omissão é do Estado, e não do particular.
Porém, diante de uma norma que requer atuação da administração para ser observada, é comum que, diante da omissão estatal, o particular esteja agindo sem lhe dar cumprimento. Nessa situação, a ação judicial deve se preocupar não apenas com a omissão estatal, mas também em inibir a continuação do ilícito decorrente da violação da norma.
5. Prestações decorrentes do dever de o Estado gerenciar o meio ambiente
Maior dificuldade existe em relação às prestações que, da mesma forma que as anteriores, são devidas pelo Estado, mas não se destinam a atuar sobre os terceiros. Mais precisamente: importa aqui a prestação estatal que não atua sobre os terceiros, mas que é necessária, independentemente do comportamento do particular, para que o Estado cumpra o seu dever de preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações.
Se essa prestação é dirigida a evitar a violação do direito ao meio ambiente, é óbvio que o seu objetivo é de dar-lhe prevenção. A grande diferença entre essa situação e a da proteção normativa contra terceiros está em que, quando se pensa nessa última, embora exista um dever de prestação estatal, essa prestação (a lei) incide sobre o particular - ainda que possa ser considerada com base no direito fundamental -, ao passo que no caso de prestação fática de proteção em que não importa a vontade do particular, a única coisa a ser analisada é o fazer devido pelo próprio Estado, e não uma norma, uma atividade administrativa, um acordo ou uma sentença. No caso de prestação fática de proteção que não incide sobre o particular, o conteúdo dessa prestação deve ser analisado a partir do direito fundamental, enquanto que, no caso de proteção que repercute sobre o particular, o que deve ser verificado, com base no direito fundamental, é o ato do poder público diante do sujeito privado.
Contudo, isso não quer dizer que a prestação fática destinada a assegurar a inviolabilidade do direito ambiental, quando não preocupada com um ato do particular, não possa ser qualificada de preventiva. No caso em que a administração não atua, omitindo-se em seu dever de adotar medidas fáticas para a inviolabilidade do direito ambiental, deixa de lhe dar prevenção, negando sua própria natureza.
Como está escrito no art. 225 da Constituição Federal, o poder público tem o dever de defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações. Como está claro, atribuiu-se ao poder público [6] o dever de conservar a integridade do meio ambiente, para que seja evitada a sua degradação.
Acontece que esse dever de conservação (ou de proteção) imposto ao poder público não pode ser realizado apenas mediante normas e atividades administrativas concretas dirigidas a impedir que os sujeitos privados agridam o meio ambiente. O Estado também possui o dever de realizar prestações fáticas necessárias a evitar a degradação ambiental. Isso em decorrência do princípio da obrigatoriedade da intervenção do Poder Público na conservação do meio ambiente – hoje posto em várias Convenções Internacionais voltadas à proteção ambiental. Os limites e as condições dessa intervenção ou atuação, quando definidos pelo direito, geram um evidente direito de exigir do Estado tais prestações fáticas.
Assim, por exemplo, em relação ao art. 208 da Constituição do Estado de São Paulo, que estabelece o dever do poder público tratar dos esgotos urbanos ou industriais. Tal prestação decorre da necessidade de se conservar o meio ambiente, impedindo a poluição dos rios. O não tratamento dos esgotos faz com que, dia após dia, os rios sejam poluídos. Ou seja, o não cumprimento da prestação, no caso, permite a poluição ambiental. Note-se que essa prestação não se destina à recuperação ou a recomposição ambiental, mas sim a evitar a poluição, de modo que a natureza preventiva da tutela jurisdicional que a ela se refere é pouco mais do que evidente.
Mas, por que é importante frisar a natureza preventiva dessa tutela jurisdicional? Em primeiro lugar porque a compreensão da natureza preventiva da prestação é fundamental para a formação de um juízo adequado. Em segundo lugar pelo motivo de que a não constatação da natureza preventiva da prestação impede a percepção da função que a tutela jurisdicional (inclusive a antecipatória) pode assumir em relação a ela.
Contudo, o que mais importa é que uma prestação do poder público, quando imprescindível para evitar a violação de um direito expressamente afirmado pela Constituição Federal como inviolável, obviamente não pode ser negada sob o argumento de indisponibilidade orçamentária. Ora, se diante de um direito definido como inviolável pela Constituição Federal, a lei determina a necessidade de uma prestação estatal, é evidente que o poder público não pode negá-la, ou mesmo adiá-la ou postergá-la. As alegações de conveniência e oportunidade, aqui, são pouco mais do que descabidas. Por outro lado, a mera alegação de indisponibilidade orçamentária não pode servir para obstaculizar a exigibilidade da prestação, sob pena de se admitir que o poder público pode entender que não deve dispor de dinheiro para evitar a degradação de um direito dito inviolável pela própria Constituição Federal. [7]
6. A questão do risco ambienta
lO risco é algo ineliminável na sociedade contemporânea e, por conseqüência, assim deve ser compreendido especialmente diante do direito ambiental. Por isso, ao invés de se pretender eliminá-lo, através de um desejo incapaz de ser atingido, a única saída possível é encontrar as formas adequadas para o seu gerenciamento.
Deve-se partir da idéia de que o desenvolvimento traz, a um só tempo, benefícios e riscos à coletividade. Diante da periculosidade ou nocividade de uma atividade, a norma deve proibi-la, ou admiti-la apenas em determinados locais. Mas, nos casos em que o risco pode ser reduzido a uma situação de suportabilidade, a norma deve estabelecer as medidas preventivas que devem ser adotadas. É o que ocorre diante de atividades que, embora potencialmente perigosas, podem ser aceitas quando tomadas determinadas medidas de prevenção. Assim, por exemplo, as normas que exigem a adoção de medidas preventivas por parte do empresário que deseja instalar um posto de gasolina. Como é óbvio, se um posto de gasolina colocasse em risco a vida das pessoas, ele não poderia ser instalado. Porém, a observância das regras técnicas destinadas à prevenção, torna possível a sua instalação ainda que em locais centrais das cidades.
Observe-se, contudo, que o fato de uma atividade não estar definida, em norma infraconstitucional, como proibida, não a torna, somente por isso, lícita. Tal não seria possível pelo simples motivo de que a evolução da sociedade sempre estará apta a apresentar novas situações de risco intolerável, que então devem ser obstaculizadas com base no próprio art. 225 da Constituição Federal. Nesses casos, sempre deverá ser tomado em conta o direito fundamental ao meio ambiente, isto é, a necessidade de sua proteção e prevenção para a digna sobrevivência da pessoa humana, mas sem que seja esquecida a idéia de que a tutela do bem ambiental sempre deverá ser feita através do meio menos gravoso ao empresário, especialmente quando da atividade dependerem vários empregos.
Isso significa que, se for possível manter a atividade, eliminando-se o perigo ao meio ambiente, devem ser determinadas medidas de prevenção capazes de extirpá-lo. Não há como deixar de preferir a medida de prevenção em relação à suspensão da atividade, uma vez que, se duas imposições são igualmente idôneas para dar proteção ao meio ambiente, deve ser determinada, por uma questão de racionalidade, aquela que elimine o perigo sem retirar o benefício dado ao empresário e à coletividade.
Porém, nesse ponto deve ser feito um esclarecimento. Quando se fala em eliminar o perigo, imagina-se aquele que é inerente a uma atividade. Por exemplo, o perigo decorrente da venda de combustível deve ser eliminado através da adoção de medidas preventivas estabelecidas em normas técnicas. Não se está aludindo ao perigo de dano que pode decorrer, acidentalmente, de uma atividade, ou que pode ser o resultado de uma atividade não consentida (ou que não pode ser consentida) ou da não observância de uma medida de prevenção. Nessa última hipótese não basta considerar o perigo da atividade, mas sim o perigo que, diante de uma situação concreta, ameaça o meio ambiente – resultado de um acidente, do exercício de uma atividade proibida (ou que deve ser inibida) ou da não observância do dever de adoção de certa medida. Nesse sentido é possível dizer que essa última espécie de perigo, por não ser inerente a uma atividade, deve ser pensada como o perigo do caso concreto.
Porém, e voltando ao perigo decorrente de uma atividade não considerada por lei – que nada tem a ver, como demonstrado, com o "perigo do caso concreto" -, cabe frisar que, nessa situação, não há outra saída senão dar à administração a possibilidade de controle do risco. Nesses casos, com efeito, o administrador - ou o juiz, quando necessário - deverá levar em conta o direito fundamental ao meio ambiente, tal qual delineado no art. 225 da Constituição Federal.