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Novo Código Civil:

principais alterações na Parte Geral

Agenda 01/11/2000 às 00:00

A abordagem legislativa dos fatos deve primar pela clareza, não lhe sendo permitido resvalar para o hermético, limitando sua compreensão aos especialistas e operadores do Direito

As profundas transformações históricas ocorridas no decurso do século XX, sobretudo nos variados setores da vida privada, impunham o amoldamento do novo Código Civil à configuração social contemporânea que permeia as relações pessoais e patrimoniais ocorrentes. Usos e costumes que se foram sucedendo, muitas vezes à margem do direito legislado, desempenharam um papel impulsionador na revisão de antigos preceitos jurídicos que já não podiam ser tidos como tradicionais, visto como tradição significa continuidade ligando o passado ao presente para identificá-los numa mesma e única realidade social.

Dessa contingência, a que se submetia o texto codificado como um todo, não poderia escapar, evidentemente, sua Parte Geral, a cujo respeito já discorria o Prof. Miguel Reale, na Exposição de Motivos que acompanhava o Anteprojeto em sua versão original de 1972: "Se foi mantido o modelo do Código de 1916, foram introduzidas, todavia, notáveis modificações na Parte Geral, enriquecida por vários dispositivos, a começar pelos concernentes aos direitos da personalidade, consoante vem sendo reclamado pela doutrina nacional e estrangeira, e já é objeto de disciplina nas mais recentes codificações."

Também na revisão do Anteprojeto, procedida em 1974, houve alterações da Parte Geral, ainda confiada ao Prof. José Carlos Moreira Alves, que apresentou, na ocasião, uma Exposição de Motivos Complementar.

Na seqüência de modificações, a que se submeteu o texto inovador, ao longo das várias etapas de sua elaboração, fez-se sentir, além do esforço orientado no sentido de acomodação à incessante mutabilidade social, anteriormente referida, também a preocupação com o rigor científico, obtido através da uniformização da nomenclatura legal e da precisa caracterização do sentido e da finalidade de cada uma das normas legisladas.

Como faz ver Miguel Reale, opinando desta feita sobre a situação atual do Projeto de Código Civil, deve-se nele realçar "o zelo e o rigor com que se procurou determinar a matéria relativa à validade e eficácia dos atos e negócios jurídicos, assim como as pertinente aos valores da pessoa e dos bens". (1)

Por suas características próprias, de relativo grau de abstração, a Parte Geral dos códigos corre sempre o risco de converter-se em local propício ao embate das correntes doutrinárias, com inversão do relacionamento entre o Direito-Norma e o Direito-Ciência. Ora, a Ciência do Direito não pode antepor-se ao próprio Direito, sob pena de recairmos numa visão idealista da realidade, ultrapassando até mesmo aquele entendimento, um tanto ligado ao idealismo subjetivo, de que "cada ciência cria o seu próprio objeto" (Kant) para abraçar a tese extremada, fruto do idealismo objetivo, de que "todo racional é real, todo real é racional" (Hegel).

A abordagem legislativa dos fatos deve primar pela clareza, não lhe sendo permitido resvalar para o hermético, limitando sua compreensão aos especialistas e operadores do Direito. Exige-se que as leis sejam visíveis, perceptíveis, legíveis, colocadas ao alcance de todos os homens, tanto no estabelecimento dos princípios a que se subordina, quanto na caracterização dos institutos jurídicos que lhe incumbe criar.

O jurista norte-americano K. N. Llewellwyn, em precioso estudo dedicado à linguagem do Direito, àquilo que denomina sua "estética" própria, adverte que "somente a regra que mostra sua razão com claridade pode aspirar justificadamente a certa continuidade de eficácia", (2)

Não se pretende, com isso, excluir a doutrina da posição, tradicionalmente reconhecida, de fonte secundária do Direito mas, pelo contrário, conferir-lhe a necessária autonomia na criação e na interpretação do sistema jurídico. Como faz ver Pietro Piovani, apoiado numa lição de Capograssi, a doutrina completa a lei, mostrando o que o dispositivo legal não mostra, a partir de uma visão integrativa do universo jurídico: "Come è stato scritto, con esemplare penetrazione in una fondamentale opera italiana dedicata al problema filosofico della ‘scienza del diritto’ (‘Il problema della scienza del diritto’ del Capograssi), ‘appunto perchè le norme formano tra di loro una totalità coerente, appunto per questo la norma nasce con l’esigenza di essere riportata alla totalità delle norme. Tutto il lavoro dell’interpretazione è questa affermazione di unità. Nell’interpretazione giuridica vi è non tanto e non solo mostrare quello che c’è nella norma interpretata, ma un mostrare che nella norma interpretata c’è di piú di quello che appare’ "(3).

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Dentre as alterações da Parte Geral do Código Civil contidas no Projeto originário, e aprovadas pela Câmara dos Deputados, merecem destaque: (a) – Inclusão de um capítulo dedicado aos Direitos da Personalidade; (b) – Disciplina da ausência incluindo seus efeitos na sucessão provisória e definitiva; (c) – Delineamento da diferença entre associações e sociedades, estas últimas de natureza civil ou empresarial; (d) – Adoção da categoria dos negócios jurídicos, com sua disciplina própria; (e) – Reconhecimento e disciplina da lesão enorme incluída no elenco dos defeitos dos negócios jurídicos.

No que tange à distinção entre sociedades e associações, uma das inovações mais importantes da nova parte geral, registrou com bastante propriedade o ilustre Desembargador José Antônio Macedo Malta, do Tribunal de Justiça de Pernambuco, na audiência pública promovida por esta Comissão Especial, em 22 de Novembro de 1999: "O código assim merece encômios e elogios maiores quando distingue de forma definitiva as sociedades das associações, reservando às sociedades o termo daquelas restritas exclusivamente à natureza empresarial, comercial e industrial. No campo das meras associações, estão aquelas empresas de natureza civil, piedosas, cientïfica, cultural e esportiva. Não se trata de uma quastão meramente de denominação; não é nenhuma rotulação ou qualquer coisa dessa ordem. É um juris, com todos os seus conceitos e definições, e com embasamento em vocação doutrinária para distinguir as sociedades das associações. "

Na disciplina dos bens, praticamente nada foi alterado. Permanecem os conceitos anteriores, inclusive no tocante aos bens públicos (de uso comum do povo, de uso especial e dominiais). Nesse particular é oportuno ressaltar que os bens de uso comum do povo, expressão empregada inclusive na Constituição Federal – art. 225, são aqueles que, apesar de públicos, não são do domínio do Estado. Diz Antônio José de Souza Levenhagen que os bens públicos de uso comum pertencem a todos e podem por todos ser utilizados’ (CC Comentado, parte geral, I/99) .Clóvis Beviláqua, citado por Washington de Barros Monteiro, chega mesmo a afirmar que o proprietário desses bens é a coletividade , ou seja, pertencem a todos e podem ser utilizados por qualquer pessoa. J. Cretella Júnior leciona que: ‘Bem de uso comum é todo bem imóvel ou móvel sobre o qual o povo, o público, anonimamente, coletivamente, exerce direitos de uso e gozo, como, por exemplo, o exercício sobre as estradas, os rios, as costas do mar. Exemplo de bem público de uso comum é a rua’ . Os bens pertencentes às associações abertas, grêmios recreativos , igrejas e templos, conquanto, na maioria das vezes, abertos ao uso do povo, não podem ser considerados "bens de uso comum do povo". São pens particulares e , como tal, podem ser livremente alienados e terem a destinação e o uso que seus proprietários lhes queiram dar, desde que não vedados pelo ordenamento jurídico.

Inspirado no mesmo propósito de atualização e sistematização do Projeto de Código Civil, o Senado Federal trouxe inestimável contribuição, mediante emendas e subemendas que foram criteriosamente analisadas no Relatório Parcial do Deputado Bonifácio Andrada, que constitui um parecer de incontestável valor técnico-científico, sem prejuízo das avaliações de mérito quanto às alternativas entre o texto original e o texto emendado.


NOTAS

1 "O Projeto do Código Civil – Situação Atual e seus Problemas Fundamentais" – Ed. Saraiva, S. Paulo, 1986, pg. 87.

2. "Belleza y Estilo en el Derecho" (trad.) – Ed. Bosch, Barcelona, 1953, pgs. 78 e 79.

3. "Linee di una Filosofia del Diritto" – 3ª ed., Cedam Padova, 1968, pg. 154.

Sobre o autor
Ricardo Fiúza

advogado, professor de Direito Comercial, deputado federal, relator do Novo Código Civil Brasileiro <I>(in memoriam)</i>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FIÚZA, Ricardo. Novo Código Civil:: principais alterações na Parte Geral. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 47, 1 nov. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/512. Acesso em: 23 dez. 2024.

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