3. DIREITO DE PROPRIEDADE E FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
“O direito de propriedade é a expressão jurídica da propriedade. Revela o poder atribuído pela Constituição para o indivíduo usar, gozar e dispor da coisa” (BULOS, 2015, p. 615). Está consagrado na Constituição Federal, em seu artigo 5º, XXII[2], no rol dos direitos fundamentais (CUNHA JUNIOR; NOVELINO, 2015, p. 42). Seu objetivo é impedir “intervenções desprovidas de fundamentação constitucional em seu âmbito de proteção” (CUNHA JUNIOR; NOVELINO, 2015, p. 42).
Da mesma maneira que o define, a Constituição também o limita por meio de restrições diretas e indiretas que, dessa forma, não pode ser considerado um direito absoluto (CUNHA JUNIOR; NOVELINO, 2015, p. 42). Uma dessas restrições diz respeito ao princípio da função social da propriedade, consagrado no artigo 5º, XXIII[3], também no rol dos direitos fundamentais. Assim, a Constituição garante a propriedade, desde que atendida sua função social (OLIVEIRA; FREITAS, 2013).
Inicialmente, a carta magna brasileira (BRASIL, 1988) estabeleceu, em seu artigo 5º, XXIII, que, de forma genérica, a propriedade precisa atender sua função social. Em outro ponto do texto constitucional, determina sua incidência sobre a propriedade inserida em um contexto econômico (art. 170, III), a propriedade urbana (art. 182, §2º) e a propriedade rural (art. 184) (LIMA; COVOLAN, 2014, p. 399).
O direito de propriedade não se reveste de caráter absoluto, eis que, sobre ele, pesa grave hipoteca social, a significar que, descumprida a função social que lhe é inerente (CF, art. 5º, XXIII), legitimar-se-á a intervenção estatal na esfera dominial privada (STF, ADIn 2.213-MC, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 23-4-2004).
3.1. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
O direito de propriedade, sobretudo após o advento do Estado Democrático de Direito, não pode ser considerado isolado do princípio da função social da propriedade (OLIVEIRA; FREITAS, 2013 e LIMA; COVOLAN, 2014). Isso quer dizer que a função social é elemento integrante do direito de propriedade (SOARES, 2006) e que o direito de propriedade não é absoluto (LIMA; COVOLAN, 2014). Assim, a responsabilidade pela construção de uma sociedade livre, justa, solidária e formada por membros autônomos e iguais, passa ser compartilhada entre todos os cidadãos (LIMA; COVOLAN, 2014 e LOPES. 2006).
Bulos (2015, p. 617) indica que “a função social da propriedade é a destinação economicamente útil da propriedade, em nome do interesse público”. Para o autor, esse instituto, ao limitar o exercício do direito de propriedade, visa otimizar sua utilização. Isso porque impedirá que a propriedade seja “utilizada em detrimento do progresso e da satisfação da comunidade”.
Segundo Bozzi (2015), a Constituição de 1988 trouxe a função social da propriedade para o centro da teoria política constitucional. Dessa forma, a constituição só protege a propriedade que cumprir sua função social, de modo que o exercício do direito à propriedade seja compatível com sua utilidade social (SOARES, 2006). Trata-se do uso racional da propriedade, que pode ser entendido como uma utilização não nociva ao bem-estar geral da sociedade (ZIMMERMANN, 2004, p. 691 apud OLIVEIRA; FREITAS, 2013, p. 3).
A propriedade é vista como meio de realização humana (BOZZI, 2015). O princípio da função social da propriedade contribui para humanizar o capitalismo, efetivar os direitos humanos, a cidadania, a solidariedade, a igualdade material e a dignidade da pessoa humana, segundo os ditames da justiça social (LIMA; COVOLAN, 2014, p. 385).
Mesmo sendo “instituto do direito privado por excelência, adquire conotação social” (SOARES, 2006, p. 14) e passa a ser “marcada por dupla função“ (CAVEDON, 2003, p. 50 apud SOARES, 2006, p.10): atender às necessidades particulares do proprietário e promover o bem comum (SOARES, 2006, p. 12). Isso significa a conciliação entre os interesses individual do proprietário e social da coletividade, sem que se pretenda um retorno às formas coletivistas características da antiguidade ou a implementação de um ideal socialista (SOARES, 2006). Os interesses individual e coletivo podem e devem ser harmonizados.
A função social da propriedade diz respeito ao estabelecimento de uma “finalidade superior” para a propriedade, que vai além do “interesse exclusivo do proprietário” e da sua mera “utilização individual” (OLIVEIRA; FREITAS, 2013, p. 3). Soares (2006) caracteriza a condição do proprietário como um “poder-dever”. Isso significa que ao mesmo tempo em que terá o poder de fazer uso de seus bens para atender seus interesses e necessidades individuais, o proprietário também terá o dever de adequar tal uso aos interesses e necessidades da sociedade. Para Comparato (1986, p. 75 apud LIMA; COVOLAN, 2014, p. 399), esse dever é inclusive “sancionável pela ordem jurídica”.
“O principio da função social da propriedade autoriza a imposição, dentro de certos limites, de medidas restritivas à garantia” do direito de propriedade (CUNHA JUNIOR; NOVELINO, 2015, p. 75). “Pela função social, a lei pode impor encargos suportáveis, mas não excessivos ao direito de propriedade, preservando a sua essência” (FALCÃO et al., 1990, p. 236 apud OLIVEIRA; FREITAS, 2013, p. 3).
Já Lopes (2006), propõe que a função social impõe limitações negativas e positivas ao direito de propriedade. As limitações negativas agem sobre o exercício do direito, limitando as prerrogativas do proprietário de usar, gozar e dispor do bem e coibindo condutas antissociais (LOPES, 2006). Já as limitações positivas dizem respeito a um comportamento exigido do proprietário, uma conduta que busque a realização do interesse social (LOPES, 2006).
A Constituição de 1988 estabeleceu “uma economia de livre mercado de natureza capitalista”, a partir da propriedade privada dos meios de produção e da livre iniciativa econômica privada (CUNHA JUNIOR; NOVELINO, 2015, p. 817). Entretanto, também elencou no artigo 170 “numerosos princípios limitando e condicionando o processo econômico, no intuito de direcioná-lo a proporcionar o bem-estar social ou melhoria da qualidade de vida” (CUNHA JUNIOR; NOVELINO, 2015, p. 817). Um desses princípios é a função social da propriedade, assegurado no inciso III do artigo 1704 da Constituição.
De fato, o constituinte repetiu nos incisos II e III do artigo 170, a mesma lógica adotada nos incisos XXII e XXIII do artigo 5º da Constituição (BRASIL, 1988) (LIMA; COVOLAN, 2014). No inciso XXII institui-se o direito de propriedade, para limitá-lo pela função social no inciso seguinte. Da mesma maneira, no inciso II do artigo 170, a Constituição (BRASIL, 1988) estabelece o direito de propriedade, para limitá-lo, novamente, com a função social, no inciso seguinte.
A Constituição disciplina sobre a função social da propriedade urbana no artigo 1865 e da propriedade rural no artigo 182, § 26. Propriedades que não cumprem sua função social estão sujeita a desapropriação, mediante o pagamento das respectivas indenizações, conforme estabelecido no artigo 182, § 4º, IlI7 e artigo 1848 (CUNHA JUNIOR; NOVELINO, 2015, p. 75).
A luz desses dispositivos constitucionais convém destacar que o constituinte deu tratamento ligeiramente diferente para a função social das propriedades urbanas e rurais (OLIVEIRA; FREITAS, 2013). Enquanto que para a propriedade rural, o legislador constituinte definiu o exercício da função social, no caso da propriedade urbana, isso ficou a cargo do legislador infraconstitucional (OLIVEIRA; FREITAS, 2013). Nesse cenário, destaca-se o artigo 399 do Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001), que estabelece o exercício da função social da propriedade urbana. “É impossível dissociar a função social (...) da propriedade urbana, dos direitos fundamentais e garantias relativas à dignidade da pessoa humana, à vida, à saúde, a um ambiente sadio e sustentável” (OLIVEIRA; FREITAS, 2013, p. 4).
3.2. JOHN LOCKE E A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
Locke é considerado como precursor da transformação da propriedade em direito fundamental, passível de proteção pelo Estado, assim como a vida e a liberdade. Essa ideia se concretizou de fato com a Revolução Francesa e a elaboração do Código Napoleônico, que se tornou um marco histórico na mudança da concepção da propriedade, considerada, a partir de então, um direito inviolável e sagrado, apesar de marcadamente individualista (OLIVEIRA; FARIAS, 2006).
Inúmeras codificações foram elaboradas posteriormente ao redor do mundo tendo como fundamento o Código Napoleônico. Dessa forma, a propriedade passou a constar entre os direitos constitucionalmente protegidos, garantindo aos indivíduos sua proteção contra os demais particulares e também contra o abuso do poder público (OLIVEIRA; FARIAS, 2006, p. 359).
Locke, Adam Smith, Immanuel Kant, além de outros entusiastas do Estado Liberal, embora defendessem a propriedade individual, também não desconsideravam seus aspectos éticos e morais e a harmonia social (LOPES, 2006). Pode-se afirmar que Locke é um dos que lança os fundamentos filosóficos da função social da propriedade, ao estabelecer limites para a propriedade individual.
Locke (1994) foi pioneiro ao estabelecer limites ao direito de propriedade. Para o autor, a propriedade era limitada pela capacidade de trabalho do homem e pela possibilidade de retirar apenas o suficiente para garantir-lhe o conforto e a sobrevivência, deixando o necessário para a subsistência dos demais indivíduos.
Uma vez que a propriedade é um direito natural extensível, portanto, a toda a humanidade, um indivíduo, no exercício desse direito não pode prejudicar aos demais. Isso mostra a preocupação de Locke para com o interesse coletivo, ideia bastante alinhada com o moderno conceito de função social da propriedade.
Para Bozzi (2015), ao afirmar que o trabalho é o elemento que fundamenta a propriedade, Locke lança as bases da função social da propriedade, propondo limites à utilização de maneira absoluta à propriedade privada.
Convém lembrar também que, para Locke (1994), os limites ao direito de propriedade citados acima advém do direito natural. Dessa forma, é anterior ao Estado, universal e imutável, estando vigente ainda hoje, de modo que o próprio Estado deve respeitá-lo. Justifica-se, assim, a inclusão dos limites ao direito de propriedade por meio da função social, nos textos constitucionais. “A mesma regra de propriedade, ou seja, que cada homem deve ter tanto quanto pode utilizar, ainda permaneceria válida no mundo sem prejudicar ninguém” (LOCKE, 1994, p. 45).
Por fim, vale destacar que a lei natural proíbe o desperdício:
Mas se a grama apodrecesse no solo de seu cercado ou os frutos de sua plantação perecessem antes de serem colhidos e consumidos, esta parte da terra, não importa se estivesse ou não cercada, podia ser considerada como inculta e podia se tornar posse de qualquer outro (LOCKE, 1994, p. 45).
4. CONCLUSÃO
O presente artigo analisou o princípio da função social da propriedade, buscando fundamentos para esse instituto na obra de John Locke. A função social da propriedade desempenha um importante papel na humanização da propriedade privada, buscando harmonizar os interesses individuais do proprietário com benefícios coletivos extensíveis a toda sociedade. A proposta é compartilhar entre todos a responsabilidade pela construção de uma sociedade justa, livre e solidária (LIMA; COVOLAN, 2014), atribuindo aos proprietários um poder-dever (SOARES, 2006) que além de restrições que visam coibir o abuso no exercício do direito de propriedade, impõem também uma conduta obrigatória (LOPES, 2006).
A obra de Locke (1994) desempenhou um papel fundamental para que o direito de propriedade fosse reconhecido como direito fundamental. Também coube ao autor o pioneirismo em estabelecer limites a esse direito, de modo que o exercício individual não prejudicasse os demais indivíduos. A partir daí, foi possível estabelecer uma relação entre sua obra e a função social da propriedade.
Observou-se que, parte da literatura especializada relaciona partes da obra e pensamento de Locke como fundamento filosófico do moderno conceito da função social da propriedade. Já que, ambos, descaracterizam o direito de propriedade como absoluto. A partir do estudo de parte da literatura, da doutrina, do ordenamento jurídico e da obra de Locke (1994), pode-se concluir que Locke (1994) lançou os fundamentos filosóficos do instituo da função social da propriedade.
O presente estudo apresentou como limitação o fato de ter analisado apenas pequena parte da obra de Locke, notadamente o livro “Dois Tratados sobre o Governo Civil”, e da literatura especializada. Seria oportunamente recomendável um estudo mais extensivo de mais artigos e doutrinas. O presente artigo focou na análise de artigos que faziam relação explícita à relação entre a obra de Locke e o instituto da função social da propriedade.
Como sugestão de trabalhos futuros, seria interessante comparar a posição de Locke sobre propriedade e a sua função social, com a obra de outros contratualistas como Hobbes e Rousseau. Outra opção seria analisar o instituto da função social da propriedade no direito comparado por meio de um estudo horizontal. Também seria oportuna uma pesquisa que buscasse referências implícitas entre o pensamento de Locke e a função social da propriedade.