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Retribucionismo, perigosismo e suas relações com o patriotismo no Brasil do século XXI

Agenda 14/09/2016 às 23:27

2014, um ano tanto de eleições quanto de Copa do Mundo, somado com a intensificação das atividades criminosas no país e no resto do mundo, mostraram o quanto que, no Brasil e na América Latina, o patriotismo se mistura com o talionismo moderno.

1 INTRODUÇÃO

O ano de 1992 é lembrado pelos saudosistas como o "último ato patriótico no Brasil": o movimento dos caras-pintadas, que mobilizou todo o país com o intuito de exigir a investigação e julgamento do caso PC Farias, no qual o presidente Fernando Collor de Melo estava envolvido, que resultou na instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito e no Impeachment do então Presidente.

Tal ato é classificado como o sentimento de patriotismo e amor ao país, onde a população voluntariamente foi às ruas e exigiu o seu direito de justiça. Qual a diferença entre o ano de 1992 e as manifestações de 2014? Está na complexidade das relações sociais, no sentimento de justiça de uma geração que conheceu a Constituição de 1988 assim que foi promulgada e procurava colocá-la em prática. O movimento dos caras pintadas é sempre relembrado como uma tentativa, muitas vezes vã, de despertar o patriotismo no jovem brasileiro, que, como se vê, sente repulsa a esse sentimento.

Por fim, essa tentativa de patriotismo acaba sendo deturpada e gerando situações de desrespeito aos Direitos Humanos previstos na Constituição, graças a ideologia talionista tão difundida e absorvida, ainda que inconscientemente, pelos cidadãos.

A combinação desses dois elementos cria uma sociedade apática, acomodada, e que quando se sente ameaçada ignora a tutela do Estado e entra num estado temporário de anarquia para satisfazer a sua vontade, assim, agindo a bel prazer, pois o Estado não tem o controle sobre seu povo.

O presente artigo tem por objetivo esmiuçar as razões das ideologias retribucionistas e perigosistas serem tão fortes no Brasil, além de apontar seus efeitos nos

sistemas prisionais brasileiros, e apontar possíveis soluções para a problemática apresentada.

2 A EVOLUÇÃO DO RETRIBUCIONISMO PENAL

O retribucionismo tem seus primórdios na vingança divina que era predominante na Idade Antiga, onde a pena era vista como uma tentativa de apaziguamento dos deuses, por uma determinada conduta que os desagrada ter sido praticada. Assim, a pena também era tida como um reforço do sentimento de união do grupo, já que a manutenção do mesmo depende do favorecimento divino.

Esse sentimento de união não pode ser visto como patriotismo no momento, já que esse termo será cunhado somente no século XVIII, porém pode ser considerado uma versão primitiva do mesmo.

O sentimento de união será reforçado, como na fase da vingança de sangue e do talionismo. Este último surge com a Lei de Talião da Babilônia: um conjunto de leis expressas onde em sua essência está a retribuição do mal cometido na mesma medida; daí a expressão “olho por olho”.

O direito penal evolui, e sua característica principal nos Estados Democráticos de Direito como o Brasil é ter como penas as restritivas de liberdade, ou restritivas de direitos. Instituições como a tortura ou a dor física não são aplicadas aqui, como frisa a Constituição Federal em seu artigo 4º: “A República Federativa do Brasil rege-se pelas relações internacionais pelos seguintes princípios: [...] II – Prevalência dos Direitos Humanos”.

Porém, o aumento da violência, a inoperância do Estado de forma a acompanhar esse ritmo, e a ascensão das organizações criminosas geraram um sentimento de abandono por parte dos cidadãos. Mesmo que o Estado seja um garantidor da segurança em prol da liberdade de seus súditos, como teoriza Thomas Hobbes, a realidade é que ambos não são assegurados, seja por incompetência, dificuldade ou omissão (HOBBES, 2012).

Jean Paul Marat (apud ZAFFARONI, 2001) nos ensina que o retribucionismo não pode dar certo em países onde o acúmulo de capital é baixo, como em toda a América Latina. Assim, o retribucionismo é uma tentativa vã de melhorar as condições do lugar em que se vive, com base em argumentos pífios e que não levam em conta os Direitos Humanos que a Constituição Federal assegura como invioláveis. Isso acontece porque, conforme nosso Código Penal mostra, as penas são restritivas de liberdade e de direitos.

Os cidadãos sentem-se frustrados ao ver criminosos sofrerem sanções a liberdade, e não a sua integridade física, como geralmente eles o fazem. Assim, tem-se episódios onde a população se “vinga”, como quando dois assaltantes menores de idade foram espancados e presos a um poste pela população local.

Também nos ensina Immanuel Kant (apud ZAFFARONI, 2001, p. 284) que os imperativos são divididos de acordo com a nossa necessidade de usar a moral para segui-los ou não. Assim, temos os imperativos categóricos e hipotéticos. Some-se isso com o ensinamento de Marat e chega-se a conclusão de que o retribucionismo penal não pode dar certo em países com acúmulo de capital baixo porque o talionismo se confunde com a moral. Mesmo quando este é aplicado pelo Estado, a pressão e comoção social influenciam no resultado. Inconscientemente ou não, é um dos motivos para que penas que ataquem a integridade física não sejam instituídas:

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Artigo 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XLVII – Não haverá penas:

a) De morte, salvo em casos de guerra declarada, nos termos do artigo 84, XIX

b) De caráter perpétuo

c) De trabalhos forçados

d) De banimento

e) Cruéis

Neste artigo a Constituição Brasileira comunga com as normas internacionais de proteção aos Direitos Humanos as quais jurou cumprir, como o Pacto de São José da Costa Rica. A única exceção é que em casos de guerra é possível haver pena de morte, ainda que esta esteja regulamentada pela própria Constituição. A mesma veda totalmente qualquer pena de caráter perpétuo, fazendo assim com que, teoricamente, a função do Direito Penal seja a de ressocializar os infratores da lei.

Porém, a garantia constitucional dos Direitos Humanos infelizmente não é uma garantia de que eles sejam cumpridos, visto que, como se verá a seguir, a Constituição de 1988 não acompanhou as mudanças sociais e intelectuais de sua época para os dias atuais, o que se reflete em sua grande quantidade de emendas e no ceticismo da população para com a mesma.

2.1 O PATRIOTISMO E SUA RELAÇÃO COM O RETRIBUCIONISMO

Tem-se como definição geral do patriotismo o amor incondicional pelo país e a vontade de servi-lo. Porém, é muito complexo falar de patriotismo no Brasil visto a falta de confiança em sua política, o crescimento da violência e da pobreza e o fanatismo que surge

apenas em momentos pífios, como torneios esportivos, a exemplo a Copa do Mundo, enquanto que os símbolos nacionais: brasão, hino, bandeira, são ignorados ou até desconhecidos. Graças a esses fatos é clichê dizer que o “brasileiro é patriota somente de 4 em 4 anos”.

Além disso, a história não é muito favorável, visto que a ditadura militar pela qual o Brasil passou apropriou-se desses símbolos e os usou a seu favor para estabelecer “Ordem e Progresso”, como diz a faixa na nossa bandeira.

Daí vem o hábito das escolas incentivarem os alunos a conhecer e aprender os símbolos do país. Além de que, nesta época, foram instituídas nas escolas a disciplina Educação Moral e Cívica, com esse objetivo. O falso patriotismo que se observa nos dias de hoje é um sinal de desvinculação a esta época, e que essa instituição não deu certo. Junte a isso o aumento da criminalidade e tem-se o talionismo, que é inerente ao ser humano, como fortalecido.

De forma coincidente, o pensamento retribucionista está relacionado com a ignorância ou o desprezo pela lei, sob a égide do seu suposto não funcionamento, e da vontade de corrigir suas falhas pela autotutela, além de, mais grave ainda, a repulsa do conhecimento sobre os Direitos Humanos, e sua descaracterização pelo argumento de que eles protegem a parte errada da situação, o que é uma forma deturpada de se entender que a função deles é proteger aqueles que estão em situação vulnerável, como os criminosos, que estão à margem da sociedade.

Como uma tentativa de "salvar o país", estas pessoas levantam bandeiras como a pena de morte, prisão perpétua, e outros métodos de punição claramente inconstitucionais e por conta própria, por acreditar que a burocracia e o Código Penal e Processual Penal estão contra os interesses da população.

3 O PERIGOSISMO E SEU VÍNCULO COM O PATRIOTISMO

Considerado por Eugenio Raul Zaffaroni como a evolução do positivismo, doutrina essencialmente capitalista que subordina o homem elemento do organismo social e justifica o poder como produto da evolução orgânica, o perigosismo tem fortes raízes na América Latina, que ficaram evidentes nas ditaduras em seus países. Mesmo com o fim destas, as ideias permanecem fortes. Segundo o autor:

Por outra parte, o perigosismo, o neokantismo e a ideologia do tratamento uniram-se em um produto legislativo estranho, que é o chamado "código penal tipo latino americano" (...). Trata-se de um texto (...) que prevê penas retributivas para os imputáveis, "medidas" ilimitadas para os inimputáveis, "semi-imputáveis" e "habituais" (a quem não define) e em quem ocupa um lugar central e quase exclusivo a institucionalização privada da liberdade (2001, p. 360).

O perigosismo se funde aqui com o retribucionismo por ser o instrumento de dominação do Estado sobre a população. Contribui para o mesmo o poder midiático, que todos os dias veiculam, intencionalmente ou não, situações de injustiça e revolta que alimentam o sentimento retribucionista na população, fazendo com que os mesmos tentem fazer justiça com as próprias mãos, ou exijam do poder público medidas mais rigorosas contra os infratores, esquecendo-se totalmente do caráter ressocializador do direito penal, tal como Kant coloca (apud BITENCOURT, 2014, p. 138):

(...) O homem, na tese kantiana, não é uma coisa suscetível de instrumentalização. O homem não é, pois, "algo que possa ser usado como simples meio: deve ser considerado, em todas as ações, como fim em si mesmo". Consequentemente, pretender que o Direito de castigar o delinquente encontre sua base em supostas razões de utilidade social não seria eticamente permitido.

Por esta afirmação, Kant rompe com a lógica maquiavélica, que afirma que o homem é meio para obtenção de um fim. Assim, se um elemento comete um roubo, o objetivo do Estado ao persegui-lo é fazê-lo pagar pelo crime, não necessariamente recuperar o bem perdido. Assim, ele não admite que o Direito de punir tenha "razões de utilidade social".

Fazendo um breve estudo da História da América Latina veremos como o perigosismo foi/é forte, a começar pelas suas raízes na ditadura de Porfírio Diaz, passando pelos regimes militares da Argentina, Brasil e Chile. Apesar de findadas, as ideias permanecem, e, por mais absurda que seja, muitos defendem a volta desses regimes que se apóiam no total desrespeito aos Direitos Humanos.

4 AS CONSEQUENCIAS DO RETRIBUCIONISMO E DO PERIGOSISMO NO SISTEMA PENAL BRASILEIRO

As políticas públicas brasileiras que tem em vista melhorar a condição da população carcerária encontram entraves como a corrupção dos setores, pelo desvio de recursos, e o desinteresse da população, que vê na deplorável situação dos presidiários como uma suposta parte da pena em que recebem.

O descaso transforma as penitenciárias em "escolas do crime", onde os novos presos são ensinados e absorvidos pelo crime organizado, seja pela vontade ou coação, transformando-se assim numa bola de neve onde, quando menos se percebe, são os presos que tomam conta das prisões, no lugar do Estado. E quando esses são contrariados, o resultado são motins, rebeliões e fugas de presos.

A exemplo da penitenciária de Pedrinhas, localizada no Estado do Maranhão, onde as séries rebeliões e mortes ocorridas em seu interior no ano de 2014 devido ao

aumento da rigorosidade da segurança junto com a transferência de prisioneiros de alta periculosidade, resultou em massacres e mortes que chamaram a atenção da mídia de todo o mundo.

Assim, o aumento da criminalidade intensifica a crueldade dos criminosos quando estes são contrariados, gerando uma crescente revolta por parte da população, que vê na execução desses como a "solução final". O que gera episódios de criminosos linchados e torturados por populares, que externam sua fúria em ações de claro desrespeito aos Direitos Humanos.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

É difícil apontar soluções concretas para um tema que depende tanto da educação, visto que, apesar de a mudança de foco educacional para um que frise o respeito aos Direitos Humanos ser o primeiro passo, o Estado também deve fornecer condições propícias para tal, através do incentivo a ressocialização dos condenados e na melhoria da infraestrutura.

O ponto mais difícil é o pensamento ressocializador e de respeito aos Direitos Humanos alcançar o eixo familiar, onde muitos dos conflitos são palcos para pensamentos divergentes e extremos. Sem essa base, o esforço do Estado acaba sendo em vão.

E isso tem relação direta com o sentimento patriótico, visto que o cidadão, ao ter o sentimento de que existe um país pelo qual vale a pena lutar e defender para o que for necessário para protegê-lo. o problema é quando esse sentimento acaba sendo deturpado, gerando horrores como os já mencionados.

As origens do pensamento retribucionista estão na impunidade dos criminosos, somado com o sentimento de revolta e a sensação do abandono pelo Estado, onde tudo isso alimenta a vontade do indivíduo de fazer justiça no lugar daqueles que não o fazem por ele. Logo, o Estado não terá controle de seus cidadãos se não transmitir essa sensação de segurança e não fizer por onde, por práticas, a exemplo, de aumento de efetivo policial, combate mais intensificado à criminalidade, e pela melhoria das condições de vida da população, que também é um fator de revolta, já que a péssima qualidade de vida é um motivador para o crime.

A ideologia perigosista vem da sensação de poder quase ilimitado que o governante sente, graças a seu aparato estatal e/ou midiático, este último comum em regimes ditatoriais. Muitos se fazem valer inclusive da própria Constituição - é sabido que o falecido presidente da Venezuela, Hugo Chávez, por exemplo, sempre aparecia em seus discursos com um exemplar da Constituição na mão e um quadro de Simon Bolívar ao

fundo, o que mostra o apreço pelos símbolos. Seus métodos de manter seu poder variam de controle da imprensa a exílio de adversários políticos. Nesses casos, apenas uma população consciente e coesa tem força para resistir a tal política perigosista e fazer mudar o Governo a como lhe apraz, afastando tais déspotas do poder. Aqui revela-se um contraste: pela lógica maquiavélica, de ter o homem como meio, depor um ditador apenas trará outro ao poder, que se utilizará do mesmo aparato, tal como se acusa o atual presidente Nicolas Maduro de o fazer. Pela lógica kantiana, a ascensão de um novo Governo promoveria a perseguição desenfreada devido a dureza com a qual os crimes seriam tratados, visto que a tipificação do crime já basta para que o ônus caia sobre o delinquente. A melhor solução está nas teorias relativistas da pena, que entendem a pena do Estado como ressocializadora e educadora. O objetivo da pena é fazer com que o indivíduo não cometa mais tal delito, e isso se dá não só com o Direito Penal mas também com a melhoria na educação, para que todos tenham conhecimento de seus direitos e deveres.

Tal pensamento se reflete diretamente nos sistemas penitenciários, vistos como "escolas do crime". Tendo-se a pena como educadora há mais incentivo a ressocialização, e a institutos como a remissão, o que gradativamente contribuirá para o esvaziamento das penitenciárias e no combate a criminalidade. Trata-se de um projeto a longo prazo, e que não trará resultados imediatos. Mas é como os taxistas de Santiago, no Chile, dizem quando perguntados sobre a cidade ser tão limpa: isso não é de agora, "tudo começou há vinte anos atrás"

Em suma, a melhoria da educação, somado com os investimentos públicos, contribuirão para a mudança do pensamento retribucionista da população, que aí sim estará verdadeiramente inserida num Estado Democrático de Direito, que se fundamenta nos Direitos Humanos e nas garantias fundamentais que sua Constituição traz.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. 17 Edição. São Paulo: Saraiva, 2012

BRASIL. Constituição Federal (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em 25 de março de 2015

HOBBES, Thomas. Leviatã, ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Tradução Rosina D' Angina - 2. ed - São Paulo: Martin Claret, 2012

ZAFARRONI, Eugenio Raúl. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral / Eugenio Raúl Zaffaroni, José Henrique Pierangeli. - 3. ed. rev. e atual. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001

Sobre o autor
Afonso Henrique Machado Garcês

Graduando em Direito pela Universidade Federal do Maranhão, com ingresso em 2013

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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