1. INTRODUÇÃO
Em fevereiro de 2016 o Supremo Tribunal Federal proferiu uma das decisões de maior impacto no direito processual penal nos autos do Habeas Corpus nº 126.292 (SP). Trata-se de decisão que reviu o posicionamento adotado pela Corte em face da interpretação do artigo 5º, LVII da Constituição Federal e da possibilidade de execução provisória da pena. A nova orientação adotada provocou reações diversas e reacendeu as discussões em torno do tema, levando à necessidade de análises acerca do teor da decisão e a real expressão do texto constitucional.
2. O PRINCÍPIO DO ESTADO DE INOCÊNCIA E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
O processo penal é o instrumento que permite a aplicação ordenada das penas, assegurando simultaneamente uma limitação ao poder de punir. Isso porque, ao estabelecer uma série de regras e procedimentos específicos, o processo penal garante uma prestação jurisdicional eficiente e segura. Ou, a contrario sensu, o processo penal nada mais é que uma maneira de possibilitar a fiscalização da atividade estatal e a efetivação das garantias individuais quando da aplicação de uma pena.
Nessa esteira, os princípios processuais, quer sejam explícitos ou implícitos, contribuem para estabelecer restrições na medida em fornecem preceitos fundamentais a serem observados, sobretudo após a Constituição Federal de 1988.
Instituída após um período de forte repressão política e de supressão dos direitos humanos, a “Constituição Cidadã”, como ficou conhecida, refletiu intensamente as preocupações em afirmar as garantias individuais e o Estado Democrático. Como consequência disso, foi consagrada uma série de princípios que vieram a remodelar a estrutura processual até então vigente.
Entre eles, aparece o princípio do estado de inocência, que na Carta atual aparece consubstanciado na seguinte redação[1]: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Cumpre esclarecer, em primeiro lugar, que diferentemente do que pode ocorrer em outros diplomas, o texto brasileiro utiliza a expressão “ninguém será considerado culpado...”, e não apenas “será considerado inocente...”. A diferença entre as duas expressões, embora possa parecer que digam a mesma coisa, é que a primeira parte da premissa de que o sujeito é inocente, na medida em que ele não será considerado culpado. Ao passo que, no segundo o caso, admite-se que ele poderá ser culpado, mas será considerado inocente.
Tampouco fala o texto constitucional em ser presumidamente inocente. Eis porque se trata de um verdadeiro estado de inocência, inerente a qualquer um.
Como observa PACELLI (2008)[2], a inocência é uma condição que acompanha os indivíduos desde o nascimento, e que só se alterada quando (e se) sobrevém o trânsito de sentença penal condenatória. Sem dúvida alguma, essa é a concepção mais adequada do texto disposto no art. 5º, LVII, sobretudo porque o abandono da ideia de “presunção” dificulta a relativização do princípio.
Além disso, no caso da nossa Constituição, a ideia de culpabilidade está indiscutivelmente vinculada a necessidade de um trânsito em julgado. Isso quer dizer que, sem a sua ocorrência, é impensável atribuir quaisquer efeitos condenatórios a pessoa ou o nome do acusado.
No que tange aos reflexos práticos do referido princípio, a doutrina costuma apresentar algumas implicações principais, entre elas:
a) A imposição de um dever de tratamento com relação à prova, que determina que todo o ônus da prova deverá ser atribuído à acusação, com exceção das situações que demonstrariam hipóteses de excludente de ilicitude ou culpabilidade (PACELLI, 2015)[3];
b) A imposição de uma regra com relação ao juízo do fato que a sentença penal faz (LOPES JR., 2016)[4]. Ou seja, quando da prolação a sentença o juiz deverá atentar-se de que, se a tese de acusação não está suficientemente provada, a opção é a absolvição; e
c) A excepcionalidade das prisões processuais (MOUGENOT, 2015)[5]. Isso porque, se se está diante de um sujeito inocente, a única coisa que justificaria a sua prisão é a necessidade extrema (ou imprescindibilidade) do ato para o devido prosseguimento do feito, sob pena de tornar impossível o processo penal (PACELLI, 2015)[6].
1. O PEDIDO DE HABEAS CORPUS Nº 126.292 (SP) E A DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
O caso que ensejou o pedido de habeas corpus nº 126.292, ao que se sabe[7], tem início no ano de 2010, quando Márcio Rodrigues Dantas (que viria a ser o paciente do referido HC) foi denunciado[8], junto a um comparsa, o Sr. Antônio Sérgio da Silva Lopes, pelo crime roubo majorado (art. 157, §2º, I e II).
Transcorridos cerca de dois anos da denúncia, foi prolatada a sentença condenando Marcos a 5 anos e 4 meses de pena privativa de liberdade, com regime inicial fechado, enquanto que ao seu corréu foi imposta pena de 6 anos e 8 meses de reclusão. Ao contrário do que ocorreu com Antônio, Márcio conquistou o direito de recorrer em liberdade.
Satisfeito com a condenação nestes termos, o Ministério Público não ofereceu recurso e a sentença transitou em julgado para a acusação.
Os réus, porém, apelaram da decisão. E no julgamento do recurso de Márcio, além de decidir pelo desprovimento, o relator determinou a expedição de mandado de prisão para o acusado, sem apresentar qualquer tipo de fundamentação.
Eis aqui os primeiros vícios, muito antes de a questão chegar ao STF.
A decisão pela expedição do mandado violou uma importante garantia constitucional, qual seja, a necessidade de motivação das decisões judiciais, consubstanciada no art. 93, IX da Constituição Federal[9], bem como o princípio da non reformatio in pejus[10].
Em Habeas Corpus atacando a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo perante o STJ, as advogadas impetrantes pediram a concessão de liminar para sobrestar o mandado e chegaram a alegar que, além de se tratar de uma determinação desprovida de explicações, não havia nada que a justificasse. Isso porque não houve trânsito em julgado, e tampouco sobreveio, em anos posto em liberdade, algum fato novo ou qualquer condição que autorizasse a decretação de preventiva.
Cumpre lembrar, nesse ponto, que as prisões processuais são de natureza estritamente cautelares e devem ser aplicadas apenas quando se mostrarem imprescindíveis ao regular processamento do feito (já que não teriam, em tese, caráter punitivo). Por essa razão é que o Código e a Constituição trazem de forma taxativa as hipóteses em que elas podem ser decretadas. Isso significa que, além das violações já mencionadas, o magistrado ignorou a observância de qualquer requisito para determinar a prisão. Ou, se não ignorou, pelo menos não demonstrou a sua existência – a menos que estivesse determinando a execução da pena.
Ao julgar liminarmente o Habeas Corpus, o Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Francisco Falcão, entendeu que essa seria a hipótese de decisão atacável pela via recursal, sendo, portanto, inadequado o Habeas Corpus. E, inobstante o iminente risco à liberdade, absteve-se de decidir a questão.
A decisão do STJ que negou o pedido liminar foi, enfim, a responsável por ensejar o pedido de Habeas Corpus nº 126.292 (SP) perante o Supremo Tribunal Federal.
A princípio, o Ministro Teori Zavascki houve por bem deferir a liminar e suspender a prisão imposta ao réu, ora paciente, Márcio Dantas.
Contudo, no julgamento definitivo do pedido, a liminar foi revogada e o próprio Ministro voltou atrás em sua decisão, tendo sido denegada a ordem de habeas corpus por 7 votos a 4[11].
Como sustentação da decisão proferida, o Ministro Relator argumentou que a possibilidade de execução provisória da pena era a orientação que prevalecia no STF, e que, assim, conforme os julgados, também era dispensável a fundamentação para a decretação de prisão preventiva após a sentença.
Em que pese a existência de decisões nesse sentido, prevalentes ou não, o fato é que elas informam interpretações desalinhadas dos princípios de uma democracia evoluída. Se o Supremo Tribunal Federal adotou, por vezes, esse pensamento há 15 ou 20 anos atrás[12], mas o abandonou (definitivamente em 2009), sob qual pretexto ele deveria ser retomado? Soa incoerente desejar-se caminhar para um Estado verdadeiramente livre e democrático e, ao mesmo tempo, aceitar que uma prisão (sobretudo processual) seja efetuada sem qualquer tipo de fundamentação. Qualquer decisão judicial proferida sem o mínimo de fundamentação é uma “aberração” jurídica, especialmente quando manda-se retirar a liberdade de alguém.
Não se deve esquecer, aliás, que o Brasil é uma democracia frágil e recente, e que muito embora estas decisões tenham sido proferidas sob a égide da Constituição de 1988, nesse contexto, qualquer pequena evolução (assim como qualquer pequeno retrocesso) representam muita coisa.
No voto, o Relator justifica essa orientação (favorável à execução provisória), afirmando que não há problemas com relação ao início do cumprimento da pena após ter havido a confirmação da sentença condenatória em segunda instância, uma vez que os recursos especial e extraordinário não são de ampla devolutividade.
Isso significa que a análise fático-probatória está praticamente esgotada tão logo se esgote o duplo grau de jurisdição. Desse modo, os recursos em questão teriam um pequeno efeito com relação à modificação da condenação, pois possuem seus objetos restritos a matérias de direito. Assim, defende o relator que
“com o julgamento implementado pelo Tribunal de apelação, ocorre uma espécie de preclusão da matéria envolvendo os fatos [...]. Os recursos ainda cabíveis [...] têm, como se sabe, âmbito de cognição estrito à matéria de direito. Nessas circunstâncias, tendo havido, em segundo grau, um juízo de incriminação do acusado, [...] parece inteiramente justificável a relativização e até mesmo a própria inversão, para o caso concreto, do princípio da presunção de inocência.” (p. 6-7).
Além disso, o Ministro sustenta que o princípio da presunção de inocência faz nascer uma série de regras processuais, sobretudo no campo na prova, o que conduziria à uma instrução pautada em garantias – e, consequentemente, à produção de uma sentença apta a representar um juízo de culpabilidade.
Em suma, o que se quer expressar é que o estado de inocência deve ter uma aplicação inflexível até o momento da sentença, mas que se, mesmo após isso, for obtida uma condenação, então seria possível presumir-se a culpabilidade. No entanto, o juízo de culpabilidade somente seria definitivo, como dito antes, quando exaurida a análise fático-probatória. Nos termos do voto:
“Com inteira razão, portanto, a Ministra Ellen Gracie, ao afirmar que ‘o domínio mais expressivo de incidência do princípio da não culpabilidade é o da disciplina jurídica da prova [...]’.” Realmente, antes de prolatada a sentença penal há de se manter reservas de dúvida acerca do comportamento contrário à ordem jurídica, o que leva a atribuir ao acusado [...] a presunção de inocência. A eventual condenação representa, por certo, um juízo de culpabilidade, que deve decorrer da logicidade extraída dos elementos de prova produzidos em regime de contraditório no curso da ação penal. Para o sentenciante de primeiro grau, fica superada a presunção de inocência por um juízo de culpa [...], embora não definitivo [...].” (p. 5-6).
Em que pese o raciocínio elogiável do relator, a tese apresentada não se mostra capaz, como dito pelo Ministro Lewandowski ao comentar o caso, de superar a literalidade da Constituição Federal. Trata-se, de fato, de uma excelente justificação teórica, mas que na prática colide com a opção constituinte.
O texto do inciso LVII, do art. 5º da Constituição Federal é claro no sentido de que atribuição de culpa deriva necessariamente do trânsito em julgado.
Isso quer dizer que pouco importa que a comprovação da culpa tenha ocorrido, no plano fático, em um outro momento do processo. A opção feita pela Constituição Federal é de que ela só estará efetivamente comprovada com o trânsito em julgado. Trata-se, pois, da imposição de um limite formal e objetivo à declaração da culpa.
Reiterando o que já foi colocado no tópico anterior, não se pode conceber, por consequência, a aplicação de efeitos condenatórios antes da existência da culpa (nos termos da Carta Magna).
Nesse sentido é lógica a demonstração de HACHEM (2016)[13]:
“Em termos jurídicos, a prisão como execução da pena (desprovida de natureza cautelar) exige obrigatoriamente que o acusado tenha sido considerado culpado, porque a aplicação da sanção penal requer a prévia ocorrência de crime, e o crime só se configura quando estiverem presentes três elementos: (i) antijuridicidade; (ii) tipicidade; (iii) culpabilidade. A declaração de culpabilidade é condição necessária para a execução da pena. Logo, um acusado pode ser declarado culpado antes de ter sofrido a pena, mas não pode sofrer a pena antes de ser declarado culpado.”
Válido ressaltar ainda que, em se tratando de direitos fundamentais, o prevalecimento da opção constitucional em detrimento de uma interpretação paralela e com outros fundamentos, em especial quando mais benéfica, não se trata de mero apego ao formalismo, mas de proteção às garantias individuais.
Resta claro agora que a pena e o estado de inocência estão subordinados, quando não às razões cautelares, ao trânsito em julgado da sentença. Desse modo, não há como “flexibilizar” o estado de inocência e tampouco admitir que ele seria gradativo dentro do processo penal (como chega a ser afirmado no voto).
Entre outros argumentos, também foi exposto o fato de que a minoria dos recursos extraordinários obtinha sucesso, além de que a maioria dos países já adotava a execução provisória da pena.
De todo modo, são afirmações que não merecem prosperar, tendo em vista que permanecem sem oferecer qualquer solução que seja apta a driblar o disposto na Constituição Federal.
Ademais disso, como ressaltado por HACHEM (2016)[14], não faz o menor sentido interpretar as previsões constitucionais brasileiras com base no ordenamento constitucional dos Estados Unidos.
O pretexto de que outros países tratam a matéria de forma diferente ou de que os recursos dificilmente são providos não podem levar o STF a mudar o que está escrito no ordenamento. Poderiam esses fatores, no máximo, conduzir a uma revisão da matéria por parte do Poder Legislativo – não fosse, é claro, o fato de o estado de inocência ser uma cláusula pétrea.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A recente decisão do Supremo Tribunal Federal brasileiro retomou o entendimento de que o trânsito em julgado não constitui uma conditio sine qua non para a execução provisória da pena, baseando-se, sobretudo, no exaurimento da cognição de matéria fático-probatória ao fim do segundo grau de jurisdição. Em que pese a coerência teórica desse raciocínio – que poderia até justificar alguma eventual adoção constitucional desse modelo de execução –, a execução provisória das sentenças penais condenatórias segue esbarrando na atual disposição literal do art. 5º, LVII. Nesse sentido, nem esse nem qualquer argumento estudado foi capaz de oferecer uma interpretação que superasse a exigência do trânsito em julgado.