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Crítica à interpretação normativa brasileira

Agenda 21/09/2016 às 12:46

Objetiva analisar o sistema interpretativo da norma brasileira, suas causas e seus efeitos

A busca por estudos de interpretação de normas legais materiais, fatamentente levará à obra de Robert Alexy. Obra ampliativa e que merece apreço. Propõe uma universalidade na interpretação normativa. Contudo, a interpretação, apesar de ser constituída por um núcleo duro, possui lacunas que somente devem ser preenchidas por fatores locais. Antecipando-se à conclusão: diferentemente da sociologia, não há como julgar sem sentir a influência daquilo que se julga.

Um emperísmo de ações, recepções, motivações, desafios e tantos outros elementos cercam a busca pela boa interpretação. Apesar de ser possível uma hermenêutica interpretativa abstrata, o produto é uno, cuja fórmula possui um índice individualizado:concluir é individualizar algo, no caso a norma aplicada ao caso concreto. Em outros termos: o regime fordista não se aplica à lei material. Afora isso, não se conclui por ninguém e sim para si mesmo. Cada cabeça uma sentença. Não poderia ser diferente, pois cada julgador é exposto a situações que lhe são próprias.

Nessa linha de pensamento é que o presente estudo intenta lançar argumentos ao ato de interpretar o produto legislativo, buscando, ao contrário de Alexy, uma diretiva individual; um caminho oposto à universalização. Se alguma universalidade for alcançada, será a uníssona rebeldia da não padronização do ato interpretativo.

Como pontapé inicial, partimos de uma desmistificação. Qualquer manual de interpretação, fatamente, dirá que o papel do juíz é, diante de um texto abstrato, aplicar a um fato concreto. Tolice. Julga-se o indivíduo perante a norma e não a norma frente ao indivíduo. Olha-se para a parte, para o fato e, depois, para o texto legal. O objeto de estudo na aplicação da norma é a quem se dirige é não a própria norma.

O que se tem buscado, sem o mínimo de sucesso, é o debate de lei pela lei, pouco importando quem são as partes. Prova disso é que, as exceção das questões de primeiro grau, a grande maioria das discussões é sobre a processualística da lei, não sobre os fatos que circundam os litigantes. É pura forma. Produz uma justiça formal, mas não material.

Para sermos justos, isso não é exclusividade do Judiciário. Assista-se uma sessão plenária da Câmara dos Deputados ou do Senado e se verá que, quase a integralidade dos debates é sobre regimento (norma formar, de procedimento). O conteúdo pouco importa.

Assim como o universo, as causas que agem na interpretação sempre vão se expandindo. Não se busque entender uma decisão jurídica por seus padrões e sim por seu conteúdo, pelo fator temporal, econômico etc. Há de existir determinadas linhas para interpretar, mas não há forma para fazer isso, dadas as múltiplas variantes.

Nessa toada, cremos que grande parte dos problemas interpretativos, no sistema brasileiro, passa por um estrangerismo desmedido, o qual prega esforços para chegar a um processo absoluto, cujo alcance nunca poderá ou deverá ocorrer. A importação de métodos normativos não podem ser aplicado ao ordenamento júridico brasileiro, sob pena de alcançarmos resultados desastrados, como esses que se apresentam.

Muito por conta da Globalização, há uma falsa noção de que o mundo, material e culturalmente, é globalizado na sua plenitude. Somente em parte tal assertiva é verdadeira. Há grandes nichos que ainda mantêm suas identidades e regras, ainda que não normatizada. É regramento implícito, cuja norma escrita não encontra muito eco. A grande virtude do julgador é encontrar essa equivalência, logicamente não interpretando que as novidades sempre são boas e que as normas culturais sempre são ruins.

Se para Savigny o ato interpretativo deve observar o fator gramatical, lógico, histórico e sistemático e Larenz entende pela literalidade do estatuto, o interrelacionamento do significado da lei, a intenção de regulamentação, motivos e pressupostos normativos do legislador histórico, tal não é suficiente. Ao contrário, como dito, tem produzido no ordenamnto jurídico brasileiro um fracasso quase absoluto por conta de se buscar uma universalização quando o procedimento deveria ser a individualização. Se cada caso é um caso, não pode ser tratado como situação abstrata, cabível em uma fórmula, com uma interpretação baseada em meia dúzia de itens. Não há como encaixotar um caso sob judice. No que toca à norma processual defendemos o oposto: é preciso padronizar.

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Nessa toada, e preciso abandonar o regime fordista de sentença, obtando-se por uma atividade artesanal de dizer o direito. O grande desafio, claro, é conjugar isso com a realidade, onde tramitam milhões de processos, todos com suas individualidades.

Repisando. O que se tem buscado é oferecer um molde ao julgador. Contudo tal não funciona. O máximo que se alcança, como dito, é uma justiça formal. Isso tudo leva ao reverenciamento da norma adjetiva em detrimento da norma material (aquela que faz a Justiça acontecer), situação essa das mais teratológicas. Fosse assim, bastaria indicar o caso fático para uma máquina e o julgamento seria processado de forma imediata.

Dito isso, passamos a elencar os principais fatores que, a nosso sentir, representam mazelas no campo jurídico, bem como indicativos que deverão circundar uma boa aplicação da norma material.

Infelizmente a maior parte dos julgados trazem em seu corpo decisões jurisprudenciais de instâncias superiores. Na hora de julgar não se consulta os autos. Consulta se já houve pronunciamento nesse sentido pelos Tribunais. O efeito de tudo isso é catastrófico. Perde-se toda a capilaridade de quem primeiro irá se pronunciar em detrimento de uma situação anteriormente julgada, mas que pode não guardar similitude com o caso em comento (eis aí o caso da má aplicabilidade dos precedentes, precedentes esses que tendem a ser a "bola da vez" com o novo CPC).

O lançamento de novos argumentos para deferir ou indeferir um pedido restam abortados, justamente pela busca de um paradigma superior. Como a alternância de entendimento nos tribunais se processa de forma acentuada, o descompasso com as decisões de instâncias inferiores é assustador.

Na mesma senda, a dificuldade de aplicar um critério teleológico quando a mudança se processa a passos muito mais acelerado do que outrora, também é fator primordial. A dificuldade de o Poder Judiciário acompanhar a mudança evolutiva deve ser considerada. Imagina a desarmonia entre uma sentença e um acórdão, com intervalo, por exemplo, 15 (quinze) anos. É a era do MSN x a era do Whatsapp.

Já no campo processual esse pareamento deve ocorrer. Não pode, por exemplo, um recurso deixar de ser admitido por falta de preparo e outro, nas mesmas condições, ter prosseguimento. Isso gera o caos e a revolta causídica. Em verdade a justiça brasileira padece desse mal. Muitos vezes os famosos "embargos auriculares", no campo processual têm maior eficicácia do que toda uma doutrina construída. É preciso postura do julgador nesse sensível campo. Adaptar posicionamento para agradar ou desagradar as partes ou seus representantes, além de ser um puro ato corruptivo, provoca decisões destoantes, em total descompromisso com a processualística.

Já a falta de recurso nas esferas judicias (ou mau uso dele), por certo, acaba implicando desserviço à Justiça. Assim é que, por falta de quadro de pessoal, acaba-se atribuindo determinados ônus a terceiros que, em verdade, a lei não atribui. O resultado de tudo isso é uma deficiência no ato de julgar, fator que, em muito contribui para a criação de certas teratologias judiciárias. Na teoria o julgador, necessariamente, deveria ser um juiz, devidamente habilidade e ligitimado para exercer o mister. Seria direito absoluto das partes receberem a prestação judicial de magistrado. Na prática os atos decisórios são efetuados por pessoas diversas, muitas vezes descomprometidas com o resultado, produzindo-se, como dito, verdadeiras aberrações em forma de sentenças ou acórdãos.

Fator abonatório é o desprestígio da magistratura nas instâncias inferiores. A não paixão de um julgador, no mais das vezes, é motivada pela relativização de suas decisões. O ato modificativo pela instância superior, sem qualquer arremedo, provoca um desmotivação, fazendo com que o magistrado, na lógica de que seus atos serão reformados, acaba copiando o entendimento superior quando o correto seria tentar convencer do acerto de seus atos decisórios.

Já a relativização demasiada das decisões na esfera administrativa é outro fator preocupante. O ordenamento jurídico brasileiro, apesar de não reconhecido pela doutrina, almejou um campo exclusivo de decisões administrativas. Contudo o que se tem é uma judicialização das demandas, fazendo com que as decisões não advindas do Judiciário tenham pouco ou nenhum valor. Cite-se aqui as demandas na área de saúde, na qual apenas formalmente o orçamento  é gerida pelo Executivo. Na prática quem difine os destinos dos valores é o próprio Judiciário, precarizando com isso as normativas estatais.

Fato que reforça a dificuldade de aplicar o direito é a existência de uma Justiça Estadual e uma Justiça Federal. A criação de uma Justiça Estadual e uma Federal seria satular se tivessemos um verdadeiro Federalismo. Na prática o que se tem é uma autonomia mitigada dos Estados frente à União, o que acaba refletindo, de certa forma, em um desprestígio da Justiça Estadual. Fator complicador é a existência de Municípios, figura atípica em vários países nos quais o legislador brasileiro se inspirou quando introduziu algumas teorias. Maximizando o caos, a criação do Superior Tribunal de Justiça contribuiu/contribui para a difícil tarefa de aplicação do direito, dada a heterogeneidade do órgão, bem como a influênica política a que é submetido.

Fatores menos genéricos hão de ser considerandos. Todo pedido deve ser levado ao julgador, instruído com aquilo que o requerente ou requerido possui. Contudo a dificuldade de instrução de solicitações faz com que a norma não seja melhor aplicada, tendo em conta a instrução a descontento das partes, ocasionando, um descompasso de realidade.

O jargões de que da mihi factum, dabo tibi ius (me dá os fatos, e eu te darei o direito), e no iura novit curia (o Tribunal conhece o direito), são temas para aulas introdutórias à faculdade de Direito. Nesse caso é preciso esbofetear Ihering. A luta pelo Direito é menos romântica. Ou o pedido é minunciosamente declinado, com a devida indicação da norma, ou as burocracias judiciais (vide súmulas impeditivas de recursos e tantas outras), serão lançadas. Aplicar o direito, na esfera brasileira, é, acima de tudo, ser aguerrido, com fôlego para ir muito além da primeira instância. Quem pensa de forma diversa fica pelo caminho.

Outra premissa deverá ser observada pelas partes e, se possível, pelo aplicador da norma. Incrêdulo ou inocente aquele que conclui que a dimensão econômica não influencia em um julgado. A norma regula interesses. Não fosse assim sua existência estaria comprometida. Desaparecendo o interesse, desaparece a norma escrita. Nenhuma valirante é mais importante que o fator econômico. As lides, de regra, envolvem pecúnias e sobre esse plano são tratadas. Retirar o valor ecônomico da interpretação da norma é desprezar os interesses desde o seu nascimento até a sua efetiva aplicação.

Por fim temos, em boa lógica, que não se concebe interpretar a norma no sistema brasileiro sem conhecer como ela é parida. Conhece-se um adulto pela sua gênese infante. Pular essa etapa é apostar na álea e pruduzir interpretações que levam a lugar nenhum. Aqui os trabalhos legislativos deveriam ser melhor valorizados. Desconhece-se uma única decisão judicial que tenha lançado mão, como argumento, de debates no campo Parlamentar.

Em suma, o que se quis dizer é que não podemos pautar-se pela interpretação da norma por ela própria. O julgador precisa estar atento às inúmeras nuances. Se assim não for, discute-se a consequência e não a causa. Da mesma forma que, se 99% dos recursos forem investidos em presídios e 1% na educação, por certo não se resolverá o problema carcerário, o mesmo se processando com o mundo jurídico. Ou seja, enquanto a norma pela norma for o centro de debate, mais afastados estaremos da justiça.

Sobre o autor
Leandro Brescovit

Graduado pela Universidade Federal de Pelotas - UFPel. Analista Jurídico da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul, lotado na Procuradoria Regional de Caxias do Sul/RS, Pós graduado em Direito Tributário.

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