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Contribuição à delimitação da competência para apuração dos crimes da nova Lei de Armas

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Agenda 26/04/2004 às 00:00

A Lei 10.826/2003, publicada no Diário Oficial do dia 22 de dezembro de 2003 veio a trazer um novo paradigma quanto ao trato do assunto "armas" e "desarmamento", assunto palpitante que suscita acirrada polêmica em diversos segmentos da sociedade, por sua importância e pelas mais diversas opiniões que suscita, que vão de extremos opostos a posições ecléticas e conciliadoras.

Como princípio, ou melhor, diretriz originária do projeto devemos nos reportar às palavras do próprio Presidente da República: "A paz é o ponto de partida e de chegada. É a linha demarcatória de qualquer sociedade", afirmou. E acrescentou: "É preciso dar à paz o seu verdadeiro nome: justiça social". Segundo Lula, reafirmar a paz como prerrogativa social é o sentido profundo do Estatuto do Desarmamento (O POVO, de 23 de dezembro de 2003) [1].

A Lei 7.492/97 (anterior Estatuto das Armas), já havia trazido ao mundo jurídico, e, mais além, ao noticiário e ao ideário da população brasileira, a discussão da questão das armas, e, mais amplamente, a questão da violência.

Já sob a égide da anterior Lei 7.492/97, o ilustre Luiz Flávio Gomes apontou os elementos que davam àquela lei o caráter progressista, muito embora não tenha poupado críticas à má redação daquele diploma legislativo:

"A Lei 9.437/97, que entrou em vigor na mesma ocasião, constitui, sem sombra de dúvida, uma real tentativa de controle das armas de fogo no âmbito nacional: criou o cadastro nacional, o SINARM, disciplinou o registro, o porte, ... De qualquer modo, não estamos convencidos do acerto do legislador quanto a vários pontos da lei. As sanções penais previstas para o porte ilegal, por exemplo, são discutíveis" (Gomes, Luiz Flávio e Terra de Oliveira, William - Lei das Armas de Fogo, RT, 2002, p. 41)

Em todo caso, vislumbra-se uma linha de evolução legislativa (e, na sua esteira, uma linha evolutiva doutrinária, muito embora não inteiramente concordes em suas conclusões) que aponta para a crescente adoção dos postulados do movimento da "lei e da ordem" [2]; aumento das penas, supressão de determinados benefícios concedidos pelas leis anteriores, aumento do número das condutas tidas como criminosas, transformação das antigas Contravenções Penais de porte de arma e disparo de arma de fogo em crimes, com conseqüente aumento das penas, dentre outras iniciativas. Basta fazer a singela comparação da pena cominada ao crime de porte ilegal de arma de fogo na Lei de Contravenções Penais, no seu artigo 19 (prisão simples, de 15 (quinze) dias a 6 (seis) meses, ou multa, ou ambas cumulativamente), e, logo após, no artigo 10 da Lei 9.437/97 (Pena - detenção de um a dois anos e multa), e - por fim - no artigo 14 da Lei 10.823/2003 (pena de reclusão de dois a quatro anos, e multa).

A nova Lei 10.862/2003, de 22 de dezembro de 2003 vem, exatamente nesta picada, corroborar o pensamento exposto neste artigo, e já percebido por diversos doutrinadores.

Devemos, no entanto, antes de nos aprofundarmos no tema aqui proposto, dar uma rápida pincelada nos conceitos fundamentais;

A competência está compreendida no conceito maior da JURISDIÇÃO. Eduardo Espíndola Filho nos relembra o conceito exposto por Altavilla (Manuale di procedura penale, 1935, p. 87), que, utilizando-se da fórmula de Ranelleti, configura a jurisdição penal como "o direito-dever, atribuído ao juiz, de decidir, na conformidade com o objetivo, a respeito do conflito surgido entre o Estado e o indivíduo, pela execução de um crime ou pela execução de uma conduta criminalmente perigosa" (Código de Processo Penal Anotado, Vol II, p. 81, Bookseller).

Jurisdição penal aqui é compreendida como parcela da competência constitucionalmente atribuída a determinados órgãos judiciários [3]. Esta Jurisdição, como medida de competência do Juiz, se estende, por via reflexa, aos órgãos policiais, uma vez que a competência (circunscrição, mais tecnicamente) para apuração dos crimes é aproximadamente correspondente à competência para julgar, em cada esfera de governo [4].

O próprio Espíndola (CPP Anotado, Vol II, p. 82) nos revela que "Mas, para poder, legitimamente, exercer a jurisdição, o órgão precisa ser competente; o juiz somente tem jurisdição legal nos limites da competência, que lhe reconhece a lei de organização judiciária, e somente nesses limites pode decidir as espécies de fato, apresentadas como precisando submeter-se à norma objetiva, que as disciplina".

Pimenta Bueno, por outro lado, em lição clássica, nos expõe que: "a competência não só pressupõe a jurisdição, mas, além disso, exige-a positivamente autorizada para a hipótese de que trata, e não para outras diversas." (in CPP Anotado, de Espíndola, vol. II, p. 83).

A regra constitucional, estampada nos artigos 109 a 125 da Carta Magna, que dá a medida da competência, com base na matéria, não pode ser derrogada ou de qualquer forma menosprezada pela legislação infraconstitucional. Serve de baliza para esta. O próprio CPP não cuida de firmar a competência com base na matéria, que é, como vimos, de sede constitucional [5]: "para firmar a competência, tem-se que reconhecer não menos de três condições, cada uma das quais pode determinar a incompetência: 1º o assunto ou matéria, de que se trata, é da natureza ou número daqueles cujo conhecimento a lei atribui ao julgador ou não? Se não é desse número, segue-se que ele é incompetente ratione materiae. 2º) ainda em caso afirmativo, cumpre demais examinar se a pessoa do réu tem ou não algum foro especial em razão de algum cargo seu, como o de membro de relação, tribunal supremo ou do senado, pois que, a ter, dá-se a incompetência ratione personae. 3º) ainda quando a pessoa não tenha foro privilegiado, cumpre reconhecer se, no caso dado, prevalece a competência ratione loci, isto é, o foro do domicilio do réu, ou do lugar do delito, ou, enfim, do lugar em que ele foi preso ou encontrado, caso a lei admita também este... (Pimenta Bueno, "Apontamentos sobre o processo criminal brasileiro", 2ª ed., 1857, p. 61, in CPP Anotado, Espíndola, Vol II, p. 98) .

O ilustre Juiz Federal Vladimir Souza Carvalho, em sua obra "Competência da Justiça Federal", 4ª Ed., Juruá, 2000, p. 17, explica que "Em tema de competência, que é de direito estrito, não pode o legislador ordinário estender as hipóteses de incidência além daqueles limites expressamente previstos no texto constitucional..."

Neste artigo analisaremos as várias facetas que envolvem o tema competência, como a influência do novo movimento da "Lei e da Ordem", do monopólio da administração do SINARM e da concessão de registro e porte de arma de fogo com exclusividade pela Polícia Federal pela nova Lei 10.862/2003 e a criação de alguns novos tipos entre os artigos 12 a 18 da referida lei.

A competência da Justiça Federal, tanto em matéria cível como em matéria criminal é precisamente delimitada pela própria Constituição. A Justiça Federal nasceu com a Constituição de 1891, porém alguns autores, de forma bastante perspicaz, identificam sua certidão de nascimento no Decreto 510/90, anterior, portanto, à primeira constituição republicana [6]. A competência da Justiça Federal para as causas que constitucionalmente lhe são afetas, é absoluta, tanto para conhecê-las, como para julgá-las. Não comporta prorrogação e pode ser argüida em qualquer momento ou grau de jurisdição.

Quando o juiz estadual verificar que há interesse da União Federal na lide, pode e deve remeter os autos à Justiça Federal, pois "compete à Justiça Federal decidir sobre a existência de interesse jurídico que justifique a presença, no processo, da União, suas autarquias ou empresas públicas" (João Carlos Souto – "A União Federal em Juízo", Saraiva, 2000, p. 222)

Pois bem. Diante das rápidas pinceladas no instituto da jurisdição e da competência, devemos nos aprofundar no tema proposto neste artigo: De quem é a competência para apuração dos novos crimes elencados nos artigos 12 a 18 da nova Lei 10.826/2003? Existe algum motivo para que se deva interpretar a competência diferentemente do que já sedimentado ao longo da vigência da Lei 9.743/97?

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Para responder a esta questão, parte-se necessariamente de um ponto fundamental: Qual ou quais são os bens jurídicos ofendidos pelos novos tipos penais? E, afinal, são realmente novos tipos penais, ou são os mesmo da lei anterior, apenas com roupagem nova?

"O legislador escolhe, entre os diversos bens que são caros à sociedade, aqueles que merecem, por sua relevância, serem protegidos pela norma penal, isto é, aqueles para cuja transgressão o transgressor mereça ser punido com uma pena [7]. O bem jurídico é um valor vital para a comunidade, e serve para a auto-realização do indivíduo [8]. Impõe-se ao legislador selecionar na realidade, somente aqueles comportamentos freqüentes e intoleráveis, que causam intensa ameaça a um determinado valor essencial (princípio da intervenção mínima). No processo de Criminalização, logo de início cumpre identificar a ocorrência da ação humana – material, física e externa – que repugna ao mínimo ético social e atinja ou ameace o direito de outras pessoas (princípio da lesividade)... Em conseqüência, mais uma vez, no juízo da tipicidade, faz-se primordial realizar a harmonização axiológica entre o bem, preservado pelo tipo legal de crime, e o valor constitucional" [9].

Bastante esclarecedora e moderna é a posição de Luiz Flávio Gomes e William Terra de Oliveira no que tange à escolha do bem jurídico pela norma da Lei 9.437/97 (Lei das Armas de Fogo, RT, 2002, p. 47 e segs.): "A Lei 9.437/97 está direcionada à proteção de um bem jurídico especial: a segurança coletiva." E ainda ... "Para tanto, a lei nova elevou à categoria de bem jurídico a própria segurança de outros bens. Antecipou-se a barreira protetora da norma, mas isso não significa perigo abstrato. Adotando os crimes de lesão, o legislador substituiu os bens primários (vida, patrimônio, etc.) por um bem referencial e adjetivo: sua "segurança" [10]

Analisando os tipos penais da nova Lei 10.826/2003 (artigos 12 a 18) verifica-se inicialmente a óbvia mudança da técnica legislativa. Luiz Flávio Gomes (ob. cit. p. 58) dá sua posição sobre o art. 10 da Lei 9.437/97: "Temos no art. 10 o que poderíamos chamar de "artigo-capítulo"" ... "Numa visão panorâmica da lei, notamos que o capítulo IV trata dos "crimes e das penas", mas é constituído por apenas um artigo, o art. 10, representando um bloco de incriminações que não parece bastante claro."

Muitas das "qualificadoras" e das "causas de aumento de pena" que se localizavam no seio do confuso art. 10 passaram a constituir crimes autônomos, nos novos artigos 12 a 18 da nova lei. Foi, enfim, atendido o apelo da grande maioria da doutrina, que criticava o extenso e confuso art. 10 da lei 9.437/97.

Mas, com esta alteração da técnica legislativa, ocorreu também a modificação da competência para apuração dos crimes elencados na nova lei? Ou, antes disso, são os mesmos os bens jurídicos tutelados pela nova Lei 10.826/2003? Cremos que, na maioria dos artigos, sim - pois como expusemos anteriormente - o art. 10 está representado, em quase todas as condutas elencadas pelos artigos 12 a 17 da nova lei. Excepciona-se o novo artigo 18, que se dedica exclusivamente ao tráfico internacional de armas [11]. É interessante lembrar que passa a ser equiparado, a partir de agora, o porte ilegal de acessório ou munição ao porte ilegal de arma de fogo [12].

Do ponto de vista da competência, qual foi a alteração significante? Em primeiro lugar, a própria criação do art. 18, que tipifica o tráfico internacional de armas de fogo. Para se fazer o tráfico internacional, é necessário importar armas. O ingresso no território nacional de armas é controlado pelo Ministério do Exército (assim determinado pelo Regulamento 105 - em grande parte ratificado pelo Decreto 6.665, de 20 de novembro de 2000- e que deverá ser revogado pelo novo regulamento da Lei 10.826/2003). Importar uma arma de fogo atualmente é tarefa complicadíssima, e se limita às armas de calibre permitido. Fora disso é contrabando (art. 334 do CPB). A própria palavra "tráfico" já carrega em seu ventre toda esta carga de ilegalidade. Aí a competência é, sem dúvida, da Justiça Federal, para julgamento e da Polícia Federal, para apuração. Mas o mesmo artigo fala de "...entrada ou saída..." . Como fica a competência no tráfico de exportação de armas de fogo, munições ou acessórios?

Lembremo-nos que a própria lei batizou este tipo de "tráfico internacional de armas". Se fosse tráfico internacional (exportação) de drogas, estaria constitucionalmente firmada a competência federal para apurar e julgar [13]. Mas a Constituição não se refere ao tráfico de armas. Em princípio, pois, não seria competência federal. As armas, do ponto de vista da competência constitucional para apuração de crimes, equiparam-se a qualquer outro bem. A sua lesividade é formatada infraconstitucionalmente. No entanto é tecnicamente improvável que o tráfico de armas, na modalidade exportação, seja feito através de uma estrutura criminosa simples. Para que se possa realizar tal crime é necessária uma bem montada rede de informação, de logística, transporte, pagamento, corrupção, lavagem e ocultação. Existem diversos tratados internacionais de cooperação no combate ao tráfico internacional de armas [14], e a lavagem de ativos provenientes do tráfico de armas é particularmente perseguida pelas polícias e judiciário de vários países [15]. Aí estará montada uma rede internacional, muito provavelmente para o terrorismo internacional (para quem mais o Brasil exportaria armas ilegalmente?) Na prática, pois, a competência passa a ser federal, pois, sendo a matéria aventada em tratados, firmar-se-á a competência da Justiça Federal (art. 109, incisos III e V).

Nunca é despiciendo relembrar que, em caso de conexão de crimes de competência da Justiça Federal e da Justiça Estadual, deixa de ser aplicada a regra da especialidade, do art. 78, II, letra "a", do CPP por fundamento na Súmula 122 do STJ [16] .

Como vimos, com Luiz Flávio Gomes e William Terra de Oliveira, que o bem jurídico segurança coletiva estava subjacente às figuras penais criadas pela Lei 9.437/97. Cremos que, pela análise dos novos tipos, não existem elementos para uma interpretação diferente. Abstraindo a questão da mudança da técnica legislativa (que resultou no desdobramento do antigo super-artigo 10, da Lei 7.437/97, nos artigos 12 a 18 da Lei 10.826/2003) apenas a criação de alguns tipos específicos novos nos obriga a analisar qual o bem jurídico protegido pela norma, e, assim, podermos traçar nossos comentários quanto à competência para apuração e julgamento.

Veja-se, de início o art. 18: "Importar, exportar, favorecer a entrada ou saída do território nacional, a qualquer título, de arma de fogo, acessório ou munição, sem autorização da autoridade competente". O núcleo do tipo, representado pelos verbos importar, exportar, favorecer a entrada ou a saída, conforme já comentamos acima, somente pode ser realizado em um esquema criminoso muito bem estruturado, com ramificações internacionais, o que, por si só já atrai a competência da Justiça Federal, pela necessária conexão com o crime de contrabando (art. 334 do CPB) e pela existência de tratados internacionais de tráfico de armas [17]. O bem jurídico protegido pelo tipo seria, pela evidente similitude com o crime de contrabando ou descaminho, a "Administração Pública, especialmente o controle de entrada e saída de mercadorias do país e o interesse da Fazenda Nacional" (Delmanto - "Código Penal Comentado" - RENOVAR, 2002, pág. 674). Nada impede que determinado tipo infrinja mais de um bem jurídico - o que parece ser o caso, pois que também o art. 18 visa a proteger a segurança coletiva.

Existe, no entanto, um bem jurídico secundário, cuja proteção interessa à sociedade e ao Estado. A integridade e fidelidade dos registros de armas. [18] O SINARM, criado pela Lei 9.437/97, não chegou a ser inteiramente implantado, por diversos motivos;

Em primeiro lugar, as corporações policiais, que já vinham mantendo seus registros próprios de armas, relutaram em fornecer seus dados ao SINARM, administrado pela Polícia Federal [19]. As corporações militares (Exército, Marinha, e Aeronáutica) já mantinham um razoável controle sobre o registro de suas armas, e não foram obrigadas a fornecer os dados de suas armas ao SINARM, para registro [20]. Os registros das corporações policiais, no entanto, demonstraram, em sua maioria, serem caóticos, com dados errados, incompletos e mal redigidos. O sistema se mostrou vulnerável exatamente em seus pontos mais fortes – a sua integridade e a sua abrangência nacional.

Mesmo a anistia oferecida aos portadores de armas sem registro, pela Lei 9.437/97 (art. 5º - "O proprietário, possuidor ou detentor de arma de fogo tem o prazo de seis meses, prorrogável por igual período, a critério do Poder Executivo, a partir da data da promulgação desta Lei para promover o registro da arma ainda não registrada ou que teve a propriedade transferida, ficando dispensado de comprovar a sua origem, mediante requerimento, na conformidade do regulamento. Parágrafo único. Presume-se de boa fé a pessoa que promover o registro de arma de fogo que tenha em sua posse."), posteriormente prorrogada por mais seis meses, não surtiu o aguardado efeito de legalização de grande número de armas ilegais. De fato, os mais beneficiados foram policiais, que possuíam armas sem registro, e que, diante da norma penal mais grave, decidiram registrar as armas. O número de armas registradas, no entanto, não aumentou tanto quanto se desejava. Os motivos da baixa procura pelo registro de armas ilegais tem, certamente, um componente psicológico ao qual se deu pouca atenção: a arma ilegal tem geralmente uma origem ilegal, e o possuidor teme que seja de alguma forma conectado a esta origem, que ele quase sempre desconhece. Quem se arriscaria a entrar em uma delegacia para apresentar uma arma que pode ter sido utilizada para a realização de um crime? [21]

Na sistemática da nova Lei 10.826/2003 o cadastro do SINARM continua sob o controle da Polícia Federal, porém foram suprimidos o porte e o registro estadual de armas. Tudo agora corre perante a Polícia Federal. Muito embora não possam ser criados convênios com outros órgãos para o cadastramento de armas ("Art. 22. O Ministério da Justiça poderá celebrar convênios com os Estados e o Distrito Federal para o cumprimento do disposto nesta Lei"), por instrumentos a serem definidos pelo Decreto Regulamentador da lei, permanece a responsabilidade da Polícia Federal para o controle final dos registros e portes expedidos. Outros órgãos somente serão encarregados de atos materiais de execução. Não há delegação de poderes para a concessão de registro e portes, cuja decisão final sempre será da Polícia Federal.

A pergunta, cerne desta dissertação é: esta alteração da sistemática de registro, e a extinção do porte de arma estadual faz com que o interesse da União na manutenção da fidelidade – e do próprio crime de porte ilegal de arma – seja intensificado a ponto de deslocar a competência para apuração para a Polícia Federal e de julgamento para a Justiça Federal?

A jurisprudência pátria [22] tem delimitado a competência firmada pela Constituição Federal no art. 109, inciso IV às causas em que o interesse da União, suas autarquias ou Empresas Públicas seja direto [23].

Luiz Flávio Gomes e William Terra de Oliveira afirmam que nos crimes delimitados no artigo 10 da Lei 9.437/97 haviam duas ordens de sujeitos passivos [24] dos referidos crimes: "A sociedade; que se encontra exposta a perigo pela existência de armas clandestinas que podem saltar à luz, possibilitando situações lesivas aos bens jurídicos importantes e subjacentes, como a incolumidade física de cada um, a vida, o patrimônio, etc. e o Estado; dentro da antes mencionada "posição altamente formalista" o segundo sujeito passivo seria a administração pública, ou, mais concretamente, a fidelidade do cadastro do SINARM. ..."

A manutenção da fidelidade do cadastro do SINARM configura interesse direto da União? Cremos que não.

Um exemplo pode aclarar o nosso ponto de vista. Imagine-se um cidadão que falsifique o documento de porte de arma. Uma vez portando arma de fogo, esta conduta já tipificaria o art. 14 da nova lei. E a falsificação, seria absorvida, pelo princípio da consunção [25], por ser meio necessário para a prática do crime de porte ilegal de arma? Certamente que não, pois o crime de porte ilegal de arma ter-se-ia consumado independentemente da posse de documento falso de porte de arma. A falsificação será punida em concurso material. Porém, qual o bem jurídico, ou, melhor, quais os bens jurídicos atingidos por ambos os crimes? São duas objetividades jurídicas diferentes. O porte ilegal de arma ofende tanto a "segurança coletiva" e "a fidelidade do cadastro do SINARM", enquanto a falsificação ofende a "fé pública". A falsidade documental não atingiu o bem jurídico "fidelidade do cadastro do SINARM", pois o próprio porte já o fez, já que com o simples ato de portar a arma, seja com documento de porte falso ou não, estará configurado o crime de porte ilegal de arma.

O porte da arma ilegal ofendeu diretamente, isto é - em primeiro plano - o bem jurídico "segurança coletiva". Somente do ponto de vista formal, como bem salientaram os juristas Luiz Flávio Gomes e William Terra de Oliveira, o porte da arma ilegal poderia afetar a integridade do cadastro do SINARM. Mesmo que sua administração caiba exclusivamente – agora, pela nova lei – à Polícia Federal. A ofensa ao cadastro do SINARM é apenas o pano de fundo do crime cometido [26]. A evidência, a agressão direta é à segurança coletiva, que, inclusive, mereceu proteção de nível constitucional [27] .

Por outro lado, pode a ofensa à integridade do Banco de Dados do SINARM configurar interesse direto da União? Por todos os elementos já expostos, entendemos que não. A manutenção do Banco de Dados SINARM tem como objetivo possibilitar o conhecimento do universo de armas em poder da população. É sabido que a maioria das armas em poder da população não está registrada. Estas armas sem registro no SINARM são uma ameaça ao SINARM em si ou à população, que está diretamente exposta aos perigos das armas em mãos de bandidos, principalmente? Qual é aqui o bem jurídico mais afetado pela existência das armas ilegais, isto é, não registradas? Por outro lado, é razoável imaginar que, se a maioria das armas em poder da população (e dos profissionais das categorias elencadas no art. 6º da Lei 10.826/2003) estivesse registrada, haveria um controle mais efetivo sobre as mesmas, o que sem dúvida é de grande interesse da União. Porém, sendo efetivo o funcionamento do SINARM, é beneficiada antes de tudo a população, ou melhor, é elevado o "certo nível de segurança", bem jurídico maior defendido pelos tipos dos artigos 12 a 18 da Lei 10.826/2003.

É importante registrar que não há espaço neste singelo artigo para destrinchar todos os tipos penais da nova lei. Certamente há (como já expusemos sucintamente neste artigo) mais de um bem jurídico defendido pela norma, porém mantemos nossa posição quanto à delimitação da competência para apuração e julgamento.

Esperamos ter trazido alguns elementos úteis ao enriquecimento da discussão sobre o tema, o que, certamente, será bastante aprofundado quando da edição da Portaria Regulamentadora da Lei, fazendo com que diversas dúvidas surjam da aplicação plena [28], no dia-a-dia da lei.

Sobre o autor
Thomas Wlassak

analista judiciário da Justiça Federal no Ceará

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

WLASSAK, Thomas. Contribuição à delimitação da competência para apuração dos crimes da nova Lei de Armas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 293, 26 abr. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5129. Acesso em: 22 nov. 2024.

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