Resumo: John Locke, ideólogo do liberalismo e teórico do contrato social, é considerado o precursor da transformação da propriedade em direito fundamental, passível de proteção pelo Estado. Coube-lhe também o pioneirismo no estabelecimento de limites ao uso da propriedade. O presente estudo apresentou elementos do pensamento e da obra de Locke, relacionando-os aos fundamentos filosóficos do moderno conceito de função social da propriedade, bem como discutiu esse princípio à luz dos dispositivos previstos no ordenamento jurídico brasileiro.
Palavras-chave: Direito de Propriedade, Direito Natural, Limites, Função Social, John Locke.
1. INTRODUÇÃO
Ainda no século XVII, quando a propriedade era tida como um direito absoluto, o médico e filósofo inglês John Locke, um dos principais teóricos do liberalismo, já reconhecia limites ao seu exercício.
Compreender a fundação social da propriedade e a limitação constitucional de seu exercício exige uma breve viagem no tempo. É necessário buscar, nas fontes do liberalismo clássico — especialmente na teoria política de John Locke —, os fundamentos filosóficos da propriedade (BOZZI, 2015).
Segundo Bobbio (1992, p. 5), “os direitos do homem são direitos históricos que nascem e se modificam conforme as condições históricas e o contexto social, político e jurídico em que se inserem”. Assim, o direito de propriedade também se transformou ao longo dos anos (BULOS, 2015), acompanhando a evolução social e assumindo caráter dinâmico (LIMA; COVOLAN, 2014).
Historicamente, caminhou-se da ideia de propriedade coletiva, entendida como bem comum, para um conceito individual e absoluto, até se chegar à concepção atual, segundo a qual, embora assegurada individualmente, a propriedade deve atender à sua função social (TAVARES, 2006, p. 150. apud LIMA; COVOLAN, 2014, p. 391).
A função social da propriedade constitui parte indissociável do direito de propriedade e importante limite ao seu exercício, que, no Estado contemporâneo, já não é mais absoluto (SOARES, 2006). Encontra-se positivada na Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), influindo em sua utilização urbana, rural e econômica.
Locke (1994) foi um dos pioneiros ao definir a propriedade como direito fundamental do indivíduo e, simultaneamente, ao propor limites à sua utilização. Parte da literatura especializada identifica em sua obra fundamentos filosóficos do moderno conceito de função social da propriedade, uma vez que ambos os enfoques procuram afastar a noção de propriedade como direito absoluto.
O objetivo deste trabalho é, com base na doutrina, no ordenamento jurídico e na literatura especializada, estabelecer o vínculo entre a obra de John Locke e a função social da propriedade. Para tanto, será apresentada uma breve análise de sua teoria, com destaque para o livro Dois Tratados sobre o Governo Civil, seguida de um estudo sobre a função social da propriedade no direito brasileiro.
Este estudo está organizado da seguinte forma: após esta introdução, serão abordados os principais conceitos do pensamento de Locke (1994); em seguida, será analisada a relação entre o direito de propriedade e sua função social; por fim, serão apresentadas as conclusões extraídas da pesquisa.
2. PENSAMENTO E OBRA DE JOHN LOCKE
John Locke1 (1632-1704), considerado o ideólogo do liberalismo e um dos principais teóricos do contrato social, publicou suas principais obras entre 1689 e 1690. Destaca-se, para os fins deste artigo, o livro Dois Tratados sobre o Governo Civil (BOZZI, 2015), “a primeira e mais completa formulação do Estado Liberal” (BOBBIO, 2000, p. 59).
No Primeiro Tratado sobre o Governo Civil, Locke refuta a teoria do direito divino dos reis. Entretanto, foi o Segundo Tratado — ensaio sobre a origem, extensão e finalidade do governo civil — que o tornou célebre (BOZZI, 2015). Nessa obra, defende que o Estado é criado a partir de um contrato social firmado entre os homens, por meio do qual renunciam à liberdade absoluta do estado de natureza para viver sob o Estado social (SOARES, 2006).
2.1. O ESTADO DE NATUREZA
Locke afirma que a existência do indivíduo antecede o surgimento da sociedade e do Estado (BOZZI, 2015). Para compreender o poder político e sua primeira instituição — o Estado — é preciso entender a condição em que os homens viviam antes dele (LOCKE, 1994). Essa condição é chamada de Estado de Natureza, caracterizada por liberdade e igualdade absolutas.
A liberdade absoluta decorre do fato de que, nesse estado, os homens são inteiramente livres para decidir suas ações, dispor de seus bens e de suas próprias pessoas, sem depender da autorização de outrem (LOCKE, 1994). A igualdade absoluta, por sua vez, se manifesta na ausência de subordinação entre os homens, exceto se Deus, criador e senhor de todos, assim o determinasse (LOCKE, 1994). Trata-se, portanto, de um estado de paz, harmonia e concórdia (BOZZI, 2015), diferindo da visão de Hobbes, que descreve o estado de natureza como um ambiente de guerra e egoísmo (BOZZI, 2015).
Locke (1994) adverte, contudo, que o Estado de Natureza, embora caracterizado por liberdade, não é um estado de permissividade. Existem limites estabelecidos pelo Direito Natural (ou Lei da Natureza), responsável por criar e garantir os direitos fundamentais dos homens, tais como liberdade, igualdade e propriedade (OLIVEIRA; FARIAS, 2006). Para Bobbio (1998, p. 164. apud OLIVEIRA; FARIAS, 2006, p. 345), a lei natural “refere-se ao conjunto de regras de conduta que a razão encontra e propõe”.
Segundo Locke (1994), o Direito Natural é: 1) imposto a todos e revelado pela razão; 2) inteligível e claro a toda criatura racional; e 3) mais evidente que as leis positivas da comunidade civil, uma vez que a razão é universal. “As leis da natureza (...) não perdem a sua validade, devendo ser respeitadas mesmo após a instituição do governo civil, uma vez que funcionam como espécie de limite ao poder político” (OLIVEIRA; FARIAS, 2006, p. 346).
Pela Lei da Natureza, o homem não pode destruir a si mesmo nem a qualquer outra criatura, salvo para alcançar um fim mais nobre — a própria conservação (LOCKE, 1994). Como não há hierarquia entre os homens, nenhum pode destruir o outro ou utilizá-lo como instrumento para seus fins, função reservada apenas às ordens inferiores da criação (LOCKE, 1994). “Sendo todos iguais e independentes, ninguém deve lesar o outro em sua vida, sua saúde, sua liberdade ou seus bens” (LOCKE, 1994, p. 36).
Para Locke (1994), de nada valeria a Lei da Natureza — como qualquer outra lei — se não houvesse quem a executasse para proteger os inocentes e conter os transgressores. No Estado de Natureza, o direito de punir aqueles que violam a lei pertence a todos, já que, em situação de perfeita igualdade, não há superioridade ou jurisdição de um homem sobre outro. Assim, o que um pode fazer em defesa da lei natural, todos podem igualmente fazer.
Entretanto, Locke (1994) reconhece que não é razoável que os homens sejam juízes em causa própria, pois tenderiam à parcialidade, deixando-se levar por paixões e desejos de vingança. “Com a ausência de um ‘juiz’ imparcial para julgar as controvérsias, corria-se o risco da instalação de um verdadeiro caos, momento em que se sentiu a necessidade da criação de um Estado civil” (OLIVEIRA; FARIAS, 2006, p. 348). Para corrigir as imperfeições do Estado de Natureza, os indivíduos, mediante o contrato social, uniram-se para constituir a sociedade civil (LOCKE, 1994; BOZZI, 2015).
2.2. PROPRIEDADE
Para Bobbio (2000, p. 103), há duas correntes que justificam a propriedade privada: a primeira entende ser um direito natural, surgido ainda no Estado de Natureza, antes da formação do Estado; a segunda a considera consequência do contrato social e da constituição da sociedade civil. Entre os que a viam como fruto da vida em sociedade estavam Hobbes e Rousseau (SOARES, 2006). Locke, contudo, defendia que a propriedade era um direito natural (SOARES, 2006, p. 2).
Para Locke (1994), a propriedade é um direito natural fundamentado na Lei da Natureza, sendo sinônimo de vida, liberdade e bens. No Estado de Natureza, os homens, dotados de razão e conhecedores dessa lei, já usufruíam da propriedade, independentemente da existência de contrato social ou de sociedade civil. Por ser natural, a propriedade é um direito que deve ser respeitado por todos — inclusive pelo Estado —, pois deriva da própria lei natural e, portanto, é anterior a ele.
Assim, o Estado, mesmo dotado de poder soberano, não pode intervir na propriedade do indivíduo sem seu consentimento (LOCKE, 1994). Trata-se de um direito inerente à condição humana e independente do poder estatal (SOARES, 2006). Negar o direito natural à propriedade é atentar contra a dignidade humana (LIMA; COVOLAN, 2014).
Locke sustenta que os indivíduos abandonaram o Estado de Natureza e consentiram na criação da sociedade civil justamente para preservar a propriedade e assegurar seu gozo com segurança e tranquilidade (BOZZI, 2015; SOARES, 2006). Esse seria o principal objetivo do governo:
"O grande objetivo dos homens quando entram em sociedade é desfrutar de sua propriedade pacificamente e sem riscos. (...) A preservação da propriedade é o objetivo do governo, e a razão por que o homem entrou em sociedade." (LOCKE, 1994, p. 71. e 73).
Inicialmente, Locke (1994) afirma que todas as coisas foram criadas por Deus e concedidas à humanidade para garantir sua subsistência e conforto, sendo, portanto, propriedade comum de todos:
"Deus, que deu o mundo aos homens em comum, deu-lhes também a razão, para que se servissem dele para o maior benefício de sua vida e de suas conveniências. A terra e tudo o que ela contém foi dada aos homens para o sustento e o conforto de sua existência. Todas as frutas que ela naturalmente produz, assim como os animais (..) que alimenta, pertencem à humanidade em comum, pois são produção espontânea da natureza (...), bens se apresentam em seu estado natural." (LOCKE, 1994, p. 42).
Apesar dessa origem comum, Locke defende a propriedade privada, cujo fundamento é o trabalho (BOZZI, 2015; LOPES, 2006). Essa é a parte mais original de seu pensamento (OLIVEIRA; FARIAS, 2006). Como defensor do liberalismo político, concebe a propriedade como instrumento de subsistência individual, adquirida pelo trabalho (OLIVEIRA; FARIAS, 2006).
Segundo Locke (1994), todos são proprietários: mesmo quem não possui bens materiais é dono de sua vida, de seu corpo, de sua capacidade e, portanto, dos frutos de seu trabalho (BOZZI, 2015). Como o trabalho do corpo pertence ao indivíduo, também lhe pertence tudo o que dele resulta. O trabalho, assim, dá origem ao direito de propriedade em sentido estrito — bens, patrimônio e domínio individual (BOZZI, 2015).
Portanto, quando o homem retira algo do Estado de Natureza e lhe acrescenta seu trabalho, esse objeto passa a ser sua propriedade (OLIVEIRA; FREITAS, 2013).
“Ao incorporar seu trabalho à matéria bruta que se encontrava em estado natural, o homem tornava-a sua propriedade ‘privada’, estabelecendo sobre ela um direito próprio do qual estavam excluídos todos os outros homens.” (BOZZI, 2015).
“Assim, esta lei da razão dá ao índio o veado que ele matou; admite-se que a coisa pertence àquele que lhe consagrou seu trabalho, mesmo que antes ela fosse direito comum de todos.” (LOCKE, 1994, p. 43).
"Ainda que a terra e todas as criaturas inferiores pertençam em comum a todos os homens, cada um guarda a propriedade de sua própria pessoa; sobre esta ninguém tem qualquer direito, exceto ela. Podemos dizer que o trabalho de seu corpo e a obra produzida por suas mãos são propriedade sua. Sempre que ele tira um objeto do estado em que a natureza o deixou, mistura nisso o seu trabalho e a isso acrescenta algo que lhe pertence, por isso o tornando sua propriedade. Ao remover este objeto do estado comum em que a natureza o colocou, através do seu trabalho adiciona-lhe algo que exclui o direito comum dos outros homens. Sendo este trabalho uma propriedade inquestionável do trabalhador, nenhum homem, exceto ele, pode ter o direito ao que o trabalho lhe acrescentou." (LOCKE, 1994, p. 42).
"Assim, a grama que meu cavalo pastou, a relva que meu criado cortou, e o ouro que eu extraí em qualquer lugar onde eu tinha direito a eles em comum com outros, tornaram-se minha propriedade sem a cessão ou o consentimento de ninguém. O trabalho de removê-los daquele estado comum em que estavam fixou meu direito de propriedade sobre eles." (LOCKE, 1994, p. 43).
2.3. LIMITES AO DIREITO DE PROPRIEDADE
Para Locke (1994), o homem é livre para se apropriar dos frutos da terra mediante o trabalho, desde que deixe o suficiente para garantir a subsistência dos demais. Toda a sua argumentação fundamenta-se na conservação da vida e na suficiência dos recursos. A Lei da Natureza também impõe a proibição do desperdício, considerado contrário à razão e à moral natural. O que excede ao necessário para a própria sobrevivência pertence aos outros (LOPES, 2006).
"A mesma lei da natureza que nos concede (...) a propriedade, também lhe impõe limites. ‘Deus nos deu tudo em abundância’ (1Tm 6,17), e a inspiração confirma a voz da razão. Mas até que ponto ele nos fez a doação? Para usufruirmos dela. Tudo o que um homem pode utilizar de maneira a retirar uma vantagem (..) para sua existência sem desperdício, eis o que seu trabalho pode fixar como sua propriedade. Tudo o que excede a este limite (...) pertence aos outros. Deus não criou nada para que os homens desperdiçassem ou destruíssem." (LOCKE, 1994, p. 43).
Há, portanto, duas limitações ao direito de propriedade: ele abrange apenas aquilo obtido mediante o trabalho e o que for necessário e suficiente para assegurar a sobrevivência e o conforto do homem (OLIVEIRA; FREITAS, 2013).
"A extensão de terra que um homem pode arar, plantar, melhorar e cultivar e os produtos dela que é capaz de usar constituem sua propriedade. Mediante seu trabalho, ele, por assim dizer, delimita parte do bem comum.” (LOCKE, 1994, p. 43).
Como o direito de propriedade abrange apenas aquilo que for conquistado por meio do trabalho, naturalmente, estabelece-se um limite à extensão da propriedade, já que é fixada pela capacidade limitada de trabalho do ser humano (BOZZI, 2015). Assim, não é possível ao ser humano se apropriar de uma extensão de terra maior do que sua capacidade de trabalho lhe permite cuidar (SOARES, 2006).
“A medida da propriedade natural foi bem estabelecida pela extensão do trabalho do homem e pela conveniência da vida. Nenhum trabalho humano podia subjugar ou se apropriar de tudo; seu prazer só podia consumir uma pequena parte; dessa maneira, era impossível para qualquer homem usurpar o direito de outro ou adquirir para uso próprio uma propriedade em prejuízo de seus vizinhos.” (LOCKE, 1994, p. 44)
3. DIREITO DE PROPRIEDADE E FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
“O direito de propriedade é a expressão jurídica da propriedade. Revela o poder atribuído pela Constituição para o indivíduo usar, gozar e dispor da coisa.” (BULOS, 2015, p. 615)
Tal direito encontra-se consagrado na Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XXII2, integrando o rol dos direitos fundamentais (CUNHA JUNIOR; NOVELINO, 2015, p. 42). Seu objetivo é impedir “intervenções desprovidas de fundamentação constitucional em seu âmbito de proteção” (CUNHA JUNIOR; NOVELINO, 2015, p. 42).
Entretanto, da mesma forma que o define, a Constituição também o limita, por meio de restrições diretas e indiretas, de modo que não pode ser considerado um direito absoluto (CUNHA JUNIOR; NOVELINO, 2015, p. 42). Entre essas limitações está o princípio da função social da propriedade, previsto no artigo 5º, inciso XXIII3, igualmente entre os direitos fundamentais. Assim, a Constituição garante o direito de propriedade, desde que este atenda à sua função social (OLIVEIRA; FREITAS, 2013).
A Constituição de 1988 (BRASIL, 1988) estabeleceu, em seu artigo 5º, inciso XXIII, que a propriedade deve atender à sua função social de forma geral. Em outras disposições, determinou sua aplicação conforme a natureza do bem: à propriedade inserida em contexto econômico (art. 170, III), à propriedade urbana (art. 182, § 2º) e à propriedade rural (art. 184) (LIMA; COVOLAN, 2014, p. 399).
O Supremo Tribunal Federal, ao interpretar tais dispositivos, reconhece que o direito de propriedade não possui caráter absoluto, pois sobre ele “pesa grave hipoteca social”, o que significa que, descumprida a função social que lhe é inerente (CF, art. 5º, XXIII), legitima-se a intervenção estatal na esfera dominial privada (STF, ADIn 2.213-MC, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 23.4.2004).
3.1. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
O direito de propriedade, sobretudo após o advento do Estado Democrático de Direito, não pode ser compreendido isoladamente do princípio da função social (OLIVEIRA; FREITAS, 2013; LIMA; COVOLAN, 2014). A função social constitui elemento integrante da própria estrutura desse direito (SOARES, 2006), razão pela qual ele não pode ser considerado absoluto (LIMA; COVOLAN, 2014). A responsabilidade pela construção de uma sociedade livre, justa e solidária passa, assim, a ser compartilhada por todos os cidadãos (LIMA; COVOLAN, 2014; LOPES, 2006).
Bulos (2015, p. 617) define que “a função social da propriedade é a destinação economicamente útil da propriedade, em nome do interesse público”. Para o autor, o instituto, ao limitar o exercício do direito, visa otimizar sua utilização e impedir que seja “utilizada em detrimento do progresso e da satisfação da comunidade”.
Segundo Bozzi (2015), a Constituição de 1988 trouxe a função social da propriedade ao centro da teoria política constitucional. Desse modo, o texto constitucional apenas protege a propriedade que cumpre sua função social, compatibilizando o exercício do direito com sua utilidade pública (SOARES, 2006). Trata-se de uma concepção de uso racional da propriedade — uma utilização que não seja nociva ao bem-estar coletivo (ZIMMERMANN, 2004, p. 691. apud OLIVEIRA; FREITAS, 2013, p. 3).
A propriedade, nesse sentido, é vista como meio de realização humana (BOZZI, 2015). O princípio da função social contribui para humanizar o capitalismo e efetivar valores constitucionais como os direitos humanos, a cidadania, a solidariedade, a igualdade material e a dignidade da pessoa humana, segundo os ditames da justiça social (LIMA; COVOLAN, 2014, p. 385).
Embora seja “instituto do direito privado por excelência, [a propriedade] adquire conotação social” (SOARES, 2006, p. 14), passando a ter “dupla função” (CAVEDON, 2003, p. 50. apud SOARES, 2006, p. 10): atender às necessidades particulares do proprietário e promover o bem comum (SOARES, 2006, p. 12). Essa concepção busca conciliar o interesse individual do proprietário com o interesse coletivo, sem retornar às formas coletivistas da Antiguidade nem instaurar um ideal socialista (SOARES, 2006).
A função social estabelece uma finalidade superior à propriedade, transcendendo o interesse exclusivo do proprietário e sua mera utilização individual (OLIVEIRA; FREITAS, 2013, p. 3). Soares (2006) caracteriza a posição do proprietário como um “poder-dever”: ao mesmo tempo em que tem o poder de usar seus bens para atender suas necessidades, deve também adequar tal uso aos interesses da coletividade. Para Comparato (1986, p. 75. apud LIMA; COVOLAN, 2014, p. 399), esse dever é “sancionável pela ordem jurídica”.
“O princípio da função social da propriedade autoriza a imposição, dentro de certos limites, de medidas restritivas à garantia do direito de propriedade.” (CUNHA JUNIOR; NOVELINO, 2015, p. 75)
“Pela função social, a lei pode impor encargos suportáveis, mas não excessivos, ao direito de propriedade, preservando sua essência.” (FALCÃO et al., 1990, p. 236. apud OLIVEIRA; FREITAS, 2013, p. 3)
Lopes (2006) propõe que a função social impõe limitações negativas e positivas ao direito de propriedade. As limitações negativas restringem as prerrogativas do proprietário de usar, gozar e dispor do bem, coibindo condutas antissociais. Já as limitações positivas exigem um comportamento ativo, voltado à realização do interesse social.
A Constituição de 1988 estabeleceu “uma economia de livre mercado de natureza capitalista”, fundada na propriedade privada dos meios de produção e na livre iniciativa (CUNHA JUNIOR; NOVELINO, 2015, p. 817). No entanto, o artigo 1704 inclui “numerosos princípios limitando e condicionando o processo econômico, no intuito de direcioná-lo a proporcionar o bem-estar social e a melhoria da qualidade de vida” (CUNHA JUNIOR; NOVELINO, 2015, p. 817). Um desses princípios é a função social da propriedade, assegurada no inciso III do artigo 170 da Constituição.
O constituinte reproduziu, nos incisos II e III do artigo 170, a mesma lógica adotada nos incisos XXII e XXIII do artigo 5º (BRASIL, 1988) (LIMA; COVOLAN, 2014). No primeiro, institui-se o direito de propriedade; no seguinte, sua limitação pela função social.
A Constituição ainda disciplina a função social da propriedade rural no artigo 1865 e da urbana no artigo 182, § 2º6. Propriedades que não cumprem sua função social estão sujeitas à desapropriação, mediante o pagamento de indenização, conforme o artigo 182, § 4º, III7, e o artigo 1848 (CUNHA JUNIOR; NOVELINO, 2015, p. 75).
À luz desses dispositivos, verifica-se que o constituinte tratou de modo distinto a função social das propriedades rurais e urbanas (OLIVEIRA; FREITAS, 2013). Enquanto, para a propriedade rural, o próprio texto constitucional definiu o conteúdo da função social, no caso da propriedade urbana essa definição foi delegada ao legislador infraconstitucional. Nesse contexto, destaca-se o artigo 399 do Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001), que regulamenta o exercício da função social da propriedade urbana.
“É impossível dissociar a função social (...) da propriedade urbana, dos direitos fundamentais e garantias relativas à dignidade da pessoa humana, à vida, à saúde e a um ambiente sadio e sustentável.” (OLIVEIRA; FREITAS, 2013, p. 4)
3.2. JOHN LOCKE E A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
John Locke é considerado o precursor da transformação da propriedade em direito fundamental, passível de proteção estatal, assim como a vida e a liberdade. Essa concepção ganhou concretude com a Revolução Francesa e a elaboração do Código Napoleônico, marco histórico que consolidou a propriedade como direito inviolável e sagrado, embora ainda fortemente individualista (OLIVEIRA; FARIAS, 2006).
Diversas codificações posteriores, em diferentes países, inspiraram-se no modelo napoleônico. A partir delas, a propriedade passou a figurar entre os direitos constitucionalmente protegidos, garantindo ao indivíduo proteção não apenas contra os demais particulares, mas também contra eventuais abusos do poder público (OLIVEIRA; FARIAS, 2006, p. 359).
Locke, Adam Smith, Immanuel Kant e outros pensadores liberais, embora defensores da propriedade privada, não desconsideravam seus aspectos éticos, morais e sociais (LOPES, 2006). Locke, em especial, lança as bases filosóficas da função social da propriedade ao estabelecer limites à apropriação individual.
Para Locke (1994), a propriedade é limitada pela capacidade de trabalho do homem e pela necessidade de retirar apenas o suficiente para garantir conforto e sobrevivência, preservando o necessário à subsistência dos demais. Como direito natural, extensível a toda a humanidade, o exercício da propriedade não pode causar prejuízo a outrem. Essa preocupação com o interesse coletivo antecipa o moderno conceito de função social da propriedade.
Segundo Bozzi (2015), ao afirmar que o trabalho é o fundamento da propriedade, Locke estabelece os pilares filosóficos da função social, propondo restrições à utilização ilimitada do bem privado.
Importa lembrar que, para Locke (1994), tais limites derivam do Direito Natural — portanto, são anteriores ao Estado, universais e imutáveis, mantendo-se válidos ainda hoje. O próprio Estado deve respeitá-los, o que justifica a inclusão, nos textos constitucionais contemporâneos, de dispositivos que condicionam o direito de propriedade ao atendimento de sua função social.
“A mesma regra de propriedade, ou seja, que cada homem deve ter tanto quanto pode utilizar, ainda permaneceria válida no mundo sem prejudicar ninguém.” (LOCKE, 1994, p. 45)
Por fim, Locke destaca que a Lei da Natureza proíbe o desperdício:
“Mas se a grama apodrecesse no solo de seu cercado ou os frutos de sua plantação perecessem antes de serem colhidos e consumidos, esta parte da terra, não importa se estivesse ou não cercada, podia ser considerada como inculta e podia se tornar posse de qualquer outro.” (LOCKE, 1994, p. 45)