“AS DOAÇÕES FORAM LEGAIS E DECLARADAS À JUSTIÇA ELEITORAL”
O maior escândalo “de todos os tempos da última semana” é o denominado Petrolão[1]. Pelo que é noticiado, quase todas as siglas partidárias se beneficiaram, direta ou indiretamente, do esquema de corrupção que vem sendo desbaratado pelo Ministério Público e pela Polícia Federal.
Tem chamado à atenção, e gerado certa revolta naqueles que acompanham o folhetim, a justificativa que sistematicamente vem sendo adotada por todos os que foram enredados pela Operação Lava-Jato: “As doações foram legais e declaradas à Justiça Eleitoral". Essa frase, pesquisada entre aspas no Google devolve 4.980 (quatro mil novecentos e oitenta) resultados[2]. Percebam que existe uma enorme variedade dessa expressão, igualmente populares.
A revolta consiste na ideia de que a Justiça Eleitoral tem servido de “lavanderia” para legalizar verbas advindas de corrupção. Isso se deve ao fato de que a Justiça Eleitoral aprovou (com ou sem ressalvas) boa parte das prestações de contas que, por meio das evidências trazidas pela investigação da Lava-Jato, mostraram-se ter sido destinatárias de recursos derivados de atos de corrupção.
Entretanto, as críticas partem de um evidente desconhecimento do papel exercido pela Justiça Eleitoral.
Inicialmente, é seguro afirmar que o real significado da expressão “As contas foram aprovadas pela Justiça Eleitoral” é bastante limitado, ao contrário do que querem fazer crer os investigados. As contas terem sido aprovadas, com ou sem ressalvas, significa, apenas, que não foram encontradas irregularidades contábeis de grande monta[3]. Não significa, em virtude dos parâmetros estabelecidos pela legislação eleitoral, que todas as verbas que adentraram a campanha são peremptoriamente lícitas.
No Julgamento da PC 976-13, Rel. Min. Gilmar Mendes, ficou consignado, no acórdão que aprovou com ressalvas a prestação de contas da campanha presidencial de Dilma Vana Rousseff e Michel Temer, que: “essa conclusão não confere chancela a possíveis ilícitos antecedentes e/ou vinculados às doações e às despesas eleitorais, tampouco a eventuais ilícitos verificados pelos órgãos fiscalizadores no curso de investigações em andamento ou futuras”.
Isso porque o sistema de fiscalização de contas em vigor, e constantemente aperfeiçoado pela Justiça Eleitoral, foi montado a partir das balizas dadas pelo legislador. Todos os parâmetros a serem observados por essa Justiça especializada foram detalhadamente descritos. Aspectos como o período em que haverá a fiscalização, as fontes a serem fiscalizadas e até mesmo os desdobramentos jurídicos dessa fiscalização foram regulamentados.
Todavia, entre esses parâmetros, não há autorização para se aprofundar, em sede de processo de prestação de contas, na investigação subjetiva dos motivos que levaram à doação ou, ainda, na forma pelo qual o doador obteve disponibilidade financeira para efetuá-la, exceto nos casos de fontes vedadas[4], em virtude de determinação legal. Em outras palavras, o legislador não concedeu à Justiça Eleitoral, repita-se, no âmbito da análise das prestações de contas, a competência de questionar a fundo o motivo pelo qual determinado cidadão/empresa[5] optou por doar para certo candidato ou partido político.
Contentou-se a designar que cabe à Justiça Eleitoral apenas fiscalizar a contabilidade das campanhas de forma minudente. Todo o dinheiro, ou qualquer bem de valor que seja destinado a uma campanha, deve ser identificado e rastreado.
Assim, desenvolveram-se avançados sistemas de controle das contas eleitorais. Sob o signo do famoso bordão americano, “Follow the Money”[6], o sistema de fiscalização de contas eleitorais é capaz de, quase instantaneamente, informar todos os aspectos contábeis da arrecadação financeira de uma campanha[7]. Ademais, é possível precisar a forma como esse dinheiro é usado, isto é, gastos eleitorais de toda ordem somente são considerados lícitos se obedecerem ao regramento legal.
E por mais contraditório que possa parecer, andou bem o legislador quando idealizou as balizas da fiscalização a ser procedida pela Justiça Eleitoral, pois, se coubesse a essa Justiça proceder a uma análise ainda mais abrangente que a existente, o processo eleitoral se estenderia indefinidamente e os eleitos jamais tomariam posse. Teríamos, assim, um processo eleitoral eterno e mandatários provisórios.
O exíguo período eleitoral exige, então, que a Justiça Eleitoral julgue, em pouco mais de um mês, todas as contas dos candidatos eleitos em primeiro turno e, em menos de um mês, as contas dos eleitos em segundo turno[8], já que o julgamento das contas é pré-requisito para a diplomação[9].
Dessa forma, dada à natureza limitada da análise empreendida no âmbito das prestações de contas, seria lícita a crítica recorrente de que a Justiça Eleitoral vem servindo de mera lavanderia para dinheiro de origem ilícita? É procedente a afirmação de que, uma vez que fecha os olhos para um dos mais importantes aspectos do financiamento de campanhas, o motivo das doações eleitorais, a Justiça Eleitoral presta um desserviço para a apuração dos mais graves ilícitos praticados contra a Administração Pública?
A resposta é “desenganadamente negativa”, porquanto existem inúmeros desdobramentos eleitorais[10] e não-eleitorais derivados da análise das prestações de contas.
No tocante a esses últimos, foco do presente texto, o trabalho realizado pela Justiça Eleitoral não é só relevante, mas essencial para apuração dos graves atos de corrupção investigados no país, especialmente aqueles no âmbito da Operação Lava-Jato.
Isso porque, a partir da análise das prestações de contas realizadas a cada pleito, toda a sociedade, inclusive os demais órgãos de controle como Polícia Federal e Ministério Público, passam a ficar cientes de fatos insofismáveis, entre os quais: quem doou para determinado partido ou coligação; quais os valores doados; qual o percentual que aquela doação representa no patrimônio do doador; como o beneficiário da doação, candidato ou partido político geriu o valor doado; quais os gastos foram realizados; se houve sobra ou falta de recursos; etc.
O apressado, que já se convenceu de que a Justiça Eleitoral é apenas uma lavanderia, dirá que a análise é falha. Apontará que vem sendo provado que é muito comum que acerto de propina esteja transfigurado em doação oficial. Assim, a análise realizada no âmbito eleitoral não teria serventia alguma.
Em verdade, justiça seja feita, alguns políticos pensam da mesma forma. Pelos fatos que atualmente são de domínio público, alguns candidatos realmente pediram que acertos de dinheiro de corrupção fossem dados por meio de doações oficiais.
No entanto, escapa aos críticos da JE, bem como aos políticos que fizeram uso dessa rotina, o caminho sem volta que foi tomado ao se adotar esse expediente.
Em primeiro lugar, as informações contábeis prestadas constituem uma versão quase definitiva a respeito da arrecadação e do uso dos recursos em campanha. É dizer, delas não mais poderão se afastar os candidatos, os partidos políticos e os doadores.
Dentre os efeitos, o mais importante e óbvio é que não será lícito dizer que não havia relações entre as partes. Mais: não poderão dizer que a simpatia mútua existente entre eles não desaguou em contribuições oficiais. Pior: toda e qualquer verba ou bem que não for declarada estará, irreversivelmente, maculado.
Desta maneira, as instituições de fiscalização e controle, a partir do julgamento das contas de campanha, terão farto material para, no âmbito de suas competências, iniciar a apuração de eventuais ilícitos. Isso porque, de saída, essas instituições já terão informações cruciais para o início do que pode vir a ser uma profícua investigação, uma vez que terão: a indicação dos tipos de irregularidades contábeis que foram cometidas no decorrer de determinada campanha; a parte significativa dos autores do provável ilícito; o modus operandi; a motivação, etc.
É dizer, tudo que for declarado à JE, bem como o que foi omitido, passam a estar impregnados com forte flagrância de ilegalidade. Não existe “pista” melhor do que essa para se começar uma investigação[11].
No ponto, é de se destacar que caberá aos legitimados para atuar no processo eleitoral (partidos políticos, coligações, candidatos e Ministério Público Eleitoral) a salutar tarefa de, a partir dos dados apresentados à Justiça Eleitoral, propor as devidas representações para apurar a fundo as irregularidades. Aos tribunais eleitorais, observados os princípios do contraditório e da ampla defesa, caberá resolver a controvérsia e punir eventuais culpados.
No ponto, é de se destacar a similaridade da atuação da Justiça Eleitoral com a Receita Federal. As informações, prestadas e omitidas, quase sempre, montam um quadro que fala por si. Basta que haja alguém ouvindo para que os resultados apareçam.
Destaque-se, por oportuno, que ao contrário das informações em poder do Fisco, as informações da JE são eminentemente públicas. Em regra, não há nem sequer a necessidade de autorização judicial para seu conhecimento e compartilhamento. Está tudo disponível no sítio da Justiça Eleitoral e pode ser acessado por todos os brasileiros.
Assim, a prestação de contas à Justiça Eleitoral é a declaração, sem a qual, tudo seria permitido. Se não houvesse estrita fiscalização de arrecadação e gastos de campanha, o dinheiro sujo seria arrecadado e gasto de maneira indetectável e não haveria tantos processos de combate à corrupção, apenas “mandatos legitimamente conquistados por meio do voto popular”. Daí a importância do constante aprimoramento do sistema de acompanhamento de contas por essa Justiça especializada.
Nesse diapasão, é inegável que o Tribunal Superior Eleitoral, órgão central do sistema, vem dia-a-dia ampliando seus esforços para tornar cada vez mais exatas as informações extraídas das campanhas eleitorais. Recentemente, o TSE, sob a Presidência do Ministro Gilmar Mendes, criou um conselho de inteligência no âmbito da Justiça Eleitoral, composto por pessoas do COAF [Conselho de Controle de Atividades Financeiras], do Banco Central, da Receita Federal e do Tribunal de Contas da União[12].
A visão de que haveria complacência com a fiscalização das contas eleitorais nunca esteve tão distante da realidade. Tanto é assim que já existem movimentos, inclusive legislativos, contrários à transparência que vem sendo buscada incessantemente pelo Tribunal Superior Eleitoral. Vide, por exemplo, a redação de constitucionalidade duvidosa do recém-criado § 12[13], acrescido ao art. 28 da Lei n° 9.504/97, pela última reforma eleitoral (Lei n° 13.165/2015):
“§ 12. Os valores transferidos pelos partidos políticos oriundos de doações serão registrados na prestação de contas dos candidatos como transferência dos partidos e, na prestação de contas dos partidos, como transferência aos candidatos, sem individualização dos doadores”.
Esse dispositivo, aparentemente, foi a resposta do legislativo à Resolução TSE n° 23.406/2014, que regeu o sistema de prestações de contas para o pleito de 2014. Isso porque, na última eleição presidencial, o TSE passou a exigir que as doações recebidas pelo partido e repassadas à determinada campanha, fossem identificadas, não como doação do partido ao candidato, mas como doação do doador originário ao candidato. A redação da resolução eleitoral, que teria dado azo a alteração legislativa, era a seguinte:
Art. 26. As doações entre partidos políticos, comitês financeiros e candidatos deverão ser realizadas mediante recibo eleitoral e não estarão sujeitas aos limites impostos nos incisos I e II do art. 25.
(...)
§ 3º As doações referidas no caput devem identificar o CPF ou CNPJ do doador originário, devendo ser emitido o respectivo recibo eleitoral para cada doação.
É de se destacar que a exigência da identificação do doador originário foi mantida pela Justiça Eleitoral e consta da Resolução TSE n° 23.463, que regulará a prestação de contas para as Eleições de 2016, em virtude da liminar proferida na referenciada ADI n° 5394.
Retrocessos e avanços são comuns na implementação de qualquer sistema efetivo de fiscalização, mas revelam certo anacronismo tentativas deliberadas de obstar o avanço da transparência nas verbas destinadas às campanhas eleitorais, mormente, no tocante à arrecadação de recursos.
Por todas essas razões, impende concluir que as reiteradas críticas ao controle das contas empreendido pela Justiça Eleitoral derivam menos da qualidade do controle exercido e mais da má-fama gerada pela incompreensão da expressão: “As doações foram legais e declaradas à Justiça Eleitoral".
[1] Termo cunhado pela imprensa, é popularmente usado para se referir a um vasto esquema de desvios de verbas públicas em contratos assinados pela Petrobrás e as principais empreiteiras do país. Dentre inúmeras finalidades, os órgãos de persecução criminal apontam que o dinheiro desviado também serviu para o financiamento de partidos e candidatos em campanhas eleitorais.
[2] Pesquisa realizada em 1°/8/2016.
[3] (v.g) ausência de abertura de conta específica de campanha; irregularidade na tramitação dos recursos pelas contas de campanha; não emissão de recibos eleitorais aos prestadores de serviços, etc. Para maior detalhamento vide arts. 28 a 32 da Lei nº 9.504/97 e Res.-TSE nº 23.463/2015.
[4] Art. 24. É vedado, a partido e candidato, receber direta ou indiretamente doação em dinheiro ou estimável em dinheiro, inclusive por meio de publicidade de qualquer espécie, procedente de:
I - entidade ou governo estrangeiro;
II - órgão da administração pública direta e indireta ou fundação mantida com recursos provenientes do Poder Público;
III - concessionário ou permissionário de serviço público;
IV - entidade de direito privado que receba, na condição de beneficiária, contribuição compulsória em virtude de disposição legal;
V - entidade de utilidade pública;
VI - entidade de classe ou sindical;
VII - pessoa jurídica sem fins lucrativos que receba recursos do exterior.
VIII - entidades beneficentes e religiosas;
IX - entidades esportivas;
X - organizações não-governamentais que recebam recursos públicos;
XI - organizações da sociedade civil de interesse público.
[5] Antes do julgamento da ADI n° 4650, Rel. Min. Luiz Fux, existia no ordenamento jurídico eleitoral a possibilidade de doações de pessoas jurídicas diretamente aos partidos políticos e aos candidatos.
[6] “Siga o dinheiro”.
[7] Para as eleições de 2016, os candidatos, os partidos políticos e as coligações deverão fornecer à Justiça Eleitoral, a cada 72h os relatórios financeiros sobre recebimentos e gastos de recursos nas campanhas, nos termos do art. 43, § 2º, da Res.-TSE nº 23.463/2015.
[8] Art. 29, III e IV, e art. 30, § 1º, da Lei nº 9.504/97.
[9] Inteligência do arts. 71 e 75 da Res.-TSE nº 23.463/2015.
[10] Ação de investigação judicial eleitoral por abuso do poder econômico, representação por arrecadação ilícita de recursos, perdimento dos valores recebidos, entre outros. No tocante aos partidos políticos, a abertura de processos que podem levar à suspensão das quotas do fundo partidário e até mesmo o encerramento de suas atividades.
[11] Também na PC n° 976-13, o Min. Gilmar Mendes (Relator) encaminhou diversos ofícios a Procuradoria-Geral Eleitoral, mesmo após aprovação com ressalvas, recomendando a análise acurada de parte das irregularidades encontradas nas contas da campanha. Isso porque, havia indícios de crimes da mais variada ordem. Anote-se, por relevante, que o Ministério Público pode e deve atuar de ofício em hipóteses como essas. Não só o Parquet, mas os demais atores do processo eleitoral (candidatos, partidos políticos e coligações) devem ficar atentos e, quando identificarem irregularidades relevantes, propor as devidas representações. Aos tribunais eleitorais caberá, com imparcialidade e observância aos princípios do contraditório e ampla defesa, julgar essas representações e punir eventuais culpados.
[12] http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2016/Julho/em-coletiva-presidente-do-tse-aborda-financiamento-eleitoral-tempo-de-propaganda-e-lei-de-abuso-de-autoridade
[13] O dispositivo foi suspenso pela ADI n° 5394, Rel. Min. Teori Zavascki.