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A contribuição previdenciária dos aposentados e pensionistas no regime próprio de previdência social.

Análise para uma resposta adequada à Constituição

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Agenda 30/08/2016 às 17:15

Analisa-se no presente ano presente artigo o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.105.

INTRODUÇÃO

            As Constituições contemporâneas trouxeram um extenso rol de direitos fundamentais frutos da necessidade de convivência e sobrevivência de toda a sociedade. Na realidade brasileira, a Constituição Federal, numa de suas dimensões, visa sobretudo a tutela de diversos riscos sociais, a exemplo da velhice, e o faz por meio da previsão de direitos sociais e de um conjunto de normas que formam a tessitura e informam o modo pelo qual o Estado deve desenvolver suas ações para a tutela social.

            Como se verá, a dimensão social no Brasil restou prejudicada pela modernização tardia, resultando na insuficiência da ação Estatal em tutelar os direitos sociais elencados na Constituição e na inversão de papeis: o Estado, que deveria promover a defesa dos direitos sociais, acaba por prejudicar a tutela social por motivação econômica, mesmo em detrimento da própria Constituição.

             Por outro lado, a função Judiciária, na personificação máxima do Supremo Tribunal Federal (STF), que deveria adotar uma posição de vigia constante na defesa dos princípios constitucionais, muitas vezes se utiliza das razões de estado para conformar a transfiguração de institutos basilares de proteção social, conformando assim um prejuízo à sociedade.

            Nessa seara, o presente trabalho vai buscar demonstrar que as razões invocadas pelo STF na ADI n. 3.105 - na qual se possibilitou a incidência de contribuição previdenciária nos proventos de inatividade e pensão trazido pela EC n. 41/03 - não encontram respaldo na Constituição Federal. Para tanto, o primeiro capítulo apresentará a necessidade da elaboração de uma teoria da decisão judicial, pautada pelos contornos extraídos da fenomenologia hermenêutica de Heidegger, da Hermenêutica Filosófica de Gadamer e do Construtivismo de Dworkin.

            Com o norte dos princípios elencados pela Teoria da Decisão Judicial formulada por Lenio Luiz Streck, passa-se, a partir do segundo capítulo, a se buscar o sentido dos institutos jurídicos que remontam ao regime próprio de previdência social. Para tanto, apresentar-se-á ao leitor um histórico evolutivo das sucessivas Constituições, emendas constitucionais e ações julgadas pelo STF, possibilitando-se ao final, no terceiro capítulo,  a constatação de uma dinâmica previdenciária fundada nos direitos fundamentais.

            Já no quarto e último capítulo, o trabalho irá apresentar os argumentos do min. Cezar Peluso, os quais se basearam notadamente em razões de Estado, chancelando assim a diminuição dos direitos sociais. No ponto final do capítulo, o trabalho vai provocar uma proposta de debate entre as razões invocadas no voto e as bases de uma Teoria da Decisão Judicial, propondo, ainda, uma solução adequada para o caso que decorre da própria Constituição.

1 TEORIA DA DECISÃO JUDICIAL: CONTEXTO, NECESSIDADE E APLICAÇÃO

  

            Antes de se adentrar no mérito da constitucionalidade ou não da EC n. 41/03 e sua discussão pelo STF na ADI 3.105, é necessário se estabelecer uma base teórica mínima que norteará as análises que serão postas no presente trabalho. Para tanto, o presente capítulo pretende situar o contexto da Teoria do Direito e da Filosofia do Direito sob o foco de uma hermenêutica filosófica, que por sua vez permite a formação de uma teoria da decisão judicial no constitucionalismo contemporâneo.

            Essa demanda por um aporte teórico exsurge diante da necessidade de efetivação dos direitos fundamentais erigidos pela CRFB/88, a qual trouxe para a sociedade uma série de direitos que demandam uma atuação positiva por parte do Estado. Notadamente, os direitos e garantias fundamentais elencados a partir do Título II da CRFB/88 possuem como finalidade precípua possibilitar a existência digna da pessoa humana, mas num país marcado pela desigualdade social histórica e modernidade tardia[1], onde não se teve, necessariamente, um Estado Social, as promessas de se efetivar os direitos previstos na Constituição ainda encontram uma série de dificuldades de várias ordens.[2]

            Esse quadro de baixa constitucionalidade revela a insuficiência das teorias tradicionais de direito em concretizar o projeto político traçado pela Constituição, e chama-se a atenção nesta parte inicial do trabalho que o empecilho para a efetivação da CRFB/88 também recai no desajuste da forma de se pensar e aplicar o direito na atualidade, vale dizer, o quadro teórico tradicional é insuficiente para as exigências do constitucionalismo contemporâneo.

             A dramaticidade desse contexto é revelado também pela constatação de que a função Judiciária nem sempre atende ao primados estabelecidos pela Constituição a que deveria tutelar quando se manifesta sobre tensões político-sociais.  Veja-se que a eficácia da solução e efetivação dos comandos constitucionais não é garantida pelo simples fato do locus do embate se dar na função judiciária.

            No constitucionalismo contemporâneo, é nítida a relevância do papel dos tribunais ao exercerem a jurisdição constitucional, justamente para se fazer valer a Constituição, num fenômeno caracterizado pela judicialização da política. Todavia, esse fenômeno não raro se conforma em verdadeiro ativismo judicial, caracterizado pela vontade solipsista do julgador e que resulta num distanciamento do plano traçado pela Constituição. De plano, cabe aqui uma distinção entre os fenômenos. Nesse sentido:

            [...] enquanto o ativismo judicial está umbilicalmente associado a um ato de vontade do órgão judicante; a judicialização de questões políticas ou sociais não depende desse ato volitivo do poder judiciário, mas, sim, decorre da expansão da sociedade (que se torna cada vez mais complexa) e da própria crise de democracia, que tende a produzir um numero gigantesco de regulações (seja através de leis, medidas provisórias, decretos, portarias, etc) e que encontram seu ponto de capilarização no judiciário e, principalmente, nas questões cujo deslinde envolve atos de jurisdição constitucional.[3]

            Vale dizer, "[...] a judicialização é um fenômeno político, gerado pelas democracias contemporâneas; ao passo que o ativismo é um problema interpretativo, um capítulo da teoria do direito (e da Constituição)".[4] Como então seria possível ao julgador, no Estado Democrático de Direito, afastar-se do ativismo judicial? É nesse contexto que o problema interpretativo se insere numa Teoria da Decisão Judicial[5]. E se insere nela porque há uma necessidade da comunidade política de se efetivar a Constituição e com isso se proteger a própria democracia e os direitos e garantias fundamentais que dela decorrem.

            Uma Teoria da Decisão busca sobretudo a possibilidade de controle das decisões judiais, não apenas para a sociedade, mas para o próprio julgador, tudo com o escopo de se concretizar o projeto político traçado pela Constituição e a defesa de direitos fundamentais. Portanto, é preciso se estabelecer a base teórica pela qual se analisará o problema retratado no presente trabalho.

 

1.1 A formação da Teoria da Decisão Judicial na linha de Lenio Luiz Streck

1.1.1 A hermenêutica jurídica clássica

           

            Com esteio na teoria da decisão proposta por Lenio Luiz Streck, autor que desde os anos de 1990 se dedica ao estudo de um novo paradigma da hermenêutica jurídica, é possível se traçar um modelo teórico para a busca da efetivação das diretrizes visadas pela Constituição. Em razão dos fins do presente trabalho, não se trata aqui de esgotar em profundidade o tema, mas de apontar seus pressupostos básicos e se colher os resultados para a sua aplicação.

            Como acima se afirmou, apesar de o Estado Democrático de Direito possibilitar à função judicial a resolução de tensões político-sociais, o esforço para a concreção da normatividade dos direitos será inócua se depender do protagonismo judicial.[6] Veja-se que a democracia confere aos jurisdicionados o direito, também fundamental, de uma resposta adequada à Constituição e não apenas o dever de fundamentação das decisões judiciais, dever este do qual se desincumbe o julgador quando utiliza a linguagem para expor um significado que corresponde com um a priori compartilhado na comunidade, de modo a concretizar o projeto político constitucional.

            Os modelos tradicionais metodológicos de interpretação de textos para a solução de casos judiciais não apresentam uma solução para decisionimos que vão de encontro com a Constituição e nem permitem o controle de sentidos da decisão prolatada. Entram aqui diversos julgados que tiveram como fundamento a expressão "decido conforme minha consciência" e aqueles em que se baseiam na vontade do legislador, como se a consciência do julgador se bastasse para uma decisão adequada à Constitucional (subjetivismo) ou como se a vontade do legislador não viesse carregada com os pré-juízos de quem interpreta (objetivismo). E esse modelo de se pensar e aplicar o direito ainda é observado na forma de se decidir demandas judiciais no Brasil, mesmo diante das revoluções filosóficas contemporâneas a partir do séc. XX[7] e sua influência inconteste na hermenêutica jurídica.

            Tal postura tem por base a hermenêutica jurídica clássica, que por sua vez se assenta numa forma de interpretar moldada a partir da relação sujeito-objeto, segundo a qual a norma (objeto) é despida de qualquer sentido até o momento em que recebe, da consciência sujeito (sujeito), sua significação. A linguagem aqui assume papel de mero instrumento para que o sujeito revele o significado preciso do texto, o qual se valerá de diversos métodos para tal mister. Esse esquema se expressa, por exemplo, nos diversos métodos interpretativos da hermenêutica jurídica clássica, a exemplo dos métodos gramatical, lógico, sistemático, teleológico, histórico, etc., e nos métodos próprios de interpretação constitucional, como o método hermenêutico-concretizador, científico-espiritual, normativo-estruturante.

            Todos esses métodos pretendem a autossuficiência, no sentido de encobrirem o fenômeno interpretativo, a fim de alcançarem uma objetividade (neutralidade do intérprete) do conhecimento jurídico, ou seja, buscam preservar o sentido do texto atribuído pelo seu criador e com isso a totalidade da compreensão. Entretanto, os inúmeros métodos construídos sob a égide da hermenêutica jurídica clássica não definem qual método - dentre os diversos possíveis - deverá ser utilizado para a adequada interpretação, e em razão disso "seu uso será fatalmente arbitrário, propiciando interpretações ad hoc (quando não voluntaristas)".[8]

            Ainda, a interpretação na hermenêutica jurídica clássica é feita em blocos: primeiro o sujeito interpreta o dispositivo legal, para depois conhecê-lo (utilizando os métodos disponíveis), para só então aplicá-lo à situação concreta. Vale dizer, interpreta-se num primeiro momento, para depois se compreender.

            Nessa linha, é possível traçar as características da interpretação realizada sob a égide da hermenêutica jurídica clássica: "[...] a) (pretensão de) totalidade da compreensão; b) (in)determinação de cânones/métodos hermenêuticos para a atividade interpretativa; c) e da separação (metafísica) entre interpretação e aplicação [...]".[9]

           

1.1.2 A fenomenologia hermenêutica de Heidegger, a Hermenêutica Filosófica de Gadamer e o Construtivismo de Dworkin: a ruptura paradigmática que enseja a insuficiência da hermenêutica jurídica clássica

            As características acima elencadas - que ocorrem no bojo da filosofia jurídica e da hermenêutica jurídica clássica - não mais farão sentido em razão da mudança de paradigmas ocorrido na filosofia contemporânea do séc. XX (passa-se da filosofia da consciência para a filosofia da linguagem), sobretudo por causa do fenômeno conhecido por linguistic turn (giro linguístico), que aponta a linguagem como centro da filosofia. Nesse sentido:

            A partir de então, a filosofia apercebeu-se que é impossível chegar aos objetos diretamente. O acesso ao objeto - independentemente do que se entenda por objeto, seja ele um elemento químico, uma ação humana, uma lei ou um julgado - se dá a partir de um médium universal: a linguagem. Temos acesso às coisas e chegamos a conhecê-las porque temos palavras para mencioná-las.[10]

            Em síntese, com o giro linguístico, a interpretação e o acesso ao conhecimento deixam de ser uma revelação da essência (paradigma aristotélico-tomista), bem como um livre atribuir de sentido (paradigma da filosofia da consciência) e passa a ser um ato produtivo de atribuição de sentido que deve corresponder ao sentido compartilhado pela comunidade na qual está inserido o intérprete.[11]

            O giro-linguístico propiciou o surgimento de um grupo analítico e outro continental sobre as indagações da função da filosofia e seu papel no processo de conhecimento. Ambos convergem quanto ao linguistic turn como novo paradigma de acesso ao conhecimento, mas o grupo continental foi além para afirmar que a filosofia vai além da mera análise lógica dos enunciados linguísticos, o que não significa que tais enunciados lógico-linguísticos sejam ignorados.   

            Vale dizer, a hermenêutica que surge na filosofia continental não se limita ao uso da filosofia para a simples missão de interpretação de enunciados linguísticos (elemento lógico-explicativo), pois vai além, buscando em sua missão lidar com um elemento ontológico-linguístico.[12]    

            O giro ontológico-linguístico surge na hermenêutica continental, notadamente a partir da filosofia hermenêutica de Martin Heidegger. Como anota Streck, "Se a primeira 'etapa' do linguistic turn foi recepcionada pelas concepções analíticas do direito, o mesmo não se pode dizer acerca daquilo que se pode denominar de 'giro-ontológico-linguístico".[13]

            Numa apertada síntese sobre a contribuição de Heidegger para a ruptura paradigmática do processo de conhecimento estabelecida na filosofia da consciência, pode-se afirmar que com giro ontológico, transforma-se a ontologia até então praticada (ontologia da coisa) para a ontologia da compreensão a partir do deslocamento do ser humano (Dasein) para o interior da problemática ontológica.[14] Em outras palavras, introduz-se um elemento existencial - relação com o mundo - como primordial para o processo de conhecimento. De forma mais clara: o conhecimento passará a ser entendido como algo decorrente da interação entre a existência humana e o mundo.[15]

            O homem (Dasein), porque desde sempre é (existe) no mundo, compreende a si mesmo e o sentido do ser sem que tenha que recorrer a qualquer método apriorístico e o faz na medida em que pergunta pelos entes em seu ser.[16] Tal dinâmica é identificada por Heidegger pelos teoremas do círculo hermenêutico e da diferença ontológica.

            Disso resulta que o conhecimento como interpretação passa a ser desenvolvido pela elaboração produtiva - criativa, originária - decorrente da interação entre o homem (Dasein) e o mundo que o constitui. Essa articulação entre o homem (Dasein) e mundo geram uma pré-compreensão originária, a qual resulta no conhecimento, que por sua vez possibilitará a interpretação.

            Conforme expressa Streck, "O Dasein é, pois, pré-ontológico, isto porque o sentido de ser que é buscado já é alcançado pré-ontologicamente na compreensão do Dasein. O Dasein pré-domina o processo de compreensão. Por isto, a compreensão é um existencial".[17]

            A interpretação, por sua vez, tem como causa esse processo anterior, ou seja, a interpretação se dá num segundo momento, quando o sujeito já estabeleceu a pré-compreensão e os sentidos resultantes da interação entre ele e o mundo. E aqui está a chave para a utilidade da filosofia de Heidegger, porque a pré-compreensão não pode ser instrumentalizada, ou seja, o sentido antecipador independe da vontade solipsista. Vale dizer, "a interpretação é sempre derivada da compreensão que temos do ser-dos-entes. Ou seja, originariamente, o Ser-aí compreende o ente em seu ser e, de uma forma derivada, torna explícita essa compreensão através da interpretação (Auslegung)".[18] Dessa forma, pode-se dizer que primeiro se compreende, para só então se interpretar.

            A demonstração/interpretação dessa pré-estrutura de sentidos se dá pela linguagem. Na hermenêutica filosófica de Heidegger, ela possibilita ao homem o acesso ao mundo e a seus objetos. Sem ela, não há compreensão do mundo, pois "[...] somente quando se encontra a palavra para a coisa é que a coisa é uma coisa.[19] Veja-se que através da linguagem se compreende algo enquanto algo (o ser), ou seja, a linguagem permite que se diga aquilo que se compreende sobre o objeto.

            Dito de outro modo, a linguagem é condição de possibilidade para se ter acesso ao mundo. Com ela, dá-se sentido ao mundo quando se nomeia algo. Sem essa operação, não se pode compreender algo, pois se foge da linguagem. Contudo, cabe uma ressalva, conforme explica Streck, "A linguagem como totalidade não implica dizer que ela - linguagem - cria o mundo; este existe independentemente de nós. As coisas do mundo só existem se compreendidas, interpretadas".[20]

            Merece destaque a seguinte transcrição, em razão de sua clareza sobre a utilidade da filosofia de Heidegger para a o Direito:

            Não se recorre a Heidegger para encontrar uma “chave” de compreensão ou crítica das súmulas vinculantes, em particular, ou mesmo do Direito em geral. Recorre-se a Heidegger porque, a partir do desenvolvimento de sua filosofia, é possível encontrar um horizonte interpretativo mais adequado para a colocação dos problemas relativos aos objetos da nossa lida cotidiana. Entre esses objetos está o Direito e, nesse campo, também as súmulas. Note-se: em Heidegger não está “a chave para compreensão do Direito”. Em Heidegger está a raiz de um paradigma filosófico que permite encarar o direito e seus problemas práticos a partir de uma perspectiva mais radical e originária. Para nossas pesquisas, o paradigma filosófico que melhor conseguiu descrever o modo como nos relacionamos com os objetos que estão aí, à nossa disposição, bem como a relação que desenvolvemos com nossa própria autocompreensão, é aquele construído a partir da fenomenologia hermenêutica de Heidegger. Nesse contexto, toda relação de conhecimento, seja ela de cunho prático ou teórico, está envolvida em uma dimensão de profundidade que pode ser nomeada como logos hermenêutico. Sempre que lidamos com algo ou o colocamos como objeto de uma investigação teórica (o Direito, as súmulas etc.), mergulhamos em uma relação de compreensão e interpretação que envolve o objeto analisado e nossa própria autocompreensão. Essa dimensão hermenêutica do processo de conhecimento é algo inescapável. Somos, de certo modo, condenados a interpretar. Inclusive a nós mesmos (o filósofo canadense Charles Taylor afirma, a partir de Heidegger, que somos animais que se autointerpretam, self-interpreting animals).

            Todavia, ao contrário dos pensadores interpretacionistas que, em alguma medida, edificam suas pesquisas a partir do aforisma de Nietzsche segundo o qual “não há fatos, só há interpretações”, o paradigma da fenomenologia hermenêutica consegue projetar um horizonte interpretativo que vai além do relativismo niilista, alcançando um espaço no interior do qual é possível discutir a verdade, o acerto e a objetividade. Trata-se da dimensão denominada logos apofântico. No âmbito do apofântico, os objetos são, na linguagem e pela linguagem, “mostrados”, “apresentados”, “interpretados”; porém, essa “mostração”, “apresentação” e “interpretação” pressupõem uma antecipação de sentido que envolve sempre uma pré-compreensão que já aconteceu no âmbito do logos hermenêutico. Portanto, esse elemento hermenêutico (antecipador de sentido, pré-compreensivo) não acontece porque queremos nem é fruto de nossa vontade ou arbítrio cientifico. Ao contrário, acontece independentemente do que queremos e do que fazemos. Por isso, não pode ser instrumentalizado. O que precisamos fazer aqui é encontrar as condições para descrevê-lo adequadamente.[21]

            Como se disse nas linha acima, a fenomenologia hermenêutica de Heidegger permite se dizer que primeiro se compreende, para depois se interpretar, contrariando-se o paradigma hermenêutico clássico, baseado primeiro na interpretação para só então se obter a compreensão de qualquer objeto.

            Também extrai-se sua utilidade porque torna necessário que o sujeito, no momento em que mostra/apresenta/interpreta um objeto tenha a responsabilidade de não alterar de forma arbitrária a pré-compreensão/antecipação de sentido, eis que esse elemento - hermenêutico - pertence a toda a comunidade política.

            A partir da filosofia hermenêutica de Heidegger, Hans-Georg Gadamer construirá a sua Hermenêutica Filosófica, notadamente levando-se em conta o teorema do círculo hermenêutico daquele. O ponto central de Gadamer reside no estudo da pré-compreensão/antecipação de sentido.

            Gadamer afasta a possibilidade de estruturas metodológicas rígidas que determinam a interpretação, porque esta desde sempre é "[...] condicionada pelos pré-juízos e pela pré-compreensão do intérprete, que são legados pela tradição histórica na qual ele - intérprete - está linguisticamente mergulhado"[22]. Na atividade hermenêutica do intérprete, o método cede para os projetos de sentido que surgem do confronto de seus pré-juízos e pré-compreensões com o texto.

            Nesse sentido:

Com Heidegger e Gadamer, então, a hermenêutica deixa de ser normativa/metodológica, constituída a partir de metafísicos esquemas dedutivo-subsuntivos em que o objeto é construído pelo cogito ou refletido na consciência; e passa a ser filosófica, na medida em que está estruturada na antecipação de sentido presente na base do círculo hermenêutico acima descrito. Desta forma, o caráter da interpretação será sempre produtivo. É impossível reproduzir um sentido. A atividade criativa/produtiva do intérprete no trabalho hermenêutico é parte inexorável do sentido da compreensão e de sua estrutura prévia.[23]

            Também Gadamer unifica os processos de interpretação e aplicação. Pela hermenêutica jurídica clássica, a interpretação é a primeira etapa para em seguida se compreender e ao final aplicar o que se interpretou. Vale dizer, "O sujeito (intérprete/jurista) primeiro conhece, depois aplica o objeto (texto jurídico-norma) construído pelo cogito ou refletido na consciência"[24]. Na hermenêutica filosófica de Gadamer, primeiro se compreende, para então se interpretar/aplicar (interpretar já corresponde a aplicar), sendo que a interpretação nada mais é do que a exteriorização da compreensão, com as possibilidades advindas da compreensão.

            Com isso, pode-se dizer que com Gadamer não se faz uma cisão da realidade social (questão de fato) e da norma (questão de direito), como se esta última fosse um recipiente vazio de sentido. Isso implica que o ato interpretativo de uma lei passa a ser uma atividade de criação/produção de atribuição de sentido, que será ou não abalizado de acordo com a pré-compreensão de sentidos da comunidade política na qual o intérprete esta inserido.

            Na tarefa de atribuir o sentido ao objeto, o sujeito/intérprete será influenciado pela tradição histórica e pela consciência dos efeitos da história, o que acaba por aproximá-lo do próprio sentido do objeto de estudo. Disso decorre que não mais se pode afirmar em objetividade da interpretação, pois "[...] a consciência subjetiva sempre carrega consigo seus pré-juízos e sua carga histórica quando se aproxima do texto e, é só por causa deles, que consegue atribuir um sentido aos textos que interpreta".[25]

            Se a atribuição de sentido não decorre de um processo objetivista, em que o intérprete deve extrair um sentido inato pertencente às coisas, também não decorre de um processo subjetivista, na qual o sentido das coisas é decorrente do vontade do intérprete. Rechaçando o arbítrio do intérprete, Gadamer adverte que só se interpreta adequadamente um texto aquele que deixa o texto lhe dizer algo. Explicitando, a hermenêutica se coloca como um meio-termo entre a objetividade e a subjetividade da interpretação. Aquela pressupõe a desnecessidade de uma pré-compreensão dos sentidos que existe independentemente dos objetos, e esta sobrepõe a pré-compreensão ao jugo do intérprete. Em síntese:

            Entre outras coisas, a hermenêutica retira-nos da ingenuidade objetivista que acredita no sentido inato das normas jurídicas, que deve ser revelado pelo intérprete; ao mesmo tempo, propicia um enfrentamento adequado da “cegueira da vontade”, que vê a interpretação jurídica apenas como o resultado de um ato volitivo do agente jurídico. Entre os dois extremos (objetivismo e subjetivismo), a hermenêutica possibilita o desenvolvimento de um “caminho do meio”.[26]

            Todas essas considerações deságuam na forma de controle da atribuição de sentido e da garantia de um patamar adequado de objetividade dos textos jurídicos. Com Gadamer, viu-se que a tradição histórica amolda e constitui as possibilidade de atribuição de sentido, bem como possibilita o transcender/projetar dos sentidos, a partir do incremento da autocompreensão do intérprete como integrante da comunidade política na qual está inserido.

            Influenciado pela hermenêutica filosófica continental desenvolvida por Heidegger e Gadamer, finalmente se chega em Ronald Dworkin, para quem o a decisão judicial deve ser fundada no princípio do direito como integridade. Na linha de Dworkin, como o direito é uma prática interpretativa, uma decisão judicial somente terá legitimidade para impor a coerção Estatal se respeitar a coerência de princípios que compõem a integridade moral da comunidade. Explicitando o que isso significa, Georges Abboud, Henrique Garbellini Carnio e Rafael Tomaz Oliveira afirmam:

            Ou seja, a ideia de princípio em Dworkin não é materializável a priori em um texto ou enunciado emanado de um precedente, lei ou mesmo da Constituição, mas um argumento de princípio remete à totalidade referencial dos significados destes instrumentos jurídicos. [...] Nesse sentido, o direito como integridade trata de reconstruir a história jurídica de uma determinada comunidade. Onde se encontram critérios contraditórios para solução dos problemas apresentados pelo caso concreto, trata de encontrar uma explicação para elas e de exigir que as distinções e determinações produzidas no caso não se façam ao acaso, senão que correspondam por razões públicas e justificadas. Isso quer dizer que a atividade coativa do Estado - realizada sob o signo do direito - exige uma resposta a um conjunto coerente de princípios. No caso de necessidade de rompimento com essa cadeia de significados, a necessidade de justificação aumenta ainda mais, e a remissão ao contexto conjuntural dos princípios se faz de maneira ainda mais delicada. Porém, essa modificação adere-se à integridade do direito de modo que sua modificação exigirá o mesmo processo, em um momento subsequente.[27]

            Portanto, uma decisão judicial não pode eximir-se de ônus de se fundamentar no conjunto de princípios que dão sentido à própria comunidade política, sob pena de se legitimar a decisão senão pela força impositiva contrária aos princípios que regem a comunidade.

            O lingustic turn, o giro ontológico da filosofia hermenêutica de Heidegger e a hermenêutica filosófica deixam claro a existência uma crise epistemológica dos modelos tradicionais de se pensar a ciência jurídica. Por sua vez, o pensamento jurídico ainda dominante, por desconsiderar os avanços acima, continua a guiar-se pelo modo praticado no Estado Liberal-burguês em detrimento do Estado Democrático de Direito, aquele preocupado em manutenção de status quo, este pretendendo transformar efetivamente a realidade, surgindo desse choque do velho com o novo uma crise de paradigmas.

            Tendo em vista esse contexto, e valendo-se também do princípio do direito como integridade de Dworkin, Lenio Luiz Streck vai defender a tese de uma Teoria da Decisão de modelo construtivista, ao afirmar que a decisão judicial assume papel central para a superação da crise de paradigmas, superação esta que depende da superação do modelo estrutural sujeito-objeto da metafísica clássica (objetivismo) e da filosofia da consciência (subjetivismo).

  

1.1.3 A Teoria da Decisão de Lenio Luiz Streck

  

            Com base principalmente na fenomenologia hermenêutica de Heidegger, na hermenêutica filosófica de Gadamer e no construtivismo de Dworkin, Lenio Luiz Streck vai defender uma Teoria da Decisão de modelo construtivista. Trata-se de uma teoria que "[...] onera o intérprete no momento de construir seu argumento de modo a apresentar uma justificação adequada à constituição do ajuste por ele realizado entre as circunstâncias concretas do caso e o contexto normativo do direito da comunidade política".[28]

            Dessa forma, a decisão judicial deve ter por antecedente um compromisso com o sentido do direito projetado pela comunidade política. Ou seja, a decisão judicial será adequada se guardar respeito esse sentido compartilhado. Para tanto, deve o julgador respeitar a história institucional do direito, a qual é informada pelos princípios, resguardando-se com isso a integridade do direito e rechaçando-se interpretações ad hoc.

            Nesse contexto, dessa demanda por decisões que tragam respostas adequadas à Constituição e que efetivamente lhe tragam efetividade, o autor elabora cinco princípios que podem ser identificados como o mínimo que deve existir em uma decisão jurídica.

            O primeiro princípio se assenta na necessidade de se preservar a autonomia do direito. Assevera-se que a decisão judicial deve ser baseada/fundamentada por argumentos de princípios e não de política, moral ou economia. Ou seja, a decisão deve provir do ambiente jurídico, para que não fragilize o próprio direito.

            O segundo, estabelecer as condições hermenêuticas para a realização de um controle da interpretação constitucional, está-se a buscar uma postura transparente do intérprete, que tem o dever de expor seu processo interpretativo.

            Pelo terceiro princípio, garantir o respeito à integridade e à coerência do direito, busca-se, assim como Dworkin, um respeito à história institucional do direito.

            Pelo quarto, estabelecer que a fundamentação das decisões é um dever fundamental dos juízes e tribunais, afirma-se que a decisão judicial é um direito fundamental do cidadão.

            Por fim, o quinto, garantir que cada cidadão tenha sua causa julgada a partir da Constituição e que haja condições para aferir se essa resposta está ou não constitucionalmente adequada, busca-se preservar a força normativa da Constituição e o caráter deontológico dos princípios.

            Tendo-se em vista esses cinco princípios, a Teoria da Decisão "[...] representa o âmbito discursivo no interior do qual se busca encontrar anteparos para o exercício da atividade jurisdicional - que o polo privilegiado para discussões envolvendo a interpretação do direito - de modo a adequar tal atividade aos contornos democráticos que o constitucionalismo Contemporâneo impõe".[29]

            É com base nos pressupostos e princípios decorrentes da teoria acima lançados que a constitucionalidade da contribuição previdenciária dos servidores públicos inativos e pensionistas criada pela EC n. 41/2003 será analisada. Para tal mister, no capítulo seguinte analisar-se-á o contexto normativo constitucional anterior à inserção da contribuição mencionada, a fim de se buscar uma história institucional do direito.

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2 A HISTÓRIA DO REGIME PRÓPRIO DE PREVIDÊNCIA SOCIAL COM FOCO NO BENEFÍCIO DE APOSENTADORIA E PENSÃO: UM ESFORÇO PELO SENTIDO DO DIREITO PROJETADO PELA COMUNIDADE POLÍTICA

2.1 Evolução normativa e jurisprudencial

2.1.1 Constituições anteriores

  

            Buscando-se a integridade que o direito deve possuir, o presente capítulo busca traçar a evolução do regime próprio de previdência social, uma vez que no capítulo anterior se afirmou a importância da tradição jurídica para a construção de sentidos que guardem respeito com a Constituição.

            Foi a Constituição de 1891 a primeira a criar normas previdenciárias sobre o regime próprio, ao estabelecer, no art. 75, que "A aposentadoria só poderá ser dada aos funcionários públicos em caso de invalidez a serviço da Nação".[30] A mesma constituição, em seu art. 6º, definia outras regras disciplinando a relação de magistrados e aposentadorias.

            No ano seguinte, em 1892, a Lei n. 217, instituiu a aposentadoria por invalidez e a pensão por morte dos operários do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro, e mais tarde, em 1911, o Decreto n. 9.284 criou a Caixa de Aposentadoria e Pensões dos Operários da Casa da Moeda.

            A Constituição de 1934, no título relativo aos funcionários públicos, detalhava as prestações previdenciárias a que faziam direito. Como anota Daniel Machado Rocha:

            Com relação às aposentadorias, era possível a jubilação, em regra, aos 68 anos de idade, ou por invalidez (art. 170, n. 3 a 7). A aposentadoria por invalidez seria proporcional, salvo se o servidor ficasse inválido em decorrência de acidente ocorrido em serviço ou contasse com mais de trinta anos de serviço público. Ainda havia disposições sobre a contagem de tempo de servidores civis e militares que exerciam mandato parlamentar (§3º do art. 33) e aposentadorias de magistrados (alínea a do art. 64 e §5º do art. 104).[31]           

           

            A Constituição de 1937 manteve a disciplina das aposentadorias dos funcionários públicos prevista na Constituição de 1934. Adicionou-se, contudo, quanto à aposentadoria por idade, a previsão de a lei reduzir o limite de idade para determinadas categorias de serviço, a depender da natureza do serviço.

            Com o advento da Constituição de 1946, ensina Carlos Alberto Pereira de Castro e João Batista Lazzari que "ao lado das aposentadorias por invalidez e compulsória por idade avançada, ganhava status constitucional a aposentadoria voluntária aos 35 anos de serviço público, embora desde 1939 já existisse sua previsão em norma legal".[32] Contudo, a concessão de aposentadoria restava ao total arbítrio da administração, não sendo um direito com potencial de gerar nem mesmo direito adquirido ao servidor.

            Também marca este período o fato de que as aposentadorias permaneceram sendo custeadas exclusivamente com recursos do Tesouro, enquanto que as aposentadorias dos trabalhadores urbanos na iniciativa privativa eram custeadas por estes por meio de contribuições para as Caixas de Aposentadorias e Pensões, as quais foram transformadas depois em Institutos de Aposentadorias e Pensões.

            Também foi nesta Constituição que se previu expressamente a necessidade da precedência da fonte de custeio para a criação, majoração ou extensão de benefício previdenciário, conforme previsto no parágrafo único do art. 157, introduzido pela EC n. 11/65.

            Na Constituição de 1967 e EC n. 1/69 foram mantido o princípio da precedência de custeio, expressamente previsto no parágrafo único do art. 165. Por sua vez, a aposentadoria dos funcionários públicos passou a exigir 35 aos de serviço para os homens e 30 anos para as mulheres, sendo admitida a aposentadoria proporcional. Em caso de invalidez, os proventos seriam integras, desde que decorresse de acidente ocorrido em serviço, moléstia profissional ou doença grave, contagiosa ou incurável, especificada em lei (art. 100 e 101). Também, aumentou-se para 70 ano a aposentadoria compulsória. A aposentadoria dos magistrados, tratada no art. 107, § 1º, previa proventos integrais em caso de aposentadoria compulsória aos setenta anos de idade, ou por invalidez, ou ainda, após trinta anos de serviço.

  

2.1.2 Constituição de 1988

2.1.2.1 Emenda Constitucional n. 3/93

  

            A Constituição de 1988 manteve a configuração não contributiva para as aposentadorias dos servidores públicos da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, bem como de suas autarquias e fundações públicas, conforme previa o texto original do caput do art. 40 da Lei Maior, in verbis:

Art. 40. O servidor será aposentado:

I - por invalidez permanente, sendo os proventos integrais quando decorrentes de acidente em serviço, moléstia profissional ou doença grave, contagiosa ou incurável, especificadas em lei, e proporcionais nos demais casos;

II - compulsoriamente, aos setenta anos de idade, com proventos proporcionais ao tempo de serviço;

III - voluntariamente:

a) aos trinta e cinco anos de serviço, se homem, e aos trinta, se mulher, com proventos integrais;

b) aos trinta anos de efetivo exercício em funções de magistério, se professor, e vinte e cinco, se professora, com proventos integrais;

c) aos trinta anos de serviço, se homem, e aos vinte e cinco, se mulher, com proventos proporcionais a esse tempo;

d) aos sessenta e cinco anos de idade, se homem, e aos sessenta, se mulher, com proventos proporcionais ao tempo de serviço.

§ 1º Lei complementar poderá estabelecer exceções ao disposto no inciso III, a e c, no caso de exercício de atividades consideradas penosas, insalubres ou perigosas.

§ 2º A lei disporá sobre a aposentadoria em cargos ou empregos temporários.

§ 3º O tempo de serviço público federal, estadual ou municipal será computado integralmente para os efeitos de aposentadoria e de disponibilidade.

§ 4º Os proventos da aposentadoria serão revistos, na mesma proporção e na mesma data, sempre que se modificar a remuneração dos servidores em atividade, sendo também estendidos aos inativos quaisquer benefícios ou vantagens posteriormente concedidos aos servidores em atividade, inclusive quando decorrentes da transformação ou reclassificação do cargo ou função em que se deu a aposentadoria, na forma da lei.

§ 5º O benefício da pensão por morte corresponderá à totalidade dos vencimentos ou proventos do servidor falecido, até o limite estabelecido em lei, observado o disposto no parágrafo anterior.[33]

            O caráter não contributivo que imperava no regime próprio da previdência social desde o séc. XIX começou a ser quebrantado com o advento da EC. 3, de 17 de março de 1993. Referida emenda fez inserir no art. 40 da CRFB/88 o § 6º, o qual previa que "As aposentadorias e pensões dos servidores públicos federais serão custeadas com recursos provenientes da União e das contribuições dos servidores, na forma da lei".[34]

            A EC 3/93 foi um divisor de águas histórico e trouxe a natureza contributiva ao regime próprio de previdência social. Nesse sentido:

[...] a obrigatoriedade de contribuição para o custeio de aposentadorias e pensões concedidas a estes, modificando-se uma tradição do direito pátrio, qual seja, a de que tais concessões, no âmbito do serviço público, eram graciosas, independentes de contribuição do ocupante do cargo. O caráter contributivo é estendido, assim, e a partir de então, a todos os indivíduos amparados por algum diploma garantidor de aposentadorias e pensões, à exceção - ainda - doas militares das Forças Armadas.[35]

           

            Conquanto se passou a adotar um caráter contributivo no regime próprio de previdência social para o acesso à aposentadoria, isso não significou uma alteração das regras de concessão de aposentadorias e pensões, o que importou em se manter a tendência de aumento do número desses benefícios.

 

 2.1.2.2 Emenda Constitucional n. 20/98 e Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2010

  

            O crescimento da demanda por aposentadorias e pensões foi sendo sentido pelo Tesouro Nacional, e em razão da finitude dessa fonte e da insuficiência das contribuições vertidas pelos servidores públicos, a função Executiva encaminhou ao Congresso Nacional proposta de emenda à Constituição, vindo esta a ser promulgada com diversas alterações, conformando-se na EC n. 20/1998.

            Na Mensagem n. 306, de 1995, do Poder Executivo, publicado no Diário do Oficial do Congresso Nacional[36], o então presidente da república Fernando Henrique Cardoso enviou àquela casa legislativa a proposta de emenda constitucional que "Modifica o sistema de previdência social, estabelece normas de transição e dá outras providências".

            Na exposição de motivos, afirmou-se que havia grande déficit entre os aportes de entrada e os benefícios pagos pelas diversas espécies de regimes próprios de previdência social, o que culminaria na falência do sistema. Trouxe-se assim a preocupação com a viabilidade do sistema previdenciário sob o ponto de vista financeiro e atuarial.

            Sobre esse ponto, Asseveram Carlos Alberto Pereira de Castro e João Batista Lazzari:

            Adotou-se, a partir da Emenda n. 20/98, a exigência de que os Regimes Previdenciários mantenham-se em “equilíbrio financeiro e atuarial”, o que poderá autorizar o legislador infraconstitucional a modificar critérios de cálculo de contribuições ao mesmo, de modo a manter a higidez do sistema.

            [...]

            Quebra-se, assim, a tradição secular de que a aposentadoria dos servidores públicos decorria de mero exercício do cargo, sendo desnecessária qualquer contribuição, ou seja, estabelecida como uma vantagem concedida em função de seu “tempo de serviço”; passa-se a ter a aposentadoria como benefício custeado não somente pelo Estado, exigindo-se a contrapartida prévia de contribuições a um Regime de Previdência Social, tal como no Regime Geral de Previdência Social.[37]

            O contexto para tal mudança adveio do cenário econômico desfavorável sentido a partir da década de 1980 e 1990, o qual colocava em risco a sustentabilidade da previdência pública. Nesse sentido, Marcelo Rocha Machado explica:

No processo de discussão sobre a sustentabilidade da previdência social pública, o sistema de repartição era apontado como um arranjo frágil e populista, contribuindo, decisivamente, para os problemas da economia dos Estados. O discurso oficial para angariar legitimidade perante a população, além de apontar o flagelo do déficit da previdência, era no sentido de denunciar a flagrante iniquidade no sistema previdenciário, pois as regras diferenciadas seriam mais favoráveis aos servidores públicos, provocando uma lógica redistributiva perversa e regressiva.[38]

            Ao final das discussões travadas, o texto final da EC n. 20/1998 trouxe nova alteração do art. 40 da Constituição, passando a vigorar com a seguinte redação:

Art. 40 - Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado regime de previdência de caráter contributivo, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste artigo.

§ 1º - Os servidores abrangidos pelo regime de previdência de que trata este artigo serão aposentados, calculados os seus proventos a partir dos valores fixados na forma do  § 3º:

I - por invalidez permanente, sendo os proventos proporcionais ao tempo de contribuição, exceto se decorrente de acidente em serviço, moléstia profissional ou doença grave, contagiosa ou incurável, especificadas em lei;

II - compulsoriamente, aos setenta anos de idade, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição;

III - voluntariamente, desde que cumprido tempo mínimo de dez anos de efetivo exercício no serviço público e cinco anos no cargo efetivo em que se dará a aposentadoria, observadas as seguintes condições:

a) sessenta anos de idade e trinta e cinco de contribuição, se homem, e cinqüenta e cinco anos de idade e trinta de contribuição, se mulher;

b) sessenta e cinco anos de idade, se homem, e sessenta anos de idade, se mulher, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição.

§ 2º - Os proventos de aposentadoria e as pensões, por ocasião de sua concessão, não poderão exceder a remuneração do respectivo servidor, no cargo efetivo em que se deu a aposentadoria ou que serviu de referência para a concessão da pensão.

§ 3º - Os proventos de aposentadoria, por ocasião da sua concessão, serão calculados com base na remuneração do servidor no cargo efetivo em que se der a aposentadoria e, na forma da lei, corresponderão à totalidade da remuneração.

§ 4º - É vedada a adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos abrangidos pelo regime de que trata este artigo, ressalvados os casos de atividades exercidas exclusivamente sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física, definidos em lei complementar.

§ 5º - Os requisitos de idade e de tempo de contribuição serão reduzidos em cinco anos, em relação ao disposto no  § 1º, III, "a", para o professor que comprove exclusivamente tempo de efetivo exercício das funções de magistério na educação infantil e no ensino fundamental e médio.

§ 6º - Ressalvadas as aposentadorias decorrentes dos cargos acumuláveis na forma desta Constituição, é vedada a percepção de mais de uma aposentadoria à conta do regime de previdência previsto neste artigo.

§ 7º - Lei disporá sobre a concessão do benefício da pensão por morte, que será igual ao valor dos proventos do servidor falecido ou ao valor dos proventos a que teria direito o servidor em atividade na data de seu falecimento, observado o disposto no  § 3º.

§ 8º - Observado o disposto no art. 37, XI, os proventos de aposentadoria e as pensões serão revistos na mesma proporção e na mesma data, sempre que se modificar a remuneração dos servidores em atividade, sendo também estendidos aos aposentados e aos pensionistas quaisquer benefícios ou vantagens posteriormente concedidos aos servidores em atividade, inclusive quando decorrentes da transformação ou reclassificação do cargo ou função em que se deu a aposentadoria ou que serviu de referência para a concessão da pensão, na forma da lei.

§ 9º - O tempo de contribuição federal, estadual ou municipal será contado para efeito de aposentadoria e o tempo de serviço correspondente para efeito de disponibilidade.

§ 10 - A lei não poderá estabelecer qualquer forma de contagem de tempo de contribuição fictício.

§ 11 - Aplica-se o limite fixado no art. 37, XI, à soma total dos proventos de inatividade, inclusive quando decorrentes da acumulação de cargos ou empregos públicos, bem como de outras atividades sujeitas a contribuição para o regime geral de previdência social, e ao montante resultante da adição de proventos de inatividade com remuneração de cargo acumulável na forma desta Constituição, cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração, e de cargo eletivo.

§ 12 - Além do disposto neste artigo, o regime de previdência dos servidores públicos titulares de cargo efetivo observará, no que couber, os requisitos e critérios fixados para o regime geral de previdência social.

§ 13 - Ao servidor ocupante, exclusivamente, de cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração bem como de outro cargo temporário ou de emprego público, aplica-se o regime geral de previdência social.

§ 14 - A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, desde que instituam regime de previdência complementar para os seus respectivos servidores titulares de cargo efetivo, poderão fixar, para o valor das aposentadorias e pensões a serem concedidas pelo regime de que trata este artigo, o limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201.

§ 15 - Observado o disposto no art. 202, lei complementar disporá sobre as normas gerais para a instituição de regime de previdência complementar pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, para atender aos seus respectivos servidores titulares de cargo efetivo.

§ 16 - Somente mediante sua prévia e expressa opção, o disposto nos  §§ 14 e 15 poderá ser aplicado ao servidor que tiver ingressado no serviço público até a data da publicação do ato de instituição do correspondente regime de previdência complementar.[39]

           

            Em linhas gerais, com a promulgação da emenda, a aposentadoria do servidor público passou a ser vista como uma questão de previdência. O sistema passou a ter um reforço do seu caráter contributivo e foco na preocupação com o equilíbrio financeiro e atuarial, proibindo-se a contagem de tempo fictício e aumentando-se a idade mínima e a carência para a aposentadoria.

            Com efeito, as regras para a aposentadoria se tornaram mais rígidas. Além da idade mínima, passou-se a exigir tempo de contribuição em substituição ao tempo de serviço, mais o cumprimento mínimo de atividade efetiva no serviço público e no cargo em que se daria a aposentadoria.

            Em síntese, nas palavras de Marcelo Rocha Machado:

            Naquilo que é relevante para a compreensão do dispositivo em foco, o Poder Executivo traçou uma estratégia de longo prazo para a reforma, constituída dos seguintes passos: a) acabar com o déficit do sistema previdenciário, priorizando o equilíbrio financeiro e atuarial, isto é, aumentando a vinculação entre as contribuições vertidas e as prestações pagas e tornando o benefício mais próximo dos aportes efetivamente recolhidos; b) unificar os regimes públicos de previdência; c) fortalecer a previdência privada como forma de aumentar a capacidade da poupança nacional, atraindo investimentos externos pelo aumento da confiança dos investidores na economia nacional.[40]

            Passado pouco mais de um mês da publicação da EC n. 20/98, o então presidente Fernando Henrique Cardoso apresentou ao legislativo o projeto de lei que viria a se tornar a Lei n. 9.783/99, publicada em 29 de janeiro de 1999. A lei trazia a incidência de contribuição previdenciária no patamar de 11% (onze por cento) sobre a totalidade da remuneração e da pensão do servidor público civil inativo e dos pensionistas dos três Poderes da União, para a manutenção dos regimes de previdência social próprios.

            Em data de 07 de junho de 1999, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil propôs ação direta de inconstitucionalidade contra a Lei n. 9.783/99. Na ADI n. 2.010/ 99, buscava-se o reconhecimento da inconstitucionalidade da contribuição para o custeio da previdência social dos servidores públicos inativos e dos pensionistas, além da declaração de invalidade jurídico-constitucional das alíquotas progressivas relativas à contribuição previdenciária devida tanto por inativos e pensionistas por servidores em atividade.

            O Plenário do STF, ao adentrar no pedido de medida cautelar proposto na ação direta, acabou por deferir de forma unânime a suspensão da eficácia das expressões "e inativo, e dos pensionistas" e "do provento ou da pensão", previstos no caput do art. 1º da Lei n. 9.783/99, ao mesmo tempo em que, também à unanimidade, suspendeu o art. 3º e seu parágrafo, da mesmo diploma legal, sustando, ainda, por maioria de votos, a eficácia do art. 2º e parágrafo único da lei.

            Abaixo, colacionam-se os dispositivos mencionados:

Art. 1o A contribuição social do servidor público civil, ativo e inativo, e dos pensionistas dos três Poderes da União, para a manutenção do regime de previdência social dos seus servidores, será de onze por cento, incidente sobre a totalidade da remuneração de contribuição, do provento ou da pensão. (Grifou-se)

[...]

Art. 3o Não incidirá contribuição sobre a parcela de até R$ 600,00 (seiscentos reais) do provento ou pensão dos que forem servidores inativos ou pensionistas.

Parágrafo único. Será de R$ 3.000,00 (três mil reais) o valor da parcela de que trata o caput, quando se tratar de servidor inativo ou pensionista com mais de setenta anos de idade ou de servidor aposentado por motivo de invalidez.

[...]

Art. 2o A contribuição de que trata o artigo anterior fica acrescida dos seguintes adicionais:

[...]

Parágrafo único. Os adicionais de que trata o caput têm caráter temporário, vigorando até 31 de dezembro de 2002.[41]

            A conclusão de que a Constituição não admitia a instituição da contribuição de seguridade social sobre inativos e pensionistas fundamentou-se no sentido de que a Lei n. 9.783/99 extrapolou os limites semânticos do caput do art. 40 da CRFB/88, o qual tão somente admitia, mesmo com a então nova redação da EC n. 20/98, a exação de servidores titulares de cargos efetivos.

            Ressaltou-se que o Congresso Nacional se omitiu de forma consciente quando da reforma previdenciária advinda pela EC n. 20/98, de modo que deixou de fixar a necessária matriz constitucional para possibilitar a incidência da tributação sobre o valor das aposentadorias e das pensões a partir da promulgação desta emenda.

            Levantou-se também, para se fundamentar a inconstitucionalidade da tributação das aposentadorias e pensões, que não havia causa suficiente para se justificar a incidência da contribuição social, eis que no regime de previdência - de caráter contributivo - deve haver correlação entre custo e benefício (Princípio da Contributividade e da Retributividade Direta, art. 195, § 5º, da CRFB/88). Vale dizer, não pode haver contribuição sem benefício, sendo o inverso também verdadeiro. Abaixo colaciona-se as partes que interessam ao presente trabalho:

[...] A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA NÃO ADMITE A INSTITUIÇÃO DA CONTRIBUIÇÃO DE SEGURIDADE SOCIAL SOBRE INATIVOS E PENSIONISTAS DA UNIÃO. - A Lei nº 9.783/99, ao dispor sobre a contribuição de seguridade social relativamente a pensionistas e a servidores inativos da União, regulou, indevidamente, matéria não autorizada pelo texto da Carta Política, eis que, não obstante as substanciais modificações introduzidas pela EC nº 20/98 no regime de previdência dos servidores públicos, o Congresso Nacional absteve-se, conscientemente, no contexto da reforma do modelo previdenciário, de fixar a necessária matriz constitucional, cuja instituição se revelava indispensável para legitimar, em bases válidas, a criação e a incidência dessa exação tributária sobre o valor das aposentadorias e das pensões. O regime de previdência de caráter contributivo, a que se refere o art. 40, caput, da Constituição, na redação dada pela EC nº 20/98, foi instituído, unicamente, em relação "Aos servidores titulares de cargos efetivos...", inexistindo, desse modo, qualquer possibilidade jurídico-constitucional de se atribuir, a inativos e a pensionistas da União, a condição de contribuintes da exação prevista na Lei nº 9.783/99. Interpretação do art. 40, §§ 8º e 12, c/c o art. 195, II, da Constituição, todos com a redação que lhes deu a EC nº 20/98. DEBATES PARLAMENTARES E INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO. - O argumento histórico, no processo de interpretação constitucional, não se reveste de caráter absoluto. Qualifica-se, no entanto, como expressivo elemento de útil indagação das circunstâncias que motivaram a elaboração de determinada norma inscrita na Constituição, permitindo o conhecimento das razões que levaram o constituinte a acolher ou a rejeitar as propostas que lhe foram submetidas. Doutrina. - O registro histórico dos debates parlamentares, em torno da proposta que resultou na Emenda Constitucional nº 20/98 (PEC nº 33/95), revela-se extremamente importante na constatação de que a única base constitucional - que poderia viabilizar a cobrança, relativamente aos inativos e aos pensionistas da União, da contribuição de seguridade social - foi conscientemente excluída do texto, por iniciativa dos próprios Líderes dos Partidos Políticos que dão sustentação parlamentar ao Governo, na Câmara dos Deputados (Comunicado Parlamentar publicado no Diário da Câmara dos Deputados, p. 04110, edição de 12/2/98). O destaque supressivo, patrocinado por esses Líderes partidários, excluiu, do Substitutivo aprovado pelo Senado Federal (PEC nº 33/95), a cláusula destinada a introduzir, no texto da Constituição, a necessária previsão de cobrança, aos pensionistas e aos servidores inativos, da contribuição de seguridade social. O REGIME CONTRIBUTIVO É, POR ESSÊNCIA, UM REGIME DE CARÁTER EMINENTEMENTE RETRIBUTIVO. A QUESTÃO DO EQUILÍBRIO ATUARIAL (CF, ART. 195, § 5º). CONTRIBUIÇÃO DE SEGURIDADE SOCIAL SOBRE PENSÕES E PROVENTOS: AUSÊNCIA DE CAUSA SUFICIENTE. - Sem causa suficiente, não se justifica a instituição (ou a majoração) da contribuição de seguridade social, pois, no regime de previdência de caráter contributivo, deve haver, necessariamente, correlação entre custo e benefício. A existência de estrita vinculação causal entre contribuição e benefício põe em evidência a correção da fórmula segundo a qual não pode haver contribuição sem benefício, nem benefício sem contribuição. Doutrina. Precedente do STF. [...][42]                  

            Ocorre que, antes mesmo do término do ADI n. 2.010, sobreveio fato juridicamente relevante que provocou a prejudicialidade integral desta ação direta. No ano de 2003, o então presidente da república, Luiz Inácio Lula da Silva, encaminhou ao Congresso Nacional proposta de emenda à Constituição que deu ensejo à promulgação da EC n. 41/03.

            A nova emenda novamente alterou o art. 40 da CRFB/88, e com isso alterou a norma de parâmetro utilizada na ADI n. 2.010 (redação do art. 40 da Constituição dada pela EC. n. 20/98) que serviu de fundamento para a declaração, em medida cautelar, da inconstitucionalidade da Lei 9.783/99. Com a alteração substancial do texto paradigma de controle e a perda da vigência, julgou-se extinto o processo de controle abstrato de constitucionalidade, em virtude da perda superveniente de seu objeto.

 2.1.2.3 A Emenda Constitucional n. 41/03 e a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.105

 

            O que se viu, com o advento da EC 41/03, foi a tentativa dos poderes constituídos em incorporar os fundamentos delineados na ADI n. 2.010 para superar os obstáculos até então emanados da jurisprudência do STF para a incidência de contribuição social sobre os proventos e pensões dos servidores públicos inativos pensionistas.

            Tanto é assim que se incorporou na nova redação do art. 40 da CRFB a expressão "dos servidores ativos e inativos e dos pensionistas", o que supriria a alegação do STF de ausência de matriz constitucional para a exação. Com a inclusão desta expressão, supriu-se o argumento de ausência de legitimidade e validade da criação e incidência da contribuição social.

            Como se disse, mais uma vez, o art. 40 da Constituição foi alterado para alterar as regras de aposentadorias e pensões dos aposentados e pensionistas, estendendo-se a incidência da contribuição previdenciária também sobre os proventos destes. Também houve um reforço na ideia de solidariedade do regime próprio com a adição desta palavra na nova redação do art. 40 da CRFB, in verbis:

Art. 40. Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado regime de previdência de caráter contributivo e solidário, mediante contribuição do respectivo ente público, dos servidores ativos e inativos e dos pensionistas, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste artigo.

§ 1º Os servidores abrangidos pelo regime de previdência de que trata este artigo serão aposentados, calculados os seus proventos a partir dos valores fixados na forma dos §§ 3º e 17:

I - por invalidez permanente, sendo os proventos proporcionais ao tempo de contribuição, exceto se decorrente de acidente em serviço, moléstia profissional ou doença grave, contagiosa ou incurável, na forma da lei;

[...]

§ 3º Para o cálculo dos proventos de aposentadoria, por ocasião da sua concessão, serão consideradas as remunerações utilizadas como base para as contribuições do servidor aos regimes de previdência de que tratam este artigo e o art. 201, na forma da lei.

[...]

§ 7º Lei disporá sobre a concessão do benefício de pensão por morte, que será igual:

I - ao valor da totalidade dos proventos do servidor falecido, até o limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201, acrescido de setenta por cento da parcela excedente a este limite, caso aposentado à data do óbito; ou

II - ao valor da totalidade da remuneração do servidor no cargo efetivo em que se deu o falecimento, até o limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201, acrescido de setenta por cento da parcela excedente a este limite, caso em atividade na data do óbito.

§ 8º É assegurado o reajustamento dos benefícios para preservar-lhes, em caráter permanente, o valor real, conforme critérios estabelecidos em lei.

[...]

§ 15. O regime de previdência complementar de que trata o § 14 será instituído por lei de iniciativa do respectivo Poder Executivo, observado o disposto no art. 202 e seus parágrafos, no que couber, por intermédio de entidades fechadas de previdência complementar, de natureza pública, que oferecerão aos respectivos participantes planos de benefícios somente na modalidade de contribuição definida.

[...]

§ 17. Todos os valores de remuneração considerados para o cálculo do benefício previsto no § 3° serão devidamente atualizados, na forma da lei.

[...]

§ 18. Incidirá contribuição sobre os proventos de aposentadorias e pensões concedidas pelo regime de que trata este artigo que superem o limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201, com percentual igual ao estabelecido para os servidores titulares de cargos efetivos.

[...]

§ 19. O servidor de que trata este artigo que tenha completado as exigências para aposentadoria voluntária estabelecidas no § 1º, III, a, e que opte por permanecer em atividade fará jus a um abono de permanência equivalente ao valor da sua contribuição previdenciária até completar as exigências para aposentadoria compulsória contidas no § 1º, II.

[...]

§ 20. Fica vedada a existência de mais de um regime próprio de previdência social para os servidores titulares de cargos efetivos, e de mais de uma unidade gestora do respectivo regime em cada ente estatal, ressalvado o disposto no art. 142, § 3º, X.[43]

            Em suma, a emenda inovou ao a) por fim à integralidade, passando os benefícios a serem calculados pelas médias das remunerações usadas como base de cálculo para o aporte das contribuições; b) por fim à paridade; c) reduzir o valor da pensão paga aos dependentes de servidor que recebia acima do teto do regime geral; d) possibilitar a instituição de um regime complementar obrigatório, por meio de entidade fechadas de natureza pública, para novos servidores, por lei ordinária; e) instituição de contribuição dos inativos e pensionistas; f) instituir o abono permanência.[44]

            O advento da EC n. 41/03 provocou a propositura, pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP), de ação direta de inconstitucionalidade tombada sob o n. 3.105-8/DF, na qual se pedia a declaração de inconstitucionalidade do art. 4º da nova emenda, in verbis:

Art. 4º Os servidores inativos e os pensionistas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, em gozo de benefícios na data de publicação desta Emenda, bem como os alcançados pelo disposto no seu art. 3º, contribuirão para o custeio do regime de que trata o art. 40 da Constituição Federal com percentual igual ao estabelecido para os servidores titulares de cargos efetivos.

Parágrafo único. A contribuição previdenciária a que se refere o caput incidirá apenas sobre a parcela dos proventos e das pensões que supere:

I - cinqüenta por cento do limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201 da Constituição Federal, para os servidores inativos e os pensionistas dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;

II - sessenta por cento do limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201 da Constituição Federal, para os servidores inativos e os pensionistas da União.[45]

           

            Em síntese  e conforme se vislumbra do relatório de lavra da relatora Min. Ellen Gracie, argumentava-se que os servidores públicos aposentados e os que preenchiam as exigências de aposentação antes da vigência da EC n. 41/03 não poderiam ser submetidos à exação tributária, em razão de que ao se aposentarem e ou reunirem as condições para tanto, incorporar-se-ia ao seu patrimônio jurídico o direito de não mais pagarem contribuição previdenciária.

            Dando sentido amplo à palavra "lei" do art. 5º, XXXVI da CRFB/88, o autor afirmou que por consequência houve violação à cláusula pétrea do art. 60, § 4º, IV da Constituição, eis que "não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais", de modo que nem por emenda à Constituição seria possível se atingir o direito adquirido e o ato jurídico perfeito.

            Também, afirmou o autor que houve como consequência ofensa ao princípio da irredutibilidade de vencimentos e proventos.

            O Congresso Nacional, por meio do Advogado-Geral do Senado Federal, alegou que a emenda trouxe um regime mais adequado a fim de reduzir as desigualdades históricas entre as previdências públicas e privadas, notadamente em razão do tardio caráter contributivo daquela.

            Também refutou a tese de se invocar o direito adquirido como obstáculo à implantação de um novo modelo jurídico previdenciário aprovado por emenda constitucional, realçando que por emenda constitucional poder-se-ia alterar o direito adquirido, já que o art. 5º, XXXVI da Constituição se limitaria à norma infraconstitucional de espécie ordinária, e que, para além disso, em razão da eficácia imediata própria da emenda constitucional, não haveria óbice a sua incidência a situações presentes e futuras ou sobre efeitos futuros de situações consolidadas no passado. Ademais, a alteração promovida pela emenda não atingiu a previsão geral do direito adquirido.

            Por fim, afirmou que o princípio da irredutibilidade de vencimentos não poderia ser invocado para causar imunidade tributária de remunerações e proventos dos inativos e pensionistas, justamente porque estes não são imunes à incidência de tributos, da qual a contribuição previdenciária é espécie.

            A Procuradoria-Geral da República se manifestou, e quanto a tese de ofensa ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito, entendeu que nem mesmo por emenda constitucional se poderia prejudicar tais direitos fundamentais, vale dizer, a EC n. 41/03 não poderia fazer incidir contribuição previdenciária sobre os proventos daqueles que, anteriormente à nova emenda, já se encontrassem aposentados, fossem pensionistas, ou detentores dos requisitos para a aposentadoria. Também afirmou que esse óbice também deccore da necessidade de preservação da segurança jurídica.

            Ademais, o Ministério Pùblico Federal acenou a importância que a nova emenda estaria em descompasso com o princípio da contributividade e da retributividade direta/contrapartida, eis que o Poder Público somente pode impor uma nova contribuição caso crie ou majore um benefício que o justifique.

            Uma a uma, as teses acima foram analisadas pelo STF. O resultado final do julgamento realizado em 18 de agosto de 2004 refutou a tese veiculada pelo autor de que a incidência de contribuição previdenciária afetaria o princípio da irredutibilidade de vencimentos, notadamente sob o fundamento de que não existe no ordenamento jurídico norma expressa nem sistemática de imunidade tributária absoluta.

            Como se vê da ADI 3.105, o STF alterou substancialmente um de seus entendimentos observados anteriormente na ADI 2.010 utilizados para se declarar inconstitucional, ainda que em medida cautelar, a exação dos servidores inativos e pensionistas. Nesta primeira entendeu-se que os princípios da contributividade e da retributividade direta/regra da contrapartida, observados com mais rigor no art. 195, § 5º da CRFB/88, impedia, numa interpretação a contrário senso, a majoração da fonte de custeio sem a correspondente majoração/criação de benefício previdenciário.

            Como consta na citação acima do acórdão proferido na ADI 2.010:

            Sem causa suficiente, não se justifica a instituição (ou majoração) da contribuição de seguridade social, pois, no regime de previdência de caráter contributivo, deve haver, necessariamente, correlação entre custo e benefício. A existência de estrita vinculação causal entre contribuição e benefício põe em evidência a correção da fórmula segundo a qual não pode haver contribuição sem benefício, nem benefício sem contribuição. [...][46]

           

            A mudança se deu, decisivamente, sob o fundamento de que a exação de aposentados e pensionistas seria permitida pelo princípio da solidariedade, então introduzido ao art. 40 da Constituição pela EC n. 41/03, de modo que tal incidência se adéqua à busca pela solvabilidade do sistema previdenciário próprio e ao equilíbrio financeiro-atuarial.

            Utilizando esse raciocínio, o STF reduziu o alcance interpretativo do art. 195, § 5º da Constituição, agora para afirmar que o princípio da contributividade e da retributividade direta/regra da contrapartida teria apenas o viés de impedir o aumento de benefícios sem a correspondente fonte de custeio. Sem o duplo viés que antes se extraía, significa que o Estado pode majorar alíquotas e prever novas hipóteses de incidência de contribuição previdenciária de forma ilimitada, pois justificada pela necessidade de solvabilidade e solidariedade.

            Abaixo, transcreve-se as ementas do julgado:

EMENTAS: 1. Inconstitucionalidade. Seguridade social. Servidor público. Vencimentos. Proventos de aposentadoria e pensões. Sujeição à incidência de contribuição previdenciária. Ofensa a direito adquirido no ato de aposentadoria. Não ocorrência. Contribuição social. Exigência patrimonial de natureza tributária. Inexistência de norma de imunidade tributária absoluta. Emenda Constitucional nº 41/2003 (art. 4º, caput). Regra não retroativa. Incidência sobre fatos geradores ocorridos depois do início de sua vigência. Precedentes da Corte. Inteligência dos arts. 5º, XXXVI, 146, III, 149, 150, I e III, 194, 195, caput, II e § 6º, da CF, e art. 4º, caput, da EC nº 41/2003. No ordenamento jurídico vigente, não há norma, expressa nem sistemática, que atribua à condição jurídico-subjetiva da aposentadoria de servidor público o efeito de lhe gerar direito subjetivo como poder de subtrair ad aeternum a percepção dos respectivos proventos e pensões à incidência de lei tributária que, anterior ou ulterior, os submeta à incidência de contribuição previdencial. Noutras palavras, não há, em nosso ordenamento, nenhuma norma jurídica válida que, como efeito específico do fato jurídico da aposentadoria, lhe imunize os proventos e as pensões, de modo absoluto, à tributação de ordem constitucional, qualquer que seja a modalidade do tributo eleito, donde não haver, a respeito, direito adquirido com o aposentamento. 2. Inconstitucionalidade. Ação direta. Seguridade social. Servidor público. Vencimentos. Proventos de aposentadoria e pensões. Sujeição à incidência de contribuição previdenciária, por força de Emenda Constitucional. Ofensa a outros direitos e garantias individuais. Não ocorrência. Contribuição social. Exigência patrimonial de natureza tributária. Inexistência de norma de imunidade tributária absoluta. Regra não retroativa. Instrumento de atuação do Estado na área da previdência social. Obediência aos princípios da solidariedade e do equilíbrio financeiro e atuarial, bem como aos objetivos constitucionais de universalidade, equidade na forma de participação no custeio e diversidade da base de financiamento. Ação julgada improcedente em relação ao art. 4º, caput, da EC nº 41/2003. Votos vencidos. Aplicação dos arts. 149, caput, 150, I e III, 194, 195, caput, II e § 6º, e 201, caput, da CF. Não é inconstitucional o art. 4º, caput, da Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003, que instituiu contribuição previdenciária sobre os proventos de aposentadoria e as pensões dos servidores públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações. 3. Inconstitucionalidade. Ação direta. Emenda Constitucional (EC nº 41/2003, art. 4º, § únic, I e II). Servidor público. Vencimentos. Proventos de aposentadoria e pensões. Sujeição à incidência de contribuição previdenciária. Bases de cálculo diferenciadas. Arbitrariedade. Tratamento discriminatório entre servidores e pensionistas da União, de um lado, e servidores e pensionistas dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, de outro. Ofensa ao princípio constitucional da isonomia tributária, que é particularização do princípio fundamental da igualdade. Ação julgada procedente para declarar inconstitucionais as expressões "cinquenta por cento do" e "sessenta por cento do", constante do art. 4º, § único, I e II, da EC nº 41/2003. Aplicação dos arts. 145, § 1º, e 150, II, cc. art. 5º, caput e § 1º, e 60, § 4º, IV, da CF, com restabelecimento do caráter geral da regra do art. 40, § 18. São inconstitucionais as expressões "cinqüenta por cento do" e "sessenta por cento do", constantes do § único, incisos I e II, do art. 4º da Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003, e tal pronúncia restabelece o caráter geral da regra do art. 40, § 18, da Constituição da República, com a redação dada por essa mesma Emenda. (Grifou--se)[47]

            Dessa feita, desde a promulgação da EC n. 41/03, incide a contribuição previdenciária sobre os proventos de aposentadoria e pensões concedidas pelo regime próprio de previdência que superem o valor máximo estabelecido pelo regime geral de previdência social (art. 201 da CRFB/88), no mesmo percentual dos servidores titulares de cargos efetivos, conforme o disposto no art. 40, § 18, da Constituição, acima transcrito. Para ficar mais claro, somente incide a contribuição previdenciária sobre a respectiva parcela que ultrapassar o maior benefício pago pelo regime geral de previdência.

            Chegando ao fim deste capítulo, é preciso que se afirme que as mudanças realizadas no sistema previdenciário decorrem mesmo das mudanças econômicas sentidas pela comunidade política. Cite-se, por exemplo, que a EC n. 20/98 teve como fator preponderante o cenário econômico desfavorável das décadas de 1980 e 1990, sendo que a própria reforma específica à previdência própria tratada na EC n. 41/03 foi motivada pela alegada insolvabilidade do sistema.[48]

            Há uma constante na questão previdenciária, podendo ela ser identificada como uma queda de braço entre a tutela previdenciária e a situação econômica vivenciada. O achatamento dos benefícios, a incidência de contribuições previdenciárias onde antes não existiam e a exigência de novos requisitos exemplificam os efeitos dessa inegável interrelação.

            O que se discute não é a ingerência dos fatores econômicos sobre a solvabilidade do sistema próprio previdenciário, mas sim a iniquidade da tomada de certas medidas para se assegurar a solvabilidade do sistema fundamentada em razões que não encontram amparo na própria sistemática previdenciária constitucional.

3 ASPECTOS DA DINÂMICA NORMATIVO-CONSTITUCIONAL DO REGIME PRÓPRIO DE PREVIDÊNCIA SOCIAL EXTRAÍDOS DA CONSTITUIÇÃO DE 1988

3.1 Fundamento, sistemas financeiros e custeio do Regime Próprio de Previdência social

  

         Como se viu no capítulo anterior, na Constiutção atual o regime próprio de previdência social está inserido no art. 40 e as leis 9.717/98 e 10.887/04 compõe as normas de observância obrigatória por todos os entes federativos, trazendo um tratamento previdenciário diferenciado entre os servidores públicos e os demais trabalhadores.

            Marcelo Machado Rocha explica que a diferença de tratamento depende de diversos fatores:

         A definição da estruturação da previdência social em um país reclama uma análise adequada das condições particulares decorrentes de fatores econômicos, sociais, políticos e ideológicos, os quais contribuem de maneira decisiva na sua implementação e efetivação. Como anota David Lindeman, ao examinar como os servidores públicos são tratados previdenciariamente, ao redor do mundo, países grandes ou federativos tendem a ter regimes previdenciários separados para os seus servidores.[49]

            Por sua vez, a diferença de tratamento justifica-se pelo interesse público, conforme afirma Heloisa Hernandez Derzi:

            A estabilidade, as regras de disponibilidade, a paridade de vencimentos exemplificam a peculiar situação laboral do funcionário público. Essa é a chamada natureza estatutária, não contratual, em que as partes não podem livremente negociar as condições; antes, aderem a um regime imposto por lei, voltando para o atendimento primordial do chamado interesse público. Por conta desse regime peculiar, a aposentadoria de valor integral aos servidores inativos foi concedida como uma maneira de "compensá-los" pela dedicação exclusiva à causa pública durante toda sua vida laboral.[50]

 

            É certo que a aposentadoria de valor integral deixou de existir com a reforma previdenciária trazida da EC n. 41/03, mas o sentido de tratamento diferenciado sobrevive na Constituição atual.

            Para fazer valer o cumprimento do mister de assegurar o direitos fundamental à previdência, o regime próprio de previdência social - que pode ser entendido como sendo um "o conjunto de normas que disciplinam as relações jurídica entre a instituição responsável pela concessão e manutenção das prestações previdenciárias e o grupo de sujeitos amparados (beneficiários)"[51] - pode adotar diferentes sistemas financeiros. Existem o de capitalização, o de repartição de capitais de cobertura e o de repartição simples.[52] Neste último, adotado pela maioria dos regimes próprios, "existe alto grau de solidariedade entre os contribuintes e beneficiários. O dinheiro vertido pelos segurados em atividade será utilizado para o custeio das aposentadorias e pensões pagas na atualidade".[53]

            Vale dizer, as gerações presentes financiam os benefícios pagos às gerações futuras e assim por diante. Disso se extrai que o sistema tem como marca principal a solidariedade, em razão da própria relação de gerações passadas e futuras, uma assegurando o futuro da outra.

            Para o custeio do regime próprio, o art. 40 da CRFB/88 estabelece a contribuição do ente público (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) para os respectivos regimes - que não será inferior ao valor da contribuição do servidor ativo e nem superior ao dobro desta contribuição[54] -, bem como a contribuição dos servidores ativos e dos inativos e pensionistas (estes últimos com a inovação da EC 41/03).

           

3.2 Os princípios essenciais do regime próprio de previdência social

3.2.1 Solidariedade

  

          Como se verifica do art. 3º, I, da CRFB/88, a solidariedade se traduz em objetivo fundamental da República Federativa do Brasil. Referido princípio baliza as diretrizes de todo sistema securitário nacional e justifica a ações voltadas para os direitos sociais de segunda dimensão. Encontra-se plasmado em todo o Título VIII da Constituição e atua como uma diretriz fundamental para a proteção social desempenhada pela assistência social, saúde e previdência social.

            Embora não expresso no parágrafo único do art. 194 da Carta Maior, verifica-se que o princípio da solidariedade social (art. 3º, I, da CRFB/88) encontra sua expressão nos princípios essenciais da previdência social, ou seja, universalidade, proteção contra os riscos sociais, obrigatoriedade, equilíbrio financeiro e atuarial e irredutibilidade do valor real dos benefícios.

            No tratamento específico do regime próprio de previdência social, a solidariedade é expressa no caput do art. 40 por força da EC 41/03, sendo que o parágrafo único do art. 194 da Constituição traz em si princípios/regras essenciais comuns que se aplicam também sobre o regime próprio de previdência social, por expressa disposição do art. 40, § 12 da CRFB/88. Nessa senda e a título de exemplo, também se aplica ao regime próprio de previdência a regra da contrapartida (art. 195, § 5º da Constituição), eis que insitamente relacionada com os princípio do equilíbrio financeiro e atuarial.

            Ressaltando a importância da solidariedade, aponta Wladimir Novaes Martinez que ela "é essencial, e, exatamente por sua posição nuclear, esse preceito sustentáculo distingue-se dos básicos e técnicos, sobrepairando como diretriz elevada. Ausente, será impossível organizar a proteção social".[55]

            Carlos Alberto Pereira de Castro e João Batista Lazzari vão afirmar que:

            Assim, como a noção de bem-estar coletivo repousa na possibilidade de proteção de todos os membros da coletividade, somente a partir da ação coletiva de repartir os frutos do trabalho, com a cotização de cada um em prol do todo, permite a subsistência de um sistema previdenciário.[56]

            Não é errôneo se afirmar que a doutrina converge em apontar a solidariedade como princípio estruturante do sistema previdenciário, conforme expressa Daniel Machado Rocha:

            O princípio portador das diretrizes essenciais da seguridade e da previdência social, como, aliás, de todos os direitos sociais, é o da solidariedade, o qual se constitui no seu eixo axiológico, podendo ser considerado como princípio estruturante de nosso sistema previdenciário. Esse princípio revela-se apto a catalisar a articulação entre o Estado e a sociedade, operando como verdadeira bússola condutora da nau da previdência social no revoltoso mar da necessidade social. [57]

            Como se viu nas linhas anteriores, com o advento da EC n. 41/03 - e consequente inserção do caráter contributivo e solidário no art. 40 da CRFB/88 - e do julgamento da ADI n. 3.105, o princípio da solidariedade passou a justificar a exação tributária dos servidores aposentados e dos pensionistas.

            Também se viu nas linhas acima volvidas que o caráter contributivo já havia sido inserido pela EC n. 20/98 no mesmo artigo e que a solidariedade é ínsita à própria existência do regime próprio de previdência social, eis que a previdência se traduz na ajuda de todos para enfrentar os riscos da vida.

                     

3.2.2 A regra da contrapartida, o princípio da retributividade estrita, a precedência da fonte de custeio, o princípio do equilíbrio financeiro e atuarial e contributividade e retributividade do sistema

           

            Mas não apenas o princípio da solidariedade informa o regime próprio de previdência social. Embora estruturante, ele não se presta a se sobrepor sobre outros também previstos pela Constituição. Por isso, é lícito afirmar, nas palavras de Daniel Machado Rocha, que "cada princípio apresenta uma tessitura própria, o que não impede uma atuação conjunta e coordenada. Consoante preleciona Canaris, os princípio irradiam o seu conteúdo de sentido somente por meio de um processo dialógico de complementação e restrição recíprocas".[58]

            Se os princípios se dialogam para informar o sistema jurídico, não se pode extrair uma solução para determinado caso na qual um princípio se sobrepõe a outro. Todos eles formam um conjunto que informa a sistemática normativo, de modo que sobrepor-lhes uns aos outros acaba por impedir o projeto político definido na Carta Magna. Trata-se, pois, como referido no capítulo 2, da necessidade de se garantir a integridade do direito e a se dar segurança jurídica das relações sociais.

            Dessa feita, também dialoga com o princípio da solidariedade o princípio da retributividade estrita/contrapartida/precedência da fonte de custeio, previsto no art. 195, § 5º, da CRFB/88 e que fora reiteradamente analisada pelo STF em diversas oportunidades ao longo dos anos que antecederam ao advento da EC n. 41/03.

            Por tal princípio/regra, nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total. Sua importância é nítida, pois impede que o gestor gaste mais do que possa pagar, evitando-se a ruína do sistema. Como assinalam Carlos Alberto Pereira e João Batista Lazzari:

           

         A observância deste princípio é de fundamental importância para que a Previdência Social pública se mantenha em condições de conceder as prestações previstas, sob pena de, em curto espaço de tempo, estarem os segurados definitivamente sujeitos à privatização de tal atividade, em face da incapacidade do Poder Público em gerar mais receita para cobertura de déficits.[59]

           

            Por sua vez, Wagner Balera contribui afirmando que:

            Há necessidade de que primeiro exista a fonte de custeio para depois ser criado o benefício. Neste passo, a criação, majoração ou extensão de benefício está condicionada à existência da correspondente fonte, que concorra para o custeio total. Com isso, quer o constituinte proteger o equilíbrio financeiro do sistema, elemento sem o qual não será possível o cumprimento das finalidades da seguridade social. Torna-se necessária a ampla avaliação técnica e atuarial do sistema.[60]

            Por outro lado, tal princípio também possui outra faceta, que deflui do diálogo com o princípio do equilíbrio financeiro e atuarial. Em suma, em razão do caráter retributivo do sistema contributivo previdenciário, não se pode instituir ou majorar contribuição de seguridade social sem correspondente contrapartida ao segurado. Essa tese da ausência da causa suficiente foi amplamente discutida na ADI 2.010, servindo também para refutar a constitucionalidade da previsão de exação dos inativos e pensionistas da Lei n. 9.783/99.

            Fábio Zambitte Ibrahim também afirma essa segunda vertente:

            Este princípio visa, inicialmente, ao equilíbrio atuarial e financeiro do sistema securitário. A criação do benefício, ou mesmo a mera extensão de prestação já existente, somente será feita com a previsão da receita necessária. Por outro lado, impõe que incrementos de contribuições, a priori, tenham correspondente ganho no plano de benefícios. O benefício demanda o custeio, assim como a contribuição exige algum benefício.[61]

            Como se disse, o regra da contrapartida tem íntima relação com os princípios do equilíbrio financeiro e atuarial, também previstos no art. 40, caput da CRFB/88. A dupla faceta do princípio/regra da contrapartida se justifica porque o desequilíbrio econômico-financeiro ocorre tanto com a falta de recursos para o cumprimento dos objetivos quanto pelo excesso de recursos. Nesse sentido aponta Wladimir Novaes Martinez, ao dizer que "plano desequilibrado é aquele com déficit ou superávit, ambos reclamando providências do administrador, a serem equacionadas imediatamente".[62]

            Ainda, o autor explica que:

            Por equilíbrio financeiro, entende-se literalmente que as reservar matemáticas efetivamente constituídas sejam suficientes para garantir os ônus jurídicos das obrigações assumidas, presentes e futuras.

            Equilíbrio atuarial compreende as ideias matemáticas (v.g. taxa de contribuição, experiência de risco, expectativa de média de vida, tábuas biométricas, margem de erro, variações e de massa etc) e as relações biométricas que, de igual modo, tornem possível estimar as obrigações pecuniárias em face do comportamento da massa e o nível da contribuição e do benefício.[63]

            Daniel Machado da Rocha explica a necessidade do equilíbrio financeiro e atuarial:

            A previdência social, para atingir suas nobres finalidades, necessita ser organizada sobre bases econômicas sólidas, de forma que as despesas com o pagamento das prestações e a administração do sistema sejam suportadas pelo montante arrecadado. Sendo a previdência social um método da gestão da economia coletiva destinada ao enfrentamento dos riscos sociais, a ideia reitora do princípio do equilíbrio financeiro e atuarial é a de que as prestações previdenciárias contempladas pelo sistema de proteção possam ser efetivamente honradas, no presente e no futuro, em razão de o sistema de financiamento e suas fontes estarem dimensionados de forma a permitir o cumprimento dos compromissos assumidos ao longo do tempo.[64]

           

            Como se vê, o princípio do equilíbrio financeiro e atuarial também é composto de duas facetas. A primeira se refere ao equilíbrio do sistema como um todo e a segunda em relação ao equilíbrio do das prestações em face dos aportes vertidos.

            Não são, portanto, a mesma coisa. Num sistema de repartição simples[65], o equilíbrio financeiro ocorre quando o total de benefícios que estão sendo pagos fica aquém das receitas das contribuições vertidas num período. Por sua vez, o equilíbrio atuarial decorre da suficiência das contribuições de um indivíduo a fim de possibilitar o pagamento dos seus próprios benefícios.[66]

            Antes da EC n. 41/03, somente dos servidores ativos se tomava a exação previdenciária, vale dizer, o equilíbrio financeiro e atuarial era garantido as suas custas. O cálculo final da contribuição previdenciária servia para assegurar o pagamento de seus futuros benefícios (equilíbrio atuarial) e sua contribuição para os demais riscos da vida de terceiros - dimensão maior dos riscos assegurados pelos valores vertidos - (equilíbrio financeiro).

            Havia e há, portanto, causa para a exação previdenciária dos servidores ativos, notadamente pelo caráter contributivo e retributivo do sistema previdenciário. Trata-se, pois, de questão lógica que sempre informou o sistema e que impedia a exação dos inativos e pensionistas, eis que já haviam efetuado a contribuição para os benefícios futuros.  

            Notório pois que o duplo viés da contrapartida visa a garantia constante do equilíbrio financeiro e atuarial do sistema previdenciário de forma equânime, cujo ônus era distribuído a partir da lógica da retributividade.

            Ainda, a segunda face do regra da contrapartida tem por escopo sobretudo limitar a voracidade da atividade tributária do Estado. Não pode o Estado se valer do manto genérico da solidariedade do sistema - como o fez na EC n. 41/03 - para instituir e majorar, ao seu bel prazer, as contribuições previdenciárias. Estas estão vinculadas ao equilíbrio financeiro e atuarial, mas também ao caráter retributivo do sistema.

            Em outras palavras, a segunda face do princípio demanda do Estado uma gestão de qualidade dos recursos pagos ao sistema por aqueles que ainda não verteram o suficiente para se tornarem beneficiários, ao mesmo tempo em que impede - vez que sem causa - a cobrança de aportes daqueles que não terão qualquer retribuição futura. O equilíbrio financeiro e atuarial deve ser obtido enquanto o segurado ainda não é beneficiário, sendo esta a adequada leitura que se faz do próprio histórico institucional da previdência pública social. 

            Sem a segunda faceta da regra da contrapartida, o Estado pode instituir ou majorar contribuições previdenciárias sempre que sua incapacidade como gestor resultar em perigo ao colapso do sistema. O ônus recai consequentemente nos próprios beneficiários, como foi o caso dos inativos e aposentados com o advento da EC n. 41/03. Com isso, o Estado que deveria proporcionar ao beneficiário uma melhor condição de vida em período de vulnerabilidade, como a velhice, acaba por diminuir-lhe, pouco a pouco, a proteção visada.

            É certo que na busca pela solvabilidade do sistema, é preciso se compreender que por vezes o Estado toma ações - muitas vezes inconstitucionais - para se atingir a higidez das contas da previdência, mas tais ações não podem se constituir em arbitrariedades, indo de encontro com a própria funcionalidade do sistema de previdência. Tal situação não ocorre apenas na realidade brasileira, como afirma Daniel Machado Rocha:

            No mundo inteiro, em face das novas realidades demográficas, econômicas e sociais, os regimes previdenciários públicos há vários anos vêm enfrentando um constante problema para atender os compromissos assumidos. Fatores tais como a crise econômica global que aflige o Estado Social, a racionalização e a adaptação do sistema em face das mudanças demográficas e sociais, e até mesmo a reestruturação de sistemas econômicos inteiros, que poderiam ser beneficiados pela mudança do sistema de financiamento, têm acelerado o debate sobre os sistemas nacionais de previdência, principalmente no que tange às aposentadorias.[67]

             Antes da EC n. 41/03, a correlação entre contribuição previdenciária e benefícios era uma constante na doutrina e jurisprudência. Doutrinadores como Misabel Derzi, Hugo de Brito Machado, citados na ADI 2.010, fizeram tal ressalva, entendimento que também foi compartilhado na ADI 2.116 e ADI 790. Cite-se, por exemplo esta última:

CONTRIBUIÇÃO SOCIAL - MAJORAÇÃO PERCENTUAL - CAUSA SUFICIENTE - DESAPARECIMENTO - CONSEQUENCIA - SERVIDORES PUBLICOS FEDERAIS. O disposto no artigo 195, par. 5., da Constituição Federal, segundo o qual "nenhum beneficio ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio", homenageia o equilíbrio atuarial, revelando princípio indicador da correlação entre, de um lado, contribuições e, de outro, benefícios e serviços. O desaparecimento da causa da majoração do percentual implica o conflito da lei que a impôs com o texto constitucional. Isto ocorre em relação aos servidores públicos federais, considerado o quadro revelador de que o veto do Presidente da Republica relativo ao preceito da Lei n. 8.112/90, prevendo o custeio integral da aposentadoria pelo Tesouro Nacional, foi derrubado pelo Congresso, ocorrendo, no interregno, a edição de lei - a de n. 8.162/91 - impondo percentuais majorados. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL - SERVIDORES PUBLICOS. A norma do artigo 231, PAR.1. da Lei n. 8.112/90 não conflita com a Constituição Federal no que dispõe que "a contribuição do servidor, diferenciada em função da remuneração mensal, bem como dos órgãos e entidades, será fixada em lei.[68]

            Por tal razão, nas palavras do Min. Celso de Mello, no voto da ADI 2.010, este afirma:

            Se é certo, portanto, que nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total (CF, art. 195, §5º), não é menos exato que também não será lícito, sob uma perspectiva estritamente constitucional, instituir ou majorar contribuição para custear a seguridade social sem que assista, àquele que é compelido a contribuir, o direito de acesso a novos benefícios ou a novos serviços.[69]

           

            Por derradeiro, em razão do caráter retributivo do sistema contributivo previdenciário, não se pode instituir ou majorar contribuição de seguridade social sem correspondente contrapartida ao beneficiário. Ademais, como decorrência do caráter retributivo, o servidor inativo e o pensionista, em razão da já contribuição anterior para a solvabilidade do sistema, não podem ter seus benefícios tributados. Falta, pois, causa suficiente.

            Se é exigido do servidor inativo e do pensionista a contribuição previdenciária, isso sinaliza que há um descompasso do Poder Público na gestão do sistema de previdência, o que não pode justificar o avanço ilimitado da tributação estatal. Sem causa suficiente, pois, não há espaço para o aumento e instituição de fonte de custeio.

            No capítulo seguinte passa-se a analisar os fundamentos principais exarados pelo STF para se declarar constitucional o art. 4º da EC n. 41/03, que instituiu a contribuição previdenciária aos servidores inativos e pensionistas do regime próprio de previdência social.

4 A JUSTIFICAÇÃO DOS PRINCIPAIS VOTOS NA ADI 3.105/DF E SUA ANÁLISE SOB O PRISMA DA TEORIA DA DECISÃO JUDICIAL

            Como se viu acima, a tese da ausência da causa suficiente foi amplamente discutida na ADI 2.010, servindo também para refutar a constitucionalidade da previsão de exação dos inativos e pensionistas da Lei n. 9.783/99. Contudo, com a introdução da palavra "solidário" ao art. 40 caput da CRFB/88, pretendeu-se legitimar a exação dos servidores inativos e pensionistas, ignorando-se a sistemática até então vigente, sendo esse entendimento abalizado pela ADI 3.105.

            Adiantando-se o resultado evidenciado na ADI 3.105, José Antônio Savaris afirma que:

            Em suma, as demandas previdenciárias cujo mérito foi apreciado pelo STF não foram decididas com base em uma ponderação aprofundada dos princípios específicos da previdência social. Influenciada por um contexto de crise do Estado Providência e por um discurso matizado pela insustentabilidade dos regimes previdenciários de repartição, a Suprema Corte Nacional promoveu uma hierarquização prévia e definitiva do princípio do equilíbrio financeiro e atuarial. A partir dessa pré-compreensão forjou-se um modo de aplicar o direito marcado pela primazia da eficiência econômica, muitas vezes, em detrimento da proteção previdenciária.[70]

           

            Na ação direta de inconstitucionalidade em comento, conforme anota Daniel Machado Rocha, os ministros reconheceram a constitucionalidade cobrança por acompanharem o voto do ministro Cezar Peluso, o qual se valeu - quase exclusivamente - do caráter tributário das contribuições sociais.[71]

           

4.1 O voto do ministro Cezar Peluso: principais fundamentos para a declaração da constitucionalidade da incidência de contribuição previdenciária sobre os proventos dos inativos e pensionistas

            No início de seu voto, o ministro Cezar Peluso fez constar que a Min. Ellen Gracie julgou procedente a ação para reconhecer a inconstitucionalidade da exação, eis que se tratava de contribuição despida de causa eficiente, onde não havia a necessária contrapartida de novo benefício (art. 195, § 5º, da CRFB/88), e, para além disso, por se tratar de bitributação sobre a renda, infringindo-se o disposto no art. 154, I da Carta Magna, in verbis:

Art. 154. A União poderá instituir:

I - mediante lei complementar, impostos não previstos no artigo anterior, desde que sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição;[72]

            Também apontou o voto do Min. Carlos Britto, o qual acompanhou a Min. Ellen Gracie, mas com fundamento diverso, com base no direito adquirido do servidor aposentado ou que já reunião as condições para o ser, o qual não poderia ser alvo de contribuição previdenciária, seja por lei ou por emenda constitucional, por expressa disposição do art. 60, IV, da CRFB/88.

            Contrariando este último argumento, o ministro então partiu do pressuposto de que a contribuição previdenciária, espécie de contribuição social, tem natureza jurídica de tributo. E como tal, obedecem ao regime jurídico próprio, cuja destinação das receitas e finalidades decorrem do art. 149 da CRFB, in verbis:

Art. 149. Compete exclusivamente à União instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas, observado o disposto nos arts. 146, III, e 150, I e III, e sem prejuízo do previsto no art. 195, § 6º, relativamente às contribuições a que alude o dispositivo.[73]

            Ao dizer sobre o texto do artigo acima, afirmou o ministro que as contribuições podem ser instituídas pela União, Estados e Municípios como forma de atuação na área social, sendo que a Constituição vincula a competência, finalidade e destino da arrecadação. No atuar regular do Estado na área social, a EC n. 41/03, ao fazer incidir a contribuição sobre os inativos e pensionistas, não poderia ser inconstitucional, eis que, como tributo que é, não lhe é oponível o direito adquirido.

            E conclui o ministro:

            Noutras palavras, não há, em nosso ordenamento, nenhuma norma jurídica válida que, como efeito específico do fato jurídico da aposentadoria, lhe imunize os proventos, de modo absoluto, à tributação de ordem constitucional, qualquer que seja a modalidade do tributo eleito. Donde, tampouco poderia encontrar-se, com esse alcance, direito subjetivo que, adquirido no ato de aposentamento do servidor público, o alforriasse à exigência constitucional de contribuição social incidente sobre os proventos da inatividade.

            [...]

            Ora, vista como fato jurídico, a aposentadoria não guarda de per si tal virtude, pois imunidade tributária depende sempre de previsão constitucional, que com essa latitude não existe no caso. Antes, a EC nº 41/2003 subjugou, às claras, os proventos dos servidores inativos ao âmbito de incidência da contribuição previdencial.[74]

           

            Como consequência da possibilidade de incidência tributária, não haveria qualquer afronta à irredutibilidade de vencimentos preconizada pelo art. 194, IV da CRFB/88.

            Por sua vez, como argumento contrário ao voto da Min. Ellen Gracie (art. 195, § 5º, da Carta Magna), afastou o Min. Cezar Peluso a afirmativa de que a incidência de contribuição social se trataria de uma hipótese de bitributação, com caráter confiscatório. Trata-se em verdade de bis in idem permitido pela Constituição - a incidência de tributo sobre o mesmo fato gerador pelo mesmo ente federativo - fenômeno que ocorre à semelhança da incidência de imposto de renda e contribuição sobre o lucro das empresas.

            Na hipótese, tal tributação é permitida expressamente pelo art. 195, II da CRFB/88, in verbis:

Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:

[...]

II - do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social de que trata o art. 201;[75]

             

            Por derradeiro, no item 11 de seu voto, o ministro finalmente adentra na indagação se como tributo a contribuição poderia ter sido instituída mesmo sem a previsão de uma contrapartida (art. 195, § 5º, da CRFB).

            Depois de analisar a evolução histórica do custeio do regime previdenciário - do caráter solidário e distributivo ao caráter solidário e contributivo - o ministro ressaltou a contrariedade sobre a questão em ações pretéritas julgadas no STF:

            Na medida cautelar da ADI n. 1.441, o então ministro Sepúlveda Pertence, ao negar a medida, afirmou que "a contribuição social é um tributo fundado na solidariedade social de todos para financiar uma atividade estatal complexa e universal, como é a da Seguridade".[76] Vale dizer, a solidariedade fundaria as razões para a exação.

            Já na ADI n. 2.010, em decisão operada em medida cautelar, suspendeu-se por unanimidade a incidência de contribuição previdenciária sobre os proventos dos inativos e pensionistas, em razão de ausência de permissivo de exação trazido pela EC n. 20/98 e pela expressa disposição do art. 40, § 12 da CRFB quanto à aplicação da imunidade de contribuição previdenciária dos proventos dos inativos e pensionistas prevista nos critérios fixados pelo regime geral de previdência. Para além disso, utilizou-se o fundamento de ausência de causa suficiente para a exigibilidade da contribuição, na medida em que a EC n. 20/98 passou a tratar do regime próprio de previdência social um caráter contributivo. Se é contributivo, necessariamente há de ser retributivo, gerando por consequência a necessidade de correlação entre custo e benefício.

            Diante desse quadro controverso, o ministro ressaltou - com base na exposição de motivos da EC n. 41/03 - que a emenda em análise teve como causa fatores como a queda de natalidade, diminuição do acesso aos quadros funcionais públicos e o aumento da expectativa de vida - aumentando assim o tempo de percepção do benefício -, fatos que trouxeram preocupação constante com o equilíbrio financeiro e atuarial do sistema.

            Ao adentrar no art. 195, § 5º da CRFB, o ministro opôs-se ao argumento da segunda dimensão da regra da contrapartida, que pode ser identificada pela proibição de instituição ou majoração de contribuição previdenciária sem a correspondente criação ou majoração de benefício.

            Isso porque não se trata no caso brasileiro de um regime capitalizador e contributivo, mas sim de um regime solidário e contributivo, do qual o Estado pode instituir tributo para o seu custeio. Trata-se em verdade de um regime público de solidariedade, na qual as contribuições tem por destino o custeio geral do sistema e não a composição de fundo privado com contas individuais.

            Nas palavras do ministro:

[...] enganam-se ainda ao pressupor ao regime previdenciário constitucional, como premissa indisfarçável do raciocínio, um cunho eminentemente capitalizador e contributivo, entendido segundo a matriz da relação jurídica de direito privado, de perfil negocial ou contratual, que é domínio dos interesses patrimoniais particulares e disponíveis.

            Sua lógica está em que, se o servidor contribuiu durante certo período, sob hipotética promessa constitucional de contraprestação pecuniária no valor dos vencimentos durante a aposentadoria, teria então, ao aposentar-se, direito adquirido ou adquirido direito subjetivo a perceber proventos integrais. Desconto da contribuição, pelo outro contraente, tipificaria aí redução, sem causa jurídica, do valor da contraprestação pré-acordada.

            Ninguém tem dúvida, porém, de que o sistema previdenciário, objeto do art. 40 da Constituição da República, não é nem nunca foi de natureza jurídico-contratual, regido por normas de direito privado, e, tampouco de que o valor pago pelo servidor a título de contribuição previdenciária nunca foi nem é prestação sinalagmáticas, mas tributo predestinado ao custeio da atuação do Estado na área da previdência social, que é terreno privilegiado de transcendentes interesses públicos ou coletivos.

            [...]

            O art. 3º da Constituição tem por objetivos fundamentais da República "i) construir uma sociedade livre, justa e solidária; ... ii) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais".

            A previdência social, como conjunto de prestações sociais (art. 7º, XXIV), exerce relevante papel no cumprimento desses objetivos e, nos calos termos do art. 195, caput, deve ser financiada por toda a sociedade, de forma equitativa (art. 194, § único, V). De modo que, quando o sujeito passivo paga a contribuição previdenciária, não está apenas subvencionando, em parte, a própria aposentadoria, senão concorrendo também, como membro da sociedade, para a alimentação do sistema, só cuja subsistência, aliás, permitirá que, preenchidas as condições, venha a receber proventos vitalícios ao aposentar-se.

            Não quero com isso, é óbvio, sugerir que o valor da contribuição seja de todo alheio à dimensão do benefício, pois o caráter contributivo, o equilíbrio atuarial, a regra da contrapartida e a equidade na repartição dos custos do sistema impedem se exijam ao sujeito passivo valores desarrazoados ou desproporcionais ao benefício por receber, enfim, de qualquer modo confiscatórios. Os limites estão posto no sistema e devem ser analisados em conjunto.[77]

            Em suma, quanto ao argumento da existência de óbice extraído da segunda dimensão da regra da contrapartida (art. 195, § 5º, da Constituição), o voto do ministro Cezar Peluso justificou a constitucionalidade da exação dos aposentados e pensionistas do regime próprio previsto no art. 40 da CRFB em razão do caráter solidário e contributivo desse sistema, tendo em vista, sobretudo, a demanda pelo equilíbrio financeiro e atuarial, o qual deve ser buscado por todos os participantes da sociedade, de forma equânime (art. 194, parágrafo único, V, da Constituição).

4.2. Ponderações sobre os fundamentos do voto que ensejou a constitucionalidade da EC n. 41/03 e a busca por uma resposta adequada à Constituição

            Como já mencionado, o voto do ministro revela uma primazia da eficiência econômica, a ser buscada inclusive por aqueles que, até a EC n. 41/03, pela lógica sistemática do regime de previdência própria, nunca antes foram cobrados.

            E com base nos princípios elencados no capítulo 1.1.3 deste trabalho, verificam-se diversos pontos em que a fundamentação do voto ora analisado não conseguiu se desvencilhar do velho paradigma solipsista tão patente na realidade brasileira. 

            De início, o primeiro princípio, que se assenta na necessidade de se preservar a autonomia do direito e cujo conteúdo demanda que a decisão judicial deve ser baseada/fundamentada por argumentos de princípios e não de política, moral ou economia restou prejudicado pela decisão resultante do voto em análise.

            O ministro em momento algum escondeu que sua motivação para a decisão foram razões de eficiência econômica, razão pela qual se valeu do argumento da necessidade do equilíbrio financeiro e atuarial para a manutenção da proteção social, o qual poderia ser oponível inclusive aos inativos e aposentados.

            Neste ponto fez uma ressalva, para afirmar que deve existir correlação mínima entre o valor da contribuição e a dimensão do benefício, já que o caráter contributivo, o equilíbrio atuarial, a regra da contrapartida e a equidade na repartição de custos do sistema barram a exigência ao sujeito passivo valores em desproporcionais ao benefício por receber, os quais seriam em verdade, caso desarrazoados, confiscatórios.

            Essa afirmativa expõe que num futuro, caso o Estado venha a impor contribuição previdenciária desproporcional, caberá o controle pela via judicial. Salta aos olhos que nesse futuro caso, caso ocorra, a função Judiciária terá necessariamente que adentrar em razões de Estado para decidir se a exação é razoável ou não, vale dizer, seus argumentos serão de ordem político-econômica.

            Essa dinâmica da fundamentação do voto analisado na ADI n. 3.105 e do ônus futuro afrontam a necessidade de autonomia do direito frente às razões econômicas, que não guardam compromisso com direitos de segunda dimensão. Não se quer dizer que o Estado possa ignorar as condições econômicas, pois é neste meio em que se materializam, na medida do possível, a ação Estatal para a proteção previdenciária.

            O que se quer afirmar é que a própria Constituição prevê outras formas de se garantir o equilíbrio financeiro e atuarial, sem ter que se incorrer em afronta à regra da contrapartida (art. 195, § 5º, da CRFB/88). Nessa linha é que o art. 249 da Carta Magna, inserido pela EC n. 20/98, trouxe mecanismos para se assegurar recursos para o pagamento de proventos de aposentadoria e pensões concedidas aos servidores públicos. O artigo afirma, in verbis:

Art. 249. Com o objetivo de assegurar recursos para o pagamento de proventos de aposentadoria e pensões concedidas aos respectivos servidores e seus dependentes, em adição aos recursos dos respectivos tesouros, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão constituir fundos integrados pelos recursos provenientes de contribuições e por bens, direitos e ativos de qualquer natureza, mediante lei que disporá sobre a natureza e administração desses fundos.[78]

            A Constituição não é, dessa feita, omissa em relação à realidade das condições econômicas em que as ações sociais são realizadas. E justamente por não sê-la é que a dinâmica constitucional sobre as regras de custeio próprias da previdência social são responsáveis e garantidoras da não exação do servidor inativo e pensionista.

            Ignorando a clareza solar do dispositivo acima, o ministro afirmou que a solidariedade validaria a exação criada. Ignorou-se, com isso, um extenso histórico evolutivo do próprio custeio da previdência social, o qual também é baseado na segunda vertente da regra da contrapartida e que impedia o avanço do Estado sobre os valores de aposentadorias e pensões.

            Por quebrantar a dinâmica do sistema de custeio, mais explorada no capítulo 3 deste trabalho, verificou-se uma fragilização do princípio da garantia ao respeito à integridade e à coerência do direito. Veja-se que a solidariedade sempre existiu como caráter intrínseco aos regimes de previdência social, tanto no geral quanto no próprio. A inserção desse caráter, de forma expressa, no caput do art. 40 da CRFB não trouxe qualquer mudança interpretativa quanto à própria regra da contrapartida. Ao revés, manteve-se intacta disposição do art. 40, § 12º da Carta Magna, o qual faz expressa menção à aplicação dos critérios fixados pelo regime geral de previdência social, aí inserida a regra da contrapartida.

            Por fim, houve afronta ao quinto princípio, que afirma a necessidade de se garantir que cada cidadão tenha sua causa julgada a partir da Constituição e que haja condições para aferir se essa resposta está ou não constitucionalmente adequada. Isso porque, o ministro elevou o princípio do equilíbrio financeiro e atuarial como um a priori para afirmativa da constitucionalidade da exação dos inativos e pensionistas, alterando o próprio sentido de solidariedade e da regra da contrapartida, o que significou a abertura de um pernicioso precedente para os beneficiários do regime previdenciário, eis que a exação, sem causa, resulta em flagrante confisco.

            Nessa seara, importante se concluir que sem a contrapartida, a contribuição social se manifesta como verdadeiro imposto, como afirma Fábio Zambitte Ibrahim:

O preceito do art. 195, § 5º, da Constituição também é conhecido como regra da contrapartida. A dicção é clara e correta: aumentos injustificados e desvinculados do plano de benefícios são, necessariamente, inconstitucionais. Pode-se dizer, sem muita dificuldade, que esse preceito é um limitador ao princípio da solidariedade, pois, do contrário, a contribuição social perderia sua natureza, convertendo-se em verdadeiro imposto, o qual, por definição, é desvinculado de qualquer contraprestação estatal.[79]

            A ADI 3.105 ratificou portanto uma afronta ao regime próprio de previdência social, do qual se extrai, por sua sistemática, que os servidores inativos e pensionistas (beneficiários) não poderiam ser compelidos a submissão às imposições do equilíbrio financeiro e atuarial, eis que o equilíbrio só pode ser exigido dos segurados (ainda não beneficiários) enquanto segurados, como também porque o incremento da fonte de custeio só pode ocorrer se houver correspondente incremento do benefício (regra da contrapartida).

            Logo, a EC n. 41/03 importou em afronta a direito fundamental de caráter social, resultante da violação da regra da contrapartida, decorrendo disso um retrocesso social de situações já garantidas na sociedade. No caso em concreto, quebrantou-se a impossibilidade de exação dos servidores públicos inativos e pensionistas, vedação esta que se erige da sistemática de custeio da previdência.

            Nessa linha, conclui-se a infringência ao art. 60, § 4º, IV da CRFB, eis que a sistemática previdenciária - aí incluída a sua forma de custeio - também se insere como direito social regulado pela Constituição, sendo que a sistemática não permite a exação dos inativos e pensionistas do regime próprio de previdência social.

 

CONCLUSÃO

  

            Buscou-se no presente trabalho uma resposta adequada à Constituição sobre a constitucionalidade ou não da incidência de contribuição social dos servidores inativos e pensionistas do regime próprio de previdência social, inserida pela EC n. 41/03.

            O tema, apesar de num primeiro momento apresentar-se como uma situação pontual sobre os direitos de um determinado grupo de indivíduos, remonta à forma como os direitos sociais são tratados no Brasil, tanto pela função executiva, quanto legislativa e judiciária.

            No campo de controle judicial, viu-se que a questão posta na ADI n. 3.105 não fugiu à lógica da fundamentação a partir da consciência do julgador, e não à partir da Constituição. Neste ponto, restou patente a necessidade atual de se buscar balizas teóricas que permitam a aplicação do Direito a fim de se dar guarda ao projeto político traçado na Constituição. Depois de um levantamento das filosofias que superaram o modelo de acesso ao conhecimento, percebeu-se que o positivismo e o pós-positivismo não resolveram como lidar com a interpretação do Direito, pois lhe emprestavam como fundamento a consciência do sujeito que julga, a qual não está livre de arbitrariedades.

            Como solução, apresentou-se as balizas de uma teoria da decisão judicial, preocupada, principalmente, em permitir a aferição da validade dos argumentos emanados nas decisões judiciais, que devem ser aferidas a partir de princípios constitucionais, devendo-se sobretudo respeitar a integridade do Direito.

             Apresentada, contextualizada e demonstrada a necessidade da teoria da decisão judicial, viu-se, depois de um escorço histórico da evolução do regime próprio de previdência social, que os inativos e pensionistas não estão vinculados ao equilíbrio financeiro e atuarial, vez que o regime, de caráter contributivo, possui inafastável caráter retributivo, de modo que os que já contribuíram para o regime não poderiam, em momento de pleno gozo do beneficio, serem compelidos para a contribuição previdenciária.

            Tal hipótese esbarra, notadamente, na segunda vertente da regra da contrapartida, e se configura como uma contribuição previdenciária sem causa, fazendo saltar aos olhos que tal exação tem nítidos contornos confiscatórios. Essa lógica decorre da dinâmica previdenciária constitucional, sendo que a Carta Magna trouxe mecanismos outros para assegurar recursos para o pagamento de proventos de aposentadoria e pensões concedidas aos servidores públicos, conforme se viu do art. 249 da CRFB/88.

            Ademais, a declaração da constitucionalidade do art. 4º da EC. 41/03 foi fundada principalmente em razões de primazia econômica, numa verdadeira inversão dos sentidos do princípio do equilíbrio financeiro e atuarial, demonstrando a manipulação e submissão dos princípios constitucionais aos argumentos de Estado, os quais não podem pautar as decisões jurídicas.

            Por derradeiro, conclui-se que o STF ratificou uma infringência ao art. 60, § 4º, IV da CRFB/88, eis que a sistemática previdenciária sobre custeio foi desrespeitada, importando em retrocesso a direito social regulado pela Constituição.

  

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