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A abrangência do termo alienação no direito de preferência do contrato de arrendamento rural

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Agenda 04/10/2016 às 15:50

O legislador não impôs requisitos ou restrições à alienação do imóvel rural, diferente da lei civil ou mesmo da lei de locações, que restringe o direito de preferência em casos de venda por decisão judicial, permuta, doação, integralização de capital, cisão, fusão e incorporação.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho abordará os aspectos legais do art. 92, §3º do Estatuto da Terra, que dispõe sobre o direito de preempção nos contratos de arrendamento rural. Abordará a abrangência do termo “alienação” com suas diversas vertentes e a posição jurisprudencial do assunto, analisando as várias formas de transmissão da propriedade e verificando se as mesmas se enquadram ou não no conceito de alienação do imóvel arrendado.


1. METODOLOGIA

O arrendamento rural no ordenamento jurídico brasileiro está conceituado no Decreto n. 59.566 de 14 de novembro de 1966, que em seu art. 3º assim dispõe:

Art 3º Arrendamento rural é o contrato agrário pelo qual uma pessoa se obriga a ceder à outra, por tempo determinado ou não, o uso e gozo de imóvel rural, parte ou partes do mesmo, incluindo, ou não, outros bens, benfeitorias e ou facilidades, com o objetivo de nêle ser exercida atividade de exploração agrícola, pecuária, agro-industrial, extrativa ou mista, mediante, certa retribuição ou aluguel , observados os limites percentuais da Lei.

§ 1º Subarrendamento é o contrato pelo qual o Arrendatário transfere a outrem, no todo ou em parte, os direitos e obrigações do seu contrato de arrendamento.

§ 2º Chama-se Arrendador o que cede o imóvel rural ou o aluga; e Arrendatário a pessoa ou conjunto familiar, representado pelo seu chefe que o recebe ou toma por aluguel.

§ 3º O Arrendatário outorgante de subarrendamento será, para todos os efeitos, classificado como arrendador.

Assim, o arrendamento rural é um contrato agrário pelo qual o proprietário do imóvel se obriga a ceder a outro o direito de usar e gozar da terra, com o objetivo de que nela seja exercida atividade de exploração agrícola, pecuária, agroindustrial, mediante pagamento de retribuição ou aluguel. É, portanto, um contrato oneroso.

Por sua vez, o Estatuto da Terra, que dispõe sobre as normas gerais do contrato de arrendamento, estabelece normas e princípios que devem ser seguidos nesta espécie de contrato, dentre os quais se destaca o direito de preferência do arrendatário para a aquisição do imóvel arrendado e os casos de adjudicação do imóvel quando não respeitado este direito de preempção.

O direito de preferência, ou o direito de preempção, tem por beneficiário o arrendatário da terra, como forma de garantia do uso econômico da terra por ele explorada, e é preconizado no art. 92, §3º do Estatuto da Terra e no art. 45 do seu Regulamento (Decreto 59.566/66) que assim dispõem:

Art. 92. A posse ou uso temporário da terra serão exercidos em virtude de contrato expresso ou tácito, estabelecido entre o proprietário e os que nela exercem atividade agrícola ou pecuária, sob forma de arrendamento rural, de parceria agrícola, pecuária, agro-industrial e extrativa, nos termos desta Lei.

(...)

§ 3º No caso de alienação do imóvel arrendado, o arrendatário terá preferência para adquiri-lo em igualdade de condições, devendo o proprietário dar-lhe conhecimento da venda, a fim de que possa exercitar o direito de perempção dentro de trinta dias, a contar da notificação judicial ou comprovadamente efetuada, mediante recibo.

Decreto 59.566/66:

Art 45. Fica assegurado a arrendatário o direito de preempção na aquisição do imóvel rural arrendado. Manifestada a vontade do proprietário de alienar o imóvel, deverá notificar o arrendatário para, no prazo, de 30 (trinta) dias, contado da notificação, exercer o seu direito

Por essas normas, o proprietário que desejar vender o imóvel arrendado deve ofertar ao arrendatário a preferência para adquiri-la, em igualdade de condições à proposta efetivamente realizada pelo pretenso comprador. Necessária a existência de uma proposta certa e determinada, e não apenas um anúncio ou intenção de venda do imóvel, não sendo válida a anterior renúncia ao direito de preferência.

 Trata-se de normas de ordem pública e social, de observação obrigatória, impositiva e irrenunciável, tendo por finalidade específica a proteção daquele que pelo seu trabalho torna a terra produtiva e dela extraem produção, dando efetividade à função social da terra. Neste sentido, o acórdão lançado no Recurso Especial nº 1.339.432, do Superior Tribunal de Justiça:

DIREITO AGRÁRIO. PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE PREEMPÇÃO NA AQUISIÇÃO DO IMÓVEL RURAL (ART. 92, §3°, DO ESTATUTO DA TERRA). EXCLUSIVIDADE DO ARRENDATÁRIO. REQUISITOS DO CONTRATO DE ARRENDAMENTO RURAL. INOCORRÊNCIA. AUSÊNCIA DE TRANSMISSÃO DA POSSE. NATUREZA JURÍDICA DE LOCAÇÃO DE PASTAGEM. MATÉRIA FÁTICO PROBATÓRIA. SÚM 7/STJ.(...)  3. O direito de preferência previsto no Estatuto da Terra beneficia tão somente o arrendatário, como garantia do uso econômico da terra explorada por ele, sendo direito exclusivo do preferente. 4. Como instrumento típico de direito agrário, o contrato de arrendamento rural também é regido por normas de caráter público e social, de observação obrigatória e, por isso, irrenunciáveis, tendo como finalidade precípua a proteção daqueles que, pelo seu trabalho, tornam a terra produtiva e dela extraem riquezas, dando efetividade à função social da terra. 5. (...).[1]

De igual modo a doutrina e a jurisprudência entendem que o direito de preferência é direito real do arrendatário sobre a terra[2], oriundo do direito francês[3], que constitui, segundo Helena Maria Bezerra Ramos, uma “limitação ao direito de propriedade e de aplicação do princípio da função social do contrato de arrendamento”.[4] Por ser a preferência uma disposição legal, outra característica marcante é que seu exercício independe de existência de registro no Cartório Imobiliário do contrato de arrendamento sobre o imóvel em questão, característica esta majoritariamente reconhecida por doutrina e jurisprudência.[5]

Portanto, observa-se que o espírito da lei é a proteção daquele que explora a terra, tornando-a produtiva e geradora de empregos, alimentos e riquezas para o País, trazendo consigo um conteúdo constitucional de proteção à atividade rural e produção de alimentos, especialmente ao produtor que trabalhou na semeadura e na geração de riquezas para a sociedade como um todo.[6]

Por fim, o direito de preempção é um direito pessoal do arrendatário, comportando, em caso de violação, ação de adjudicação, quando lhe interessar a aquisição do imóvel. É o que dispõe o §4º do art. 92 do Estatuto da Terra:

§ 4° O arrendatário a quem não se notificar a venda poderá, depositando o preço, haver para si o imóvel arrendado, se o requerer no prazo de seis meses, a contar da transcrição do ato de alienação no Registro de Imóveis.

O que se observa, todavia, é que o § 3º do art. 92 do Estatuto da Terra preconiza que o direito de preferência do arrendatário será “no caso de alienação do imóvel arrendado”. A lei não deixa claro as formas de alienação ou requisitos para o exercício do direito de preferência, nem impõe condições ou preconiza suas formalidades, apenas dispõe, outrossim, que o arrendatário terá direito de mover a ação preemptória contra ato do proprietário que lhe tenha negado a preferência, estabelecendo como prazo o interstício temporal de seis meses a contar da transcrição do ato de compra e venda no registro de imóveis. [7]

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2. O CONCEITO DE ALIENAÇÃO, AQUISIÇÃO E PREÇO

A alienação pode ser definida como a ação de transferir para outrem o domínio da coisa ou o gozo do direito que era seu. O radical da palavra vem do latim alius, que significa outrem. Alienare é, assim, “tornar-se de outrem a coisa que era nossa e que se lhe transferiu por título inter vivos, seja gratuito ou oneroso”.[8]

Portanto, à princípio, o exercício do direito de preferência estaria ligado à  todo ato de transição, gratuito ou oneroso, da propriedade do arrendante para terceiro estranho à relação contratual.

Todavia, mais adiante, no §3º do art. 92 do Estatuto da Terra o legislador fala em “aquisição” e no §4º do mesmo artigo, em “preço”, ao dispor sobre a preferência do arrendatário.

Definindo os vocábulos, por “aquisição” entende-se o “ato jurídico que se funda da transmissão da propriedade da coisa ou do direito”[9], ou seja, a transferência. Já pelo vocábulo “preço” entende-se “o valor ou a avaliação pecuniária atribuída a uma coisa, isto é, o valor dela determinado por uma soma em dinheiro”[10]. Pressupõe, portanto, uma quantia monetária, uma soma pecuniária a ser paga pelo comprador ao vendedor.

Assim, na análise preliminar do texto legal, observa-se que o legislador fala da transferência de propriedade, a aquisição da mesma e a atribuição pecuniária sobre ela. Com estes conceitos, necessário verificar agora as várias formas de alienação do direito civil sob o prisma do direito de preferência do Estatuto da Terra.


3. DAS VÁRIAS ESPÉCIES DE ALIENAÇÃO

3.1 Da compra e venda

O exemplo mais comum da alienação de imóvel é justamente a compra e venda pura da propriedade arrendada. Neste caso não há dúvidas sobre o respeito à lei, pois no momento em que o arrendante vendeu o imóvel à terceiro sem respeitar o direito de preferência do arrendatário, houve um descumprimento claro e direto do §3º do art. 92 do Estatuto da Terra, sendo facultado ao arrendatário o depósito do preço e o requerimento de adjudicação do imóvel.

O §4º do mesmo artigo dispõe que o prazo para depósito do preço e a adjudicação do bem prescreve em seis meses a contar da transcrição do ato de alienação no Registro de Imóveis (Cartório de Registro de Imóveis – CRI). Por vezes ocorre das partes elaborarem contrato de compra e venda parcelado, onde se lavra a escritura, mas deixa a transcrição no CRI para data futura, seja no pagamento da última parcela ou em outro período estipulado pelas partes. O fato é que o prazo para requerimento da adjudicação conta-se da transcrição do ato no CRI, não importando se a referida compra e venda aconteceu anos antes ou dias atrás.

Na prática observa-se a existência de muitos contratos de gaveta, onde proprietários vendem o imóvel a terceiros sem oportunizar ao arrendatário o direito de preferência, escondendo o ato de transcrição no CRI para somente depois de findo o contrato deste, visando com isto burlar a legislação.

Se, todavia, ficar provado que a compra e venda ocorreu na vigência do contrato de arrendamento, ao arrendatário é assegurado o direito de preferência, visto que o ato jurídico da alienação consumou-se no tempo em que era necessário dar conhecimento da venda ao arrendatário. Neste caso, cabe ao arrendatário direito da adjudicação do bem, depositando o preço do imóvel e exercendo o pagamento na mesma forma do contrato de compra e venda a ser anulado.

Caso o arrendatário venha a ter conhecimento da compra e venda durante a vigência do contrato de arrendamento, ele tem a opção de esperar a transcrição do ato no Registro de Imóveis, para somente então iniciar o prazo prescricional de seis meses, ou então depositar o preço e requerer a adjudicação à qualquer tempo, juntando documentos que demonstrem a efetiva compra e venda do bem.

Esta hipótese não tem passado desapercebida pelos Tribunais brasileiros, que têm entendido que a transcrição no CRI é mera formalidade visando dar conhecimento público do ato e do valor da operação. Se, todavia, os caracteres já forem de conhecimento do arrendatário, não é necessário o preenchimento do requisito da transcrição no Registro de Imóveis. Em outras palavras, este ato gera efeitos apenas prescricionais ao arrendatário, mas não significa conditio sine qua non para a propositura da competente ação peremptória. Neste sentido, em caso análogo:

VENDA DE COISA COMUM. ALIENAÇÃO DE FRAÇÃO IDEAL DO IMÓVEL SEM O CONSENTIMENTO DOS DEMAIS CONDÔMINOS.  VENDA QUE SOMENTE SE APERFEIÇOARIA COM O REGISTRO NO CARTÓRIO IMOBILIÁRIO COMPETENTE. ART. 1.139 DO CÓDIGO CIVIL. - Ao condômino preterido com a alienação de parte ideal do imóvel comum, sem o seu consentimento, é dado exercer o direito de preferência com a simples operação de compra e venda, independentemente do registro da respectiva escritura pública. Recurso conhecido e provido parcialmente.[11]

Se há ciência da existência da operação de compra e venda, porém sem o conhecimento seguro das condições realizadas, tem o arrendatário a opção de interpor medidas cautelares visando obter informação da escritura pública de compra e venda ou mesmo da quebra de sigilo bancário dos proponentes, para que se possa obter o correto preço da alienação para que seja cumprido o depósito prescrito em lei ou de simplesmente esperar a transição.

Se o contrato de compra e venda a ser anulado for de prestações sucessivas, tem o arrendatário o mesmo direito à esta forma de pagamento ao exercer a preferência, ainda que várias das parcelas já tenham sido pagas.

Ainda que o contrato de compra e venda possua cláusula de pagamento em moeda estrangeira, o depósito da prestação deverá ser feito em moeda nacional, já que é proibido pela legislação brasileira o pacto referenciado em outra moeda, conforme já citou Lutero de Paiva Pereira[12]:

Portanto, em regra a estipulação de pagamento deve ser na moeda nacional e só excepcionalmente, e nos exatos termos permitidos pela legislação especial, de modo diverso.

Com a entrada em vigor do Código Civil a nulidade da convenção de pagamento em moeda estrangeira ou ouro foi mantida, inclusive para a compensação da diferença entre o valor da moeda nacional e o da moeda estrangeira, somente admitindo exceção quando a legislação especial dispuser em sentido contrário.  

3.2. Da alienação judicial do bem

Outra hipótese seria o caso da alienação judicial do bem arrendado. É certo que o contrato de arrendamento não impede que o proprietário ofereça o bem em garantia de operações ou mesmo em penhora judicial. Porém, para a expropriação do bem necessário a oferta de preferência ao arrendatário do imóvel, pois nada mais é do que uma operação de alienação.

Optiz entende de modo diverso, ao dispor que a lei incide unicamente “nas vendas extrajudiciais, voluntárias, mas nunca judiciais ou compulsórias. Assim, não pode o arrendatário concorrer com o credor adjudicante, em casa de execução.”[13] Cita ainda a arrecadação em falência, dizendo, todavia, que não fica o arrendatário impedido de dar lance no bem. Evoca, em sua defesa, a lei de locações de prédios urbanos, onde há esta exclusão de forma expressa[14].

Todavia, o que a lei não restringiu não pode o aplicador assim fazer. Se a lei expôs sobre “alienação”, não parece o melhor caminho excluir uma ou outra forma de alienação dando tratamento desigual onde a lei assim não diz. Neste sentido já se manifestou o e. STJ em julgamento[15]:

(...) 4. Sem ter o legislador restringido as formas de alienação das quais exsurgiria o direito de preferência, inviável excluir do seu alcance a alienação coativa ou judicial. 5. Reconhecimento da incidência da regra do art. 92 da Lei 4.505/64 a qualquer das espécies de alienação, desde que onerosa, tendo em vista inserir-se, dentre os seus requisitos, o adimplemento do preço pago pelos terceiros.  (...)

Do voto:

Penso que não haveria empecilho em reconhecer espaço para, na alienação coativa, dar-se azo ao exercício do direito de preferência. Este, bem verdade, sujeita não só ao proprietário que não notifica o arrendatário com quem mantém vínculo contratual, mas, também, inegavelmente, aqueles que venham adquirir o bem submetido à venda judicial, terceiros, pois, inicialmente indeterminados. Assim como na compra e venda, na alienação judicial há oferta por parte do arrematante, quando do lanço, e oblação por parte do Estado, quando aceita, surgindo um típico negócio jurídico bilateral, com leciona Araken de Assis (in Manual da Execução, 9ªed., Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo: 205, p.60), ao analisar a natureza jurídica da arrematação, com sucedâneo no magistério autorizado de Pontes de Miranda. (...)

No mesmo sentido, também o Tribunal de Justiça do Mato Grosso:

“APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE PREFERÊNCIA. ARRENDAMENTO RURAL - ALIENAÇÃO JUDICIAL DO IMÓVEL - ADJUDICAÇÃO POR TERCEIRO - REGISTRO DO CONTRATO - DESNECESSIDADE - APLICAÇÃO DO ARTIGO 92, §§ 3º E 4º, DO ESTATUTO DA TERRA - DEPÓSITO DO VALOR PELO ARRENDATÁRIO - RECURSO DESPROVIDO - DECISÃO MANTIDA. Ao arrendatário que pretende exercer o direito de preferência na compra do imóvel arrendado é irrelevante a inexistência de registro do contrato de arrendamento rural no cartório imobiliário, uma vez que esta exigência não está contida no Estatuto da Terra, podendo inclusive ser acordado entre as partes de forma verbal. Nos termos do § 4º do artigo 92 do Estatuto da Terra, o arrendatário que não for previamente notificado da alienação do imóvel que arrenda, poderá depositar o preço e haver para si o imóvel alienado, se o requerer no prazo de 06 (seis) meses, a contar da transcrição do ato de alienação no Registro de Imóveis, pouco importando tratar-se de alienação judicial a terceiro.”[16]

Assim, parece o melhor caminho aquele que impõe o direito de preferência a todos os casos de alienação, judicial ou voluntária, tendo por requisito apenas a onerosidade do ato.

Na esteira deste entendimento, na alienação judicial a intimação do arrendatário para o comparecimento à hasta pública deverá ser pessoal, inequívoca, e não somente por edital em jornal de grande circulação, em vista do direito real que possui sobre o imóvel. Para exercício da preferência, sua oferta deverá ser igual ou superior que o maior lance ofertado, e não aquele da avaliação do bem para hasta pública. Em tese, ele ainda teria 30 dias após hasta pública para o depósito do preço, em igualdade de condições com o maior lance ofertado. Não havendo intimação pessoal do arrentário da hasta pública, nasce-lhe o direito do depósito e adjudicação do bem, nos termos do §4º do art. 92 do Estatuto da Terra.

3.3. Da alienação de cotas da empresa

Outro exemplo que pode ser dado é através da alienação do imóvel através da cessão de cotas da empresa, quando a pessoa jurídica confunde-se com o proprietário do imóvel rural. Seja por questões tributárias, fiscais ou comerciais, é até certo ponto normal que algumas pessoas jurídicas sejam constituídas para adquirir uma determinada propriedade rural, sobretudo quando se trata de grandes extensões de terra. Quando assim realizado, em tese, os sócios da empresa (que se confunde com o imóvel), poderiam vender integralmente as cotas sociais para terceiros, ferindo assim o direito de preferência do arrendatário.

Também é este exemplo uma forma de simulação e negativa de vigência ao direito de preferência do arrendatário. Afinal, na hipótese acima, em que empresa e propriedade rural se confundem, o que houve, a princípio, foi a alienação do próprio imóvel rural, que agora passaram a ter outros proprietários. Nota-se que neste exemplo não há transcrição no Registro de Imóveis de transferência do bem, pois a empresa continua como proprietário do mesmo. O que houve foi uma troca de sócios da empresa. Todavia, o espírito da lei, como visto, é a proteção do uso econômico da terra pelo arrendatário, que de uma forma ou de outra, foi ferido nesta hipótese.

Quando há venda integral das cotas sociais não há que se exigir o aspecto da affectio societatis, já que há transferência integral de patrimônio da empresa. Ademais, com o advento da Lei nº 12.441 de 2011, que incluiu o IV do art. 44 do Código Civil criando as empresas individuais de responsabilidade limitada (EIRELI), o arrendatário poderia inclusive permanecer com a empresa, apenas modificando a estrutura social se for o caso.

3.4.  Da alienação via permuta de imóveis

Outra forma de alienação do imóvel é através da permuta entre imóveis, onde as partes se obrigam a dar uma coisa pela outra. Conforme Silvio Rodrigues[17], a troca é, da mesma forma que a compra e venda, um negócio bilateral, oneroso e consensual. Todavia, a característica marcante deste instituto é a possibilidade de existência de um bem infungível na celebração do pacto.

O problema se encontra no caso, por exemplo, em que o proprietário permuta o imóvel arrendado com outro imóvel com características certas e determinadas, o que o torna infungível. Da mesma forma, o imóvel arrendado também é infungível em relação ao permutante, que só trocaria seu imóvel por aquele, o que parece que torna impossível a materialização do direito de preferência neste caso, já que ficaria impossível ao arrendatário a obtenção de outro bem igual ao permutado.

3.5. Da dação em pagamento

A dação em pagamento surge no momento em que o credor de certa quantia aceita receber prestação diversa daquilo que foi acordado, no caso, quando um terceiro credor aufere o imóvel arrendado como pagamento da dívida que possuía com o proprietário.

Todavia, analisando-se o instituto da dação em pagamento, notadamente no seu art. 357 do Código Civil,[18] verifica-se que para que seja realizado o ato da dação mister a definição do preço da coisa e, a partir de então, regula-se o ato pelas normas do contrato de compra e venda. Por isto, em tese, estar-se-ia diante de mais uma hipótese de transmissão da propriedade onde há preço certo e determinado, devendo ser respeitado o direito de preferência do arrendatário.

 Para o arrendatário não faz diferença o tipo de transmissão da propriedade. Por isso, ainda que tenha ocorrido a dação em pagamento, ao arrendatário é assegurado o direito de preferência, pelo mesmo valor determinado ao imóvel na dação efetuada.

3.6. Da doação

Outra hipótese que merece ser aventada é da doação da propriedade arrendada no curso do contrato de arrendamento. Nesta hipótese, ao contrário das demais, não há um contrato oneroso, sendo a doação uma espécie de transmissão da propriedade gratuita.

Aqui não há que se falar em direito de preferência do arrendatário, pela ausência de um dos requisitos do §3º e 4º do art. 92, qual seja, o preço. Veja que um dos requisitos do arrendatário para o exercício da preempção é o depósito do valor do imóvel alienado. Na doação, não há o quantum da transmissão, já que o transmitente não recebe nada em troca pelo seu ato generoso. Se não há preço, não há como se falar em exercício de preferência. Neste sentido já se manifestou o STJ em caso análogo:

“4. Sem ter o legislador restringido as formas de alienação das quais exsurgiria o direito de preferência, inviável excluir do seu alcance a alienação coativa ou judicial. 5. Reconhecimento da incidência da regra do art. 92 da Lei 4.505/64 a qualquer das espécies de alienação, desde que onerosa, tendo em vista inserir-se, dentre os seus requisitos, o adimplemento do preço pago pelos terceiros. 6. Razoabilidade da interpretação alcançada pelo acórdão recorrido.” (STJ, REsp 1148153/MT, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, DJe de 12.04.2012)

Obviamente poderá ocorrer a doação fraudulenta de um bem, onde as partes poderiam simular uma doação camuflada de compra e venda, por exemplo. Neste caso, haveria uma simulação de negócio jurídico, um meio fraudulento para evitar o direito de preferência, cabendo ação de anulabilidade de ato jurídico[19].

3.7. Da alienação fiduciária do bem arrendado

Outra hipótese que merece análise é a que diz respeito à alienação fiduciária pelo proprietário de um bem imóvel arrendado à terceiro, como garantia de uma operação financeira em seu benefício. Em caso de mora, o credor simplesmente constituiria o devedor (arrendante) em mora e consolidaria a posse do imóvel arrendado em seu nome, em detrimento ao arrendatário.

Neste caso, não há dúvidas de que houve uma operação anterior (ato da alienação), onde havia preço certo e determinado, e que este ato atingiu o direito de preferência do arrendatário, que poderá, neste caso, mover ação própria visando a adjudicação do bem.

Outrossim, vale a pena ressaltar que a alienação fiduciária de bem imóvel rural em muitos casos se mostra nula de pleno direito, hipótese esta bem defendida por Lutero de Paiva Pereira[20] pelo fato de que a única hipótese possível de constituição desta garantia sobre bem imóvel é em função de contrato de empréstimo imobiliário, conforme dispõe o art. 17 da Lei 9.514/97:

A questão da alienação fiduciária de bem imóvel toma rumo um pouco mais complexo, visto que em face da disciplina legal especial ditada pela Lei 9.514/97, a garantia não pode figurar a não ser em um único tipo específico e determinado de operação, a saber, nos chamados contratos de empréstimo imobiliário.

E mais adiante:

Diante disto, a constituição de alienação fiduciária sobre bem imóvel deve, necessariamente, ser realizada dentro do objetivo da Lei 9.514/97, ou seja, para garantir financiamento imobiliário, vedado seu emprego para operações de natureza diversa daquela indicada no seu art. 17.[21]

Portanto, seja pelo fato da nulidade desta garantia em contratos de natureza diversa do empréstimo imobiliário, ou pelo fato do preenchimento de todas as características necessárias para exercício da preferência (alienação, aquisição, preço), também nesta hipótese é cabível o direito do arrendatário para preempção.

Sobre o autor
Tobias Marini de Salles Luz

Advogado associado da banca Lutero Pereira & Bornelli Advocacia do Agronegócio, em Maringá/PR e Cuiabá/MT. Especialista em Direito Tributário pela Uniderp. Bacharel em direito pela PUC Minas. Membro do Comitê Europeu de Direito Rural. Coordenador da Agroacademia Cursos Online.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LUZ, Tobias Marini Salles. A abrangência do termo alienação no direito de preferência do contrato de arrendamento rural. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4843, 4 out. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51631. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

Artigo selecionado pelo XIII Congresso Mundial de Direito Agrário da UMAU (União Mundial dos Agraristas Universitários - Itália). Publicado nos anais do evento: LUZ, Tobias Marini de Salles. A abrangência do termo 'alienação' no direito de preferência do contrato de arrendamento rural. In: XIII CONGRESSO MUNDIAL DE DIREITO AGRÁRIO, 2014, RIBEIRÃO PRETO. Desafios do direito agrário contemporâneo. Ribeirão Preto: Altai, 2014. p. 353-367.

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