A lei n. 10.358, de 27 de dezembro de 2001, alterando o art. 14 do Código de Processo Civil, introduziu entre os deveres das partes e seus procuradores, o de cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final. Apesar do dispositivo apenas registrar a obrigatoriedade das partes e de seus procuradores, trata-se, na verdade, de princípio natural, de que todos aqueles que, por os motivos mais variados, participem da relação processual, inclusive o Ministério Público, auxiliares do Juízo, testemunhas, peritos e arbitradores, devem respeitar os provimentos judiciais.
A mesma lei supra citada incluiu o parágrafo único ao artigo 14, consignando que ressalvados os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB, a violação do dispositivo no inciso V deste artigo constitui ato atentatório ao exercício da jurisdição, podendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa em montante a ser fixado de acordo com a gravidade da conduta e não superior a vinte por cento do valor da causa; não sendo paga no prazo estabelecido, contado do trânsito em julgado da decisão final da causa, a multa será inscrita sempre como dívida ativa da União ou do Estado.
A nova estipulação legal, ao utilizar o termo responsável ou invés de parte, por óbvio inclui também como possível alvo da multa criada, todos aqueles que de qualquer forma participem do processo, independente de sua condição de estarem ou não no pólo passivo ou ativo da relação processual. Se de um lado, todos devem obediência ao mandamento judicial, a nova multa, como não devia deixar de ser, exclui expressamente a responsabilidade pessoal dos advogados, que se sujeitam aos estatutos da OAB. Tal ressalva, no entanto, não pode ser utilizada se o profissional estiver figurando como parte no processo. Como preconiza OVÍDIO A. BAPTISTA DA SILVA [1], comentando o artigo 14 do Código de Processo Civil, a rigor o próprio juiz não está imune a observância de idênticas prescrições, apenas com a diferença de que as eventuais sanções que lhe venham a ser cominadas serão de outra ordem, como de outra ordem haverão de ser as que caibam contra os auxiliares do Juízo e ao próprio representante do Ministério Público que não seja parte na causa.
Tratando-se o responsável pelo cumprimento da ordem judicial de pessoa jurídica e levando-se em conta que o objetivo da multa introduzida pelo parágrafo único, do art. 14, do CPC, é desestimular o descumprimento do mandamento judicial, não há que se cogitar em aplicar a sanção contra diretores, proprietários ou qualquer pessoa física responsável pela mesma, já que a sanção direta contra a pessoa jurídica seria apta a coibir o descumprimento, já que o desembolso de numerário para o pagamento, será sempre medida a ser evitada, impelindo o cumprimento da ordem.
Por outro lado, tendo em vista que a multa não se destina ao patrimônio do prejudicado, já que o credor é o próprio Estado, incumbido de tutelar o interesse público provocado pelo ato atentatório à dignidade da jurisdição, quando o descumprimento da ordem judicial advir de pessoa jurídica de direito público, o raciocínio não se aplica, já que neste caso, o credor seria simultaneamente devedor do valor aplicado a título de multa, anulando os efeitos buscados pela norma interpretada. Afinal, é de se presumir que o Poder Público não inscreva como dívida ativa, nem muito menos proceda a execução, quando a responsabilidade pelo pagamento da multa estipulada judicialmente seja o próprio Poder Público.
D’outra banda, não se pode olvidar que o Poder Público não é um bom exemplo de cumpridor de determinações judiciais, sempre com pretextos dos mais variados. O descumprimento sob alegação de que o mandamento contraria o ordenamento jurídico, corriqueiramente invocado e condenado pela comunidade jurídica nacional, faz a parte assumir condição de juiz do juiz, apresentando-se em posição hierárquica superior, com condições de questionar administrativamente o mérito da decisão e inclusive modificá-lo. Tolerar esta prática, além de implicar desrespeito ao Poder Judiciário e ao Princípio Constitucional da Independência dos Poderes, seria ferir de morte o almejado Estado de Direito [2]. Até porque, qualquer decisão defeituosa, pode ser alvo de recurso, cuja validade, no entanto, permanece íntegra até ulterior e eventual reforma.
Neste contexto, apresenta-se manifesto que sempre que o juiz aplicar multa por descumprimento de ordem judicial responsabilizando pessoa jurídica de direito público, o dispositivo em comento será letra morta. Como é curial que o dispositivo aplica-se a todos aqueles que participem da relação processual, inclusive o Poder Público e tendo em conta que a falta de mecanismos sancionatórios retirará os efeitos práticos do dispositivo, em interpretação que alcance eficácia à norma [3], há que se analisar a possibilidade da responsabilização pessoal da autoridade que deixou de cumprir com os provimentos mandamentais.
HUGO DE BRITO MACHADO [4], em recente estudo sobre a matéria, defende que quando seja parte no processo a Fazenda Pública, ou uma outra pessoa jurídica, a multa prevista no parágrafo único do art. 14, do Código de Processo Civil, deve ser aplicada àquele que a corporifica, ao agente público, ao dirigente ou representante da pessoa jurídica ao qual caiba a conduta a ser adotada em cumprimento da decisão judicial. Não é razoável, diz o mestre, sustentar-se, que, sendo o Estado responsável pela prestação jurisdicional, cuja presteza lhe cabe preservar, tutelando e defendendo o interesse público primário, possa ele próprio, cometer um ato atentatório a dignidade da jurisdição. Quem comete esse ato na verdade é o servidor público que não está realmente preparado para o desempenho de suas atribuições em um Estado de Direito. A esse, portanto, cabe suportar a sanção correspondente.
Ouso divergir apenas em relação a inclusão de todas as pessoas jurídicas, inclusive as de direito privado à regra da responsabilidade do dirigente ou representante, pela multa relativa ao descumprimento do provimento judicial. É que, conforme já realçado, o objetivo legal é alcançado, em relação a estas, quando a multa é aplicada. Afinal, não parece haver dúvidas que a aplicação de sanção pecuniária, implica em forte desestímulo a conduta violadora do dever de cumprir as decisões. O raciocínio é irretocável, no entanto, quando preconiza a responsabilidade da autoridade pública em pessoalmente responder pela multa decorrente do descumprimento.
Não alcançada a suspensão ou modificação da decisão judicial (proferida em juízo liminar ou definitivo) via recurso cabível, o descumprimento do dever de atender com exatidão os provimentos advindos da decisão judicial tida como defeituosa ou contrária ao ordenamento jurídico, implicará em pena pecuniária a ser exigida do servidor público responsável pelo não cumprimento. Além de conferir efetividade as decisões advindas do Poder Judiciário, a medida reduzirá drasticamente o descumprimento de determinações judiciais por agentes do Poder Público, que sempre terão presente o risco da responsabilização pessoal.
Outrossim, como a multa somente será devida, após o trânsito em julgado da decisão final da causa, se a decisão final torna insubsistente o mandamento que deu azo a aplicação da multa, esta não será aplicada, devendo, no entanto, a instância superior proceder explicitamente o seu afastamento. Como adverte com razão HUGO DE BRITO MACHADO [5], a não ser assim, não se justificaria estabelecer que o prazo para o seu pagamento começa da data em que transita em julgado a decisão final da causa. Dir-se-à que essa interpretação amesquinha o poder coercitivo da multa, levando a parte a descumprir o provimento na esperança de que a decisão que ela tenta fazer valer seja a final reformada. E isto é verdade. Mas, a interpretação segundo a qual a multa subsiste mesmo quando reformada a decisão cujo descumprimento ensejou sua aplicação tem o grave defeito de estimular decisões arbitrárias, que não devem ser estimuladas porque o juiz é humano e como tal eventualmente pode abusar do seu poder.A insubsistência da multa em face da reforma da decisão que ensejou sua aplicação na verdade pode estimular a parte à conduta desobediente. Essa desobediência, porém, será sempre responsável. Aplicada a multa, a parte saberá que se não a cumprir estará correndo o risco de, uma vez mantida a decisão, ser-lhe exigida a multa. Assim, é razoável admitir-se que só vai desobedecer ao provimento judicial se estiver sinceramente convencida de que o mesmo é ilegal e será reformado pela instância superior.
Em suma: todos aqueles que participem da relação processual, com exceção dos advogados, promotores e auxiliares do juízo, estarão sujeitos a multa do parágrafo único do art. 14 do Código de Processo Civil. Quando seja parte no processo pessoa jurídica de direito público, em vista do princípio da efetividade da norma, a multa deve ser aplicada àquele que a corporifica, ao agente público ao qual caiba a conduta a ser adotada em cumprimento da decisão judicial.
Notas
1 Comentários do Código de Processo Civil, vol.1, p. 102, RT, São Paulo, 2000.
2
O princípio da legalidade é também um princípio basilar do Estado Democrático de Direito. É da essência do seu conceito subordinar-se à Constituição e fundar-se na legalidade democrática. Sujeita-se, como todo Estado de Direito, ao império da lei, mas da lei que realize o princípio da igualdade e da justiça não pela sua generalidade, mas pela busca da igualização das condições dos socialmente desiguais. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Ed. Malheiros Editores, 15ª ed., São Paulo,1998.3
A eficácia jurídica designa a força que tema a norma jurídica de produzir os seus próprios efeitos na regulamentação da conduta humana; indica uma possibilidade da aplicação da norma, a sua exigibilidade, a sua exeqüibilidade, a sua executoriedade como possibilidade. O que caracteriza o direito é a coercibilidade, a possibilidade da coação; o que caracteriza a eficácia é a possibilidade da sua executoriedade. FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Constitucional. Ed. Saraiva, 11ª ed., São Paulo, p. 23, 2001.4
Descumprimento de Decisão Judicial e Responsabilidade Pessoal do Agente Publico in Revista Dialética de Direito Tributário n. 86, p. 50 usque 59, Oliveira Rocha, São Paulo, 2002.5
Ob. Cit., p. 57.